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Pincéis e lápis à mão

A variedade de estilos dos músicos pernambucanos também se mostra nas artes visuais, com a exploração de pintura, desenho, HQ e design

TEXTO Débora Nascimento

01 de Outubro de 2016

Neilton Carvalho, guitarrista da Devotos, em seu ateliê, estúdio, laboratório e casa

Neilton Carvalho, guitarrista da Devotos, em seu ateliê, estúdio, laboratório e casa

Foto Alcione Ferreira

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 190 | outubro de 2016]

A vizinhança não sabe muito bem o que raios acontece na casa de Neilton Carvalho, na Bomba do Hemetério, bairro da zona norte do Recife. “Sou bastante reservado, passo mais tempo aqui, estudando e trabalhando, do que na rua conversando – aliás, na rua não converso nada. Às vezes, chega aqui um repórter, músicos… Aí, sai um quadro, assim como chega matéria-prima, lata de tinta, chapa de ferro. Aí se veem as luzes da máquina de solda, depois se ouve o barulho de um acorde de guitarra…”

Na casa – uma mistura de laboratório, estúdio e ateliê –, o guitarrista grava os discos do grupo que integra, Devotos, faz os instrumentos da Altovolts e pinta telas, sendo a prova viva que a tão propagada diversidade musical do Recife também se mostra quando falamos dos músicos que investem seu tempo e talento nas artes plásticas.

Autor das capas dos discos da Devotos e de todo o trabalho gráfico da banda, como pôsteres e camisetas, Neilton também é convidado para fazer capas de outros grupos, como o do Cordel do Fogo Encantado, Academia da Berlinda e The Baggios, sua encomenda mais recente. Todos eles são pintados em tela com tinta acrílica.

Autodidata em todas as áreas profissionais que abraçou, ele conta que aprendeu a desenhar com uma famosa dupla, Hanna-Barbera. “Minha escola sempre foi a televisão, desenho animado, depois, quadrinhos. Nunca achava que isso fosse chegar a canto algum, sempre achei que não ter um curso, não ter dinheiro, acesso a acessórios, ferramentas, que todos os pintores e artistas tinham, não ter tido aula de História da Arte, me desqualificava como profissional da área.”

Reconhecido como artista plástico, músico e construtor de instrumentos, Neilton, vez ou outra, é chamado de gênio. “Sou gênio nada, o que eu faço é simplesmente porque não tenho quem faça pra mim. Esse lance de construção da guitarra, dos amps, dos cases, tudo o que você está vendo aqui, sou eu que faço; esta prateleira, os chassis, esta casa, que ajudei na construção, a ideia era ter um laboratório, o piso fui eu que fiz, com retalhos de cerâmicas, que era mais barato. Não sou gênio, eu não tenho dinheiro. Possivelmente, se tivesse, compraria uma Gibson fodona, um amplificador Marshall top e seria mais um tocando guitarra por aí, que minha intenção era tocar guitarra, ou pintando com tintas caríssimas, tentando estudar, fazendo faculdade ligada a isso. Não tinha dinheiro, fazia porque queria”, observa.

 A primeira aquarela veio aos 12 anos, em 1984. “Aí você fica com aquela noia, ‘tem que pintar igual a fulaninho’, ‘tem que estudar pra ser alguém’. Depois, comecei a contestar isso, quando comecei a me envolver mais com a cultura alternativa, será que pra, de fato, eu ser bom no que quero fazer de hoje em diante, preciso estudar as técnicas já desenvolvidas ou posso criar a minha?”, questiona-se Neilton, que só utiliza as cores básicas, amarelo, azul, vermelho, branco e preto. “O resto vai saindo, costumo dizer que sou uma impressora. Às vezes, preparo a mistura que quero para determinado tom; às vezes, já vou misturando direto na tela e já vai se criando outra textura”, conta o pintor, que já fez duas exposições individuais. A primeira teve texto assinado por Gil Vicente, admirador do seu trabalho.

DU PEIXE
Assim como Neilton, Jorge Du Peixe, compositor e vocalista da Nação Zumbi, também é músico ligado às artes visuais e costuma fazer capas de discos. A embalagem do primeiro da Nação Zumbi foi elaborada pela dupla Dolores & Morales. Mas a do segundo, Afrociberdelia (1996), teve assinatura dele e HD Mabuse. “Não participei da gravação de Maracatu atômico, que foi a última música gravada para o disco, porque estava no Recife fazendo a capa”, conta Du Peixe.

