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Outubro ou Nada é grito de liberdade

Fomentando um novo circuito alternativo, esta primeira edição da mostra busca consolidar o fazer teatral para além dos palcos tradicionais

TEXTO Alef Pontes

01 de Outubro de 2016

O espetáculo '(In)cômodos' tem texto do dramaturgo Cícero Belmar

O espetáculo '(In)cômodos' tem texto do dramaturgo Cícero Belmar

Foto Ricardo Maciel/divulgação

[conteúdo da ed. 190 | outubro de 2016]

Em tempos de cortes agressivos nos investimentos públicos e privados na área cultural, e de espaços públicos do teatro relegados ao sucateamento, faz-se mais importante para a produção independente a máxima “juntos somos mais”. Com esse mote, artistas, produtores, dramaturgos, grupos e coletivos do teatro pernambucano buscam, no colaborativismo e na ocupação de novos espaços, fomentar um circuito alternativo através da Mostra Outubro ou Nada.

De 3 a 29 de outubro, o teatro pernambucano se articula para divulgar a produção independente e questionar o modelo de ocupação e manutenção dos espaços tradicionais do teatro. Segundo o coordenador da mostra, Rodrigo Dourado, uma das motivações para a consolidação da Outubro ou Nada foi o surgimento, em 2014, de um movimento de teatro residencial. “E surge também como uma resposta ao sucateamento dos teatros públicos. Mais do que isso, já existia um circuito alternativo de teatro na cidade, com produções de diversos grupos e coletivos – como O Poste Soluções Cênicas, Experimental e Fiandeiros – criados especificamente para outras possibilidades de espaço, como o interior de residências e galpões”, argumenta.

Outro fator impulsionador da proposta, conta, é fugir de uma dependência dos editais à qual o teatro pernambucano teria se aprisionado na última década, fomentando o modelo de autogestão nos grupos e espaços. “A gente está vivendo uma retomada da produção alternativa, ou uma saída dessa dependência”, afirma Rodrigo, que também assina a direção de um dos espetáculos da mostra.

Um levantamento do dramaturgo estima que 90% das obras que integram a programação dessa mostra foram produzidas de forma independente. Na concepção do evento, cada grupo é responsável pela produção de seu espetáculo, em parceria com o espaço, e, em contrapartida, tem a bilheteria direcionada para a manutenção dos dois – grupo e espaço.

“A centralidade acontece no sentido de que os grupos, elencos, diretores e produtores se apoiam e consolidam outubro como o mês da mostra de teatro, ocupando os espaços da cidade durante praticamente todo o período”, explica Dourado.

O dramaturgo e escritor Cícero Belmar, que assina o texto do espetáculo (In)Cômodos, acredita que esta é uma forma de resistência, mas é também uma maneira de o teatro se presentificar na realidade. “Quando os grupos partem para fazer esse tipo de teatro, apresentando as peças em espaços não tradicionais, saíram da mera crítica à gestão pública para uma ação concreta. É como se estivessem dizendo: ‘Não será por falta de investimentos ou por falta de espaços que deixaremos de viver nossa arte, nossa criatividade’”.

Ao mesmo tempo, para Belmar, essa articulação é a própria construção da história do nosso tempo: “Eu acho que será impossível, para os historiadores do teatro pernambucano, não recontarem esse momento como um dos mais significativos da arte cênica”.

Ao todo, são 13 os espaços ocupados na cidade, durante os 27 dias de festival: O Poste Soluções Cênicas, Cia. Fiandeiros, Espaço Experimental, Cia. Cênicas de Repertório, Edf. Texas, Bar Teatro de Mamulengo, Escola Pernambucana de Circo, Espaço Vila, Casa do Acre, Teatro Joaquim Cardozo, Casarão da Várzea, Coletivo Lugar Comum e Mau Mau.

Na programação, que conta com 35 espetáculos, além de ações formativas, há peças de destaque da dramaturgia contemporânea como Na beira, Histórias bordadas em mim, A receita e Salmo 91. Essas dividem a grade com quatro estreias: O santo Genê e as flores da Argélia (de Bruno Fittipaldi), Baba Yaga (da Cia. Cênicas de Repertório), Luzir é negro (de Rodrigo Dourado) e Viva la vida (de Fred Nascimento), que havia percorrido o circuito estudantil e agora faz sua entrée profissional. Ainda, a Cia. Maravilhas apresenta a pré-estreia do infantil Ahhhhhhhh! Histórias de arrepiar, com direção de Márcia Cruz. A grade completa da mostra pode ser conferida na Continente Online.

BIODRAMA
Um dos destaques da programação, Luzir é negro é solo autobiográfico do performer Marconi Bispo, que, a partir de memórias pessoais e familiares, investiga o racismo e suas manifestações na vida de um homem negro, gay, candomblecista e periférico.

Em busca de entender como o racismo afeta as relações íntimas, desde os primeiros elos dentro da família até as escolhas e não escolhas que determinam os relacionamentos na fase adulta, o ator Marconi Bispo procurou o diretor do Teatro de Fronteira para darem segmento à pesquisa a partir do biodrama e do teatro documental. “Para mim, era importante saber se o fato de ser candomblecista, por exemplo, e externar isso das mais variadas formas – deixar minhas guias de orixás aparentes, assumir nas redes sociais etc. – estava determinando o fato de estar sem ‘namorar’ há mais de 10 anos”, conta Marconi Bispo.

Em um vídeo-teaser divulgado na página do Teatro de Fronteira, Bispo dá uma mostra do que o público pode esperar do espetáculo. “Entendi que eu era negro quando uma chefe minha me chamou à sala dela e disse que eu não podia mais usar camisas que deixassem as minhas guias de orixás aparentes. Eu lembro que, do lado de cá da mesa dela, entendi que eu era negro”, compartilha, em trecho do vídeo.

E aprofunda o debate, ao falar sobre as relações de discriminação sobre o homem negro e gay: “Entendi, também, que eu era negro quando ia à boate Metrópole e não era paquerado por gays brancos, principalmente. Mas, entendi também que era negro quando, às 4h da manhã, já em desespero, querendo pegar alguém, eu tirava a camisa. Aí chegava alguém, mas antes de perguntar meu nome e me pedir um beijo, me perguntavam se, como todo negro, eu era bem-dotado. Mas o que acho engraçado é que o volume da minha autoestima nunca foi igual ao volume que se supunha ter embaixo da minha calça. Entendi que ser negro poderia ser, simplesmente, uma questão de volume”.

Na narrativa, as memórias de Marconi são cruzadas com fatos recentes do país, observando como o negro aparece em diversas dramaturgias – a exemplo de Os negros, de Jean Genet; Arena conta Zumbi, de Guarnieri e Boal; e Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes – e em outras matrizes documentais, como as redes sociais, matérias e artigos de jornal e documentos históricos. 

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