O que resultou da performance Antropometrias – as formas azuis das modelos “carimbadas” no papel e exibidas em inúmeras exposições de arte – é suficiente por si só. No entanto, é preciso ressaltar que existiu uma complexidade na performance de Klein que também dependeu da sinfonia Monotonia e silêncio. Durante 20 minutos, uma orquestra e um coro, compostos no total por 10 músicos, entoaram a nota ré maior (D) de modo intermitente, sem diminuir o som ou aumentá-lo, com a constância de uma sirene com um interruptor preso. Klein era o maestro. Enquanto isso, as modelos se pintavam e “carimbavam” as telas com o próprio corpo. Uma plateia, composta principalmente por homens, assistia embasbacada (como se vê no documentário Yves Klein, de François Lévy-Kuentz) à performance, numa espécie de antecipação à associação trazida pelo filme Azul é a cor mais quente, do diretor Abdellatif Kechiche, de que há uma espécie de saturação sensual por trás de uma cor esteticamente fria. Sem dúvida, o papel das mulheres na performance – meros objetos para executar o que o artista Klein, homem branco, havia concebido – seria extremamente questionado hoje. Entretanto, precisamos entender Antropometrias dentro dos limites de seu tempo.
Depois dos 20 minutos de som, enfim, seguem-se 20 minutos de silêncio profundo. Os músicos, de modo performático, não reagem, não balbuciam e fitam para um único local, como se estivessem meditando. As mulheres, nesse momento, estão azuis, no canto. E tremem de frio. É interessante acrescentar que Klein concebeu a sinfonia nos mesmos anos em que John Cage criou 4’33’’, um trabalho marcante em que o pianista não executa nota alguma no seu instrumento, com a intenção de levar a plateia a perceber as complexidades do silêncio. Para Cage, é a partir dele que a música pode ser criada. Embora não existam provas de que Cage e Klein se influenciaram mutuamente, é possível perceber que há questionamentos próprios de um tempo que acabam permeando trabalhos contemporâneos entre si. Como intui o filósofo Arthur Danto, na obra O abuso da beleza, “talvez seja um sinal de um verdadeiro movimento do pensamento, quando indivíduos começam a fazer ou pensar o mesmo tipo de coisas, mesmo sem saber da existência uns dos outros”.
Também na mesma época, mais precisamente em 1969, o artista alemão Joseph Beuys apresenta a performance Titus Andronicus/Iphigenie, num teatro de Frankfurt, na Alemanha. No palco, Beuys toca pratos continuamente em frente a um cavalo branco reluzente. Por vários motivos e símbolos, trata-se de uma provocação às atrocidades empreendidas pelo regime nazista na Alemanha. É difícil julgar até que ponto, de fato, Beuys estava tocando uma música. É mais provável que ele, através de sons cortantes, racionais e objetivos, estivesse provocando um pensamento plástico. De todo modo, a presença dos sons nas artes visuais dos anos 1960 não foi um mero acaso. É importante ressaltar que os integrantes do Movimento Fluxus, que influenciaram toda uma geração de artistas conceituais, foram alunos do seminário de John Cage sobre composição experimental na universidade nova-iorquina The New School. Como escreve Danto, o empenho de Cage em superar a distinção entre música e barulho é semelhante ao programa do grupo Fluxus de “preencher a lacuna entre arte e vida”. O próprio Beuys, mais tardiamente, chegou a integrar o movimento.
As incursões de artistas visuais pelo terreno da música também foram bastante intensas no Brasil, na década de 1960. Os próprios experimentos de Hélio Oiticica com o terreno da música o levaram a escrever, em carta para a gravadora Biscoito Fino: “descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é ‘uma das artes’ mas a síntese da consequência da descoberta do corpo, porisso o ROCK p. ex. se tornou o mais importante para a minha posta em cheque dos problemas-chave da criação (o SAMBA em q me iniciei veio junto com essa descoberta do corpo no início dos anos 1960: PARANGOLÉ e DANÇA nasceram juntos e é impossível separar um do outro)”. E conclui o raciocínio de modo catatônico: “JIMI HENDRIX DYLAN e os STONES são mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK”. Sintomas de um verdadeiro movimento de pensamento em gestão naquela época.