Ao lado da designer Valentina Trajano, Du Peixe fez belíssimas capas para a Songo, Mundo Livre S/A, Mombojó, Siba e Nação Zumbi. “Desde pequeno, estava sempre com caneta na mão desenhando, fiz tatuagem por um tempo. Comecei a cursar desenho industrial, mas ainda não sabia o que queria, só sabia que as artes visuais me atraiam de várias maneiras. Quando entrei na banda, essa área foi uma preocupação nossa desde o início”, lembra Du Peixe, cujas influências são muitas, Dadaísmo, cartazes russos, xilogravura… “Acho que o meu estilo de desenho tem influência sobre a minha música. A literatura influencia o desenho, que influencia a música. É difícil apontar onde começa”, diz o músico, que, além de estar no começo da gravação do próximo disco da Nação Zumbi, vem investindo em pintura com tinha acrílica e colagens, e pensa em fazer a primeira exposição individual de seus trabalhos.

A artista plástica e cantora Catarina Dee Jah, filha dos artistas com formação em Arquitetura, Humberto Magno e Iza do Amparo, diz que para ela é difícil diferenciar a importância da música e das artes plásticas em sua vida. “Uma permeia a outra. Creio que na música há uma entrega maior, pois interajo com muitas pessoas no processo criativo, me desafia mais. Mas são complementares, uma alimenta a outra. Quando existe sensibilidade artística, tudo pode virar expressão. Quando produzo minhas festas, gosto que as pessoas tenham uma experiência em todos os sentidos. Portanto, cuido da comida, da decoração e da música. Aprendi desde cedo a fazer o que puder com o que se tem.”

Sobre se prefere ser mais reconhecida como artista visual ou cantora, Catarina é enfática: “Falar em reconhecimento é bem relativo. Mas é interessante indagar. Reconhecimento é sucesso? O que é sucesso? Ganhar dinheiro? Ter fama? Ganhar dinheiro depois de morta? Ser reconhecida depois de morta? Ter tenacidade para agradar uma massa e não precisar fazer concessões artísticas pra isso? Quero que as pessoas me ouçam ou vejam e saibam quem sou eu. Busco a autonomia e a originalidade”.

Um dos músicos da nova geração, o jornalista, guitarrista e desenhista Fernando Athayde fez a capa de seu primeiro disco solo, Greatest hits. “O desenho me toca racionalmente, como um trabalho, a música é pura emoção, incontrolável e imprevisível. Cada intervalo harmônico que sustenta a melodia de uma canção minha opera na mesma frequência que a escolha de representar as feições estilizadas de um ou outro personagem que eu criei. Acredito que a arte não tem uma finalidade específica, mas se utiliza dos símbolos cristalizados na psiquê do artista para se manifestar”, analisa o desenhista, que fez capas para bandas em que tocou e hoje mostra seus desenhos no site neurose.me.

O compositor e guitarrista D Mingus, também da nova geração de músicos pernambucanos, começou a desenhar por causa dos livros ilustrados e gibis: “Desde muito cedo, não me contive em ser apenas leitor. Sempre senti necessidade de criar as minhas próprias histórias, mesmo sem ter qualquer conhecimento formal dos fundamentos básicos da narrativa visual. Minha relação com desenho é mais sazonal do que com música. Até aos 13 anos, tinha essa atividade como meta para minha vida, até que descobri o rock, que me desviou do caminho do bem”.

“Na verdade, eu parei de desenhar, como muita gente faz, porque acabei achando que aquilo era mais uma questão de ‘ter um talento nato pra coisa’ do que de sentar o traseiro na cadeira, estudar e treinar… Então, comecei a me incomodar com a ‘tosquice’ de minhas criações, que não conseguiam mais acompanhar meus anseios internos, e inconscientemente travei o traço. Retomei o desenho de forma mais dedicada somente uns cinco anos atrás, quando assumi que desfazer alguns bloqueios relacionados a essa fase seria terapêutico”, diz o músico, que já publicou uma série de HQs curtas na internet, Vida lo-fi, e está com um projeto, em fase de roteirização, de integrar quadrinhos à música.

Contemporâneo de Fernando Athayde e D Mingus, o músico Zeca Viana considera que as duas atividades se complementam. “Ultimamente, tenho desenhado bem mais do que feito música, comprei algumas tintas também e tenho praticado pintura. Entre 2013 e 2015, não toquei ao vivo, me dediquei apenas a gravar em casa o disco Estância. Com certeza, foi uma das épocas em que mais me dediquei ao desenho.” Seu próximo disco vai se basear em uma HQ, que está em processo de criação. Será um álbum quadrinhos. “Desde Estância, venho trabalhando em uma música mais imagética, conectada à ideia de paisagem sonora, camadas e texturas de ambiência. A música não deixa de ser uma forma de grafar sonoridades, de desenhar sons. O processo de produção, mixagem e masterização que venho fazendo em casa é bem isso, um modo de desenhar a música como eu a imagino.” 

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Tons da imagem e do som

O desenho da capa