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Arte ao vivo

Manifestações das artes plásticas, como performances, happenings e instalações, transformam shows em uma experiência visual

TEXTO Yellow

01 de Outubro de 2016

'The Wall', turnê de Roger Waters, em 2012, incrementa show de 1980

'The Wall', turnê de Roger Waters, em 2012, incrementa show de 1980

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 190 | outubro de 2016]

Após a frustração que levou os Beatles a abdicarem de performances ao vivo por limitações técnicas, em 1966, tecnologia e criatividade passaram a alimentar a parceria entre espetáculo e música. Na Inglaterra, encontramos não apenas o surgimento dos amplificadores Marshall, mas também as raízes para a natureza multimídia dos  shows dos dias de hoje.

O produtor norte-americano Joe Boyd argumenta, na autobiografia White bicycles (2006), que as pirotecnias são uma herança inglesa. Ele, que atravessou o Atlântico na década de 1960, relata sua surpresa ao constatar uma predisposição natural dos músicos a trazerem ao palco gongos, coreografias e uniformes. O público não apenas aceitava, como esperava que, em determinado momento de um show, algo explodisse.

Foi na Inglaterra que um jovem norte-americano chamado Jimi Hendrix aprendeu a incorporar às suas performances truques, como tocar a guitarra com os dentes ou atrás da cabeça, e esses foram canais para seu reconhecimento. “(Pete) Townshend quebrando uma guitarra e Hendrix ateando fogo a outra no palco de Monterey os fez estrelas da noite para o dia, na América”, diz Boyd. “Ambos os gestos (…) faziam parte de uma tradição inglesa do artifício. Nova York jamais teria moldado o gênio de Hendrix em uma persona pop tão poderosa quanto Londres fez.”

O mesmo Boyd foi um dos sócios do UFO (Underground Freak Out), um clube psicodélico que fez história na Swinging London. Localizado no porão de uma delegacia de polícia, o minúsculo clube abrigava apresentações de poesia, exibição de filmes e happenings, e nele tomou forma um dos conjuntos que viria a realizar alguns dos mais influentes espetáculos audiovisuais, o Pink Floyd.

Em seu livro Inside out, o baterista Nick Mason lembra que os integrantes da banda, que se conheceram na escola de arquitetura, não tinham dificuldade em empregar seus conhecimentos técnicos na montagem de equipamento de iluminação. Em um espaço limitado, pequenas luzes e projetores eram capazes de criar um grande impacto visual. O baixista Roger Waters percebeu que o grupo poderia usar um retroprojetor e líquidos coloridos, e catapultar a audiência lisérgica do UFO à Alfa-Centauro.

Nos anos seguintes, o espetáculo do Pink Floyd cresceria com o emprego de cada vez mais luzes, fogos de artifício, e, sim, um gongo. Logo seriam preparados filmes a serem projetados em um telão circular, marca registrada da banda, dirigidos por Storm Thorgerson, o designer das capas de seus discos. A partir de Animals, nasceu uma parceria entre a banda e o cartunista Gerald Scarfe, que passou a criar animações para ela. O animador viria a definir grande parte da identidade visual do maior projeto do Pink Floyd, o disco/espetáculo/filme The wall.

Inovador quando criado, em 1980, o cenário do show, projetado pelo arquiteto inglês Mark Fisher, gradualmente dividia a banda da plateia através da construção de um gigantesco muro, simbolizando o distanciamento entre artistas e seu público. Foi o início de uma nova carreira para o profissional, que viria a projetar palcos para Rolling Stones, Madonna, U2 e a abertura da Olimpíada de Pequim, em 2008. Antes de sua morte, em 2013, Fisher reformulou The wall para uma turnê mundial de Roger Waters.

Ao final dos anos 1960, uma cena musical se formava na Alemanha, o Krautrock. As bandas alemãs aplicavam com rigidez conceitos que pretendiam explorar. A Can, por exemplo, dedicava-se a improvisações, composições coletivas e instantâneas, que exploravam a ambiência de onde quer que estivessem tocando, transformando seus shows em happenings.

