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O destino manifesto brasileiro

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Setembro de 2016

"Prevaleceu o que nos torna únicos e imbatíveis: a arte e a criatividade. Uma força sem medida em ouro, prata e bronze"

Ilustração Thaís Pinheiro

[conteúdo da ed. 189 | setembro 2016]

Fiquei acordado
até depois de meia noite para assistir a abertura dos jogos olímpicos, a Rio 2016. Mesmo exausto por ter dirigido cerca de 400 quilômetros em estradas perigosas, ao sol de um verão precoce, mantive os olhos bem abertos. Emocionei-me com Paulinho da Viola e o conjunto de cordas interpretando o hino nacional. Lamentei o pouquíssimo tempo concedido a Elza Soares, majestosa na cadeira trono, em companhia de três backing vocal, soltando as vozes no Canto de Ossanha, de Baden Powell e Vinicius de Moraes. E o sambista mirim, os bailarinos e os ritmistas das escolas de samba? Foi demais. Temi apenas pela fragilidade de Gilberto Gil, estampando a doença no rosto. O espetáculo primou ao homenagear a criatividade brasileira em música, poesia, arquitetura, artes plásticas, dança, cinema e etc., etc., etc... Deslizes como o de estilizar manifestações populares, o maracatu irreconhecível até pelos pernambucanos, se diluíram nos acertos, na clara feição de Rio de Janeiro e Brasil.

O dramático em Copa do Mundo e Jogos Olímpicos é que os países se candidatam a sediá-los com oito anos de antecedência. As economias