Por outro lado, na mesma década de 1960, a experiência visual já se inseria no mundo da música, em capas de discos de vinil que mais pareciam obras de arte – caso dos discos Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) e Abbey Road (1969), dos Beatles. Não se havia chegado às megaproduções visuais de shows como os das cantoras Beyoncé e Lady Gaga ou da banda francesa Stromae, como vemos hoje em dia, mas o universo da música já concedia espaço e valor às atratividades do apelo visual. Hoje, em uma espécie de comparação simplista, há muito lugar para os olhos nas apresentações musicais e pouco lugar para os ouvidos nas exposições de arte – talvez pelo impacto de uma cultura ocidental eminentemente visual nos diversos terrenos da experiência humana. A presença da música, nos espaços das galerias e dos museus, não é algo comum, não chega perto de uma regra e, muitas vezes, pode até chocar.
EXPERIMENTOS
Foi o caso da obra Autobang, do coletivo fluminense Chelpa Ferro, apresentada em 2002, na 27ª Bienal de São Paulo. Um carro de marca Maverick, objeto de consumo e fetiche, símbolo de poder e masculinidade, foi colocado em um dos salões do edifício para ser visto, ouvido e destruído por porretes cujas extremidades tinham o formato dos rostos de Beethoven, Mozart e Bach.
O que aconteceu foi que, simplesmente, em plena Bienal de São Paulo, os visitantes poderiam pegar esses porretes, subir no carro e destruir cada parte dele em pedacinhos. O som que se ouvia no edifício escandalizava não só porque parecia quebrar a formalidade de uma bienal, mas também porque aquele som não era um mero batuque. Era um batuque em um Maverick! Como escreve o crítico de arte Luiz Camillo Osório, após a performance: “O que houve na bienal, com uma catarse coletiva detonando temerariamente o Maverick, ainda não foi assimilado por inteiro. Que explosão selvagem foi aquela?”. O escândalo, é claro, também veio da destruição deliberada de um objeto que materializava uma série de ideais.
O centro nervoso do Chelpa Ferro, de todo modo, constitui-se nessa inquietação em repensar as relações ambíguas entre o que se vê e o que se escuta. Na obra Moby Dick (2003), por exemplo, a intenção não é mais dessacralizar um espaço de museu ou galeria, mas questionar como uma imagem é capaz de evocar sons, em um movimento inverso daquela atividade que a música pode exercer: evocar imagens. Em Moby Dick, uma bateria grande, majestosa, mas sem baquetas, fica no centro de uma sala. Nenhum som, nenhuma performance, apenas a bateria em um espaço de galeria. A única coisa que vem à mente é, então, o som dela, ausente. Como escreve o crítico de arte e curador Moacir dos Anjos, “é a imagem silenciosa e precisa de um objeto que aciona o sentido da audição. Tal alteração no processo perceptivo desfaz hierarquias comumente associadas a experiências sinestésicas, em que a um som corresponderia uma imagem definida, mas à visão concreta de algo não equivaleria um ruído certo”. São variadas e quase sempre imprevistas as articulações entre som e imagem nos trabalhos de Chelpa Ferro.
Nas criações do artista norte-americano Steve Roden, as relações entre som e imagem também são exploradas extensivamente e de um modo bastante complexo. Após uma residência na Alemanha em 2011, Roden produziu uma série de obras que articulam, através de desenhos e sons, os vários significados encontrados nos célebres cadernos do filósofo alemão Walter Benjamin. Em uma das obras, por exemplo, intitulada symbol/cymbal (vinyl version), Roden punha em relação quatro desenhos de Benjamin e quatro vitrolas de vinil. De cada uma das vitrolas emanava o som de um prato de bateria, em ritmos diferentes, de acordo com uma partitura que o artista derivou dos desenhos encontrados nos cadernos de Benjamin.
“Quando vi os cadernos, eles me lembraram bastante as partituras gráficas de Morton Feldman e Cornelius Cardew e Fluxus etc. Demorou um tempo para que eu descobrisse como usar os símbolos de Benjamin para os meus próprios meios, e é claro, não achei tradução, então eu olhava cada símbolo e via como aquele símbolo poderia sugerir um som”, detalha Roden. Os desenhos de Benjamin, então, foram reinterpretados sonoramente pelo artista norte-americano. “Eu os ‘traduzi’ de diferentes maneiras, utilizando-os para fazer gestos relacionados com sons – de um círculo, eu fazia um som leve e contínuo; de um quadrado, fiz quatro gestos sonoros de uma mesma duração, e assim vai”, explica o artista.
São trabalhos sobre os quais é difícil não questionar se neles há hierarquia entre som e imagem. Em alguns, parece que a imagem tem protagonismo; em outros, o som parece se destacar. De todo modo, a experiência geral é simultaneamente sonora e visual.
O artista paraibano Jarbas Jácome, por exemplo, tem refletido justamente sobre a relação complexa entre o que se vê e o que se escuta na arte. “A música visual trata-se de um campo da arte que se preocupa com uma conexão direta e não hierárquica entre som e imagem. Nessas criações, o compositor se preocupa com o som e a imagem simultaneamente, como acontece com criações que envolvem pelo menos duas linguagens. Mas há artistas que pensam primeiro em uma, depois em outra”, explica ele.
Na performance Flor de Ilha Formosa, por exemplo, apresentada por ele no ano passado, no 9º Simpósio de Arte Contemporânea da Universidade Federal de Santa Maria, e no Festival Eletronika de Belo Horizonte, o artista apresentou uma instalação interativa com um microfone e uma projeção gráfica de uma flor na parede da galeria. A imagem da flor mudava de acordo com o som capturado pelo microfone: quanto mais agudo o som, mais pétalas.
Para criar essa projeção, Jácome transformou o gráfico tradicional do som, cujo eixo horizontal representa a passagem do tempo e o eixo vertical a amplitude do som, em uma imagem cujos eixos horizontais e verticais se transformam em “pétalas”. “O clássico gráfico ondulado do som é uma ‘ficção científica’, pois é ‘apenas’ uma ideia matemática. Nesse trabalho, proponho um desvio semântico desse objeto visual que já é um clássico da sociedade tecnocrata para um outro objeto estranho, um simpático e nervoso monstro visual que reage imitando uma flor”, detalha o artista. A performance de Jácome parece articular, de modo não hierárquico, as potencialidades do som e da imagem.
Por outro lado, o potencial visual dos elementos figurativos da música, como claves, notas e partituras, está presente no “álbum” Notassons (1993), de Montez Magno, que consistiu em uma série de desenhos sobre partituras, cujos títulos se referem a peças musicais como Sonata para olho e ouvido, Sonata silente ou Concerto aparentado. Apesar de, no trabalho, existirem alusões ao que poderia ser um “álbum”, não há a presença de sons na criação de Montez, mas apenas alusões a eles através de imagens, figuras e jogos de palavras com as letras S, O, N e S – o que não é pouco, diante do potencial imagético de evocar sonoridades.
Ainda que alguns trabalhos possam evocar uma maior visualidade e, outros, um potencial mais sonoro, é inegável que os artistas aqui mencionados – Roden, Chelpa Ferro, Jácome, Klein e Beuys – dedicaram-se a explorar as possibilidades semânticas da imagem e do som em seus trabalhos. Mais precisamente, dedicaram-se a explorar o que há de sonoro em determinada visualidade e o que há de visual em determinadas sonoridades. Fácil pensar, nesse caso, que a busca dos artistas em propor experiências multissensoriais pode ser, no final das contas, uma vontade mais inconsciente de experimentar uma sinestesia que não nos é, por limitação física e por outros limites insondáveis, oferecida.