Kraftwerk, a mais famosa e influente banda alemã, passou a usar, a partir de Autobahn, em 1974, apenas instrumentos eletrônicos. O conceito, no entanto, impunha um desafio aos shows. Sintetizadores, em sua maioria, são apenas teclados com botões. Diferentes de guitarras ou baterias, cuja execução já é uma performance, é entediante para a plateia assistir a quatro integrantes de uma banda catucarem pitocos em caixinhas.

Os alemães, então, assumiram uma postura de palco fria ao cúmulo, escondendo as vozes humanas em modulações de vocoders, e chegando ao clímax em que eram substituídos, no palco, por robôs, criando shows memoráveis.

Por sua vez, o francês Jean-Michel Jarre recorreu a luzes e lasers para transformar em espetáculo sua música de sintetizadores. Ele criou instrumentos, como um teclado circular e luminescente, que parecia um disco voador, e uma “harpa laser”. Durante a década de 1980, seus espetáculos se tornaram intervenções em cidades inteiras. Em um dos seus concertos mais recentes, porém, ele utilizou um dos mais simples e arrebatadores recursos visuais de sua carreira – espelhos gigantes sobre o palco, que permitiam à plateia assistir à extenuante manipulação dos históricos instrumentos que foram usados na gravação de Oxigene, álbum de 1976.

MÚSICA ELETRÔNICA
Com a popularização de DJs e instrumentos virtuais, acionados em computadores, cada vez mais artistas de música eletrônica estão recorrendo a espetáculos audiovisuais. O gênero EDM (Electronic Dance Music) tornou-se, na última década, extremamente popular, e em torno deste surgiram os maiores festivais de música do mundo. Parte da festa, no entanto, é o assalto sensorial causado por intervenções visuais criadas por empresas de design especializadas em espetáculos, como Strangeloop (que já trabalhou com Skrillex e Flying Lotus), United Visual Artists (Massive Attack) e Universal Everything (responsável pelos shows do Coldplay), que cercam os DJs de parafernália visual, para afastar a impressão de que os artistas estão apenas checando seus e-mails na frente de milhares de espectadores.

Alguns músicos e bandas integram uma classe particular, em que a performance ao vivo e a composição das músicas quase não podem ser dissociadas. A banda norte-americana Talking Heads procurou explorar diferentes mídias, como o cinema e a televisão, durante sua prolífica carreira, apresentando sempre um discurso crítico à cultura de massa. O filme Stop making sense, de 1984, documenta a explosão de criatividade e funk que o grupo apresentava ao vivo, montando e transformando o cenário do palco durante o show.

Há anos, Peter Gabriel já perturbava os companheiros da banda Genesis, ao usar vestimentas esdrúxulas no palco, antes de sair em carreira solo. O filme Secret world live, sobre a turnê do disco Us, de 1992, é a culminância de sua criatividade. Músicos, cabine telefônica, um pântano, uma árvore, brotam de dois palcos ligados por uma esteira rolante, em uma apresentação teatral, ao mesmo tempo empolgante e introspectiva.

Comparada a Gabriel desde o início de sua carreira solo, em 1993, a islandesa Björk buscou criar shows, vídeos e arte arrebatadores para sua música. Interesses diversos, que vão da música experimental à moda, sempre estiveram presentes em seu trabalho, e suas parcerias trouxeram visibilidade a músicos, cineastas (Michel Gondry, Spike Jonze, John Kricfalusi, Lars Von Trier) e estilistas (Alexander McQueen, Iris van Herpen, Maiko Takeda). Seu projeto multidisciplinar Biophilia, uma apreciação musical da natureza, foi lançado, simultaneamente, como disco, show, exposição de museu e aplicativo para tablet. A cantora usou desde instrumentos artesanais, que exploram princípios físicos e matemáticos, a gaiolas eletrificadas, que geram notas através de raios. 

 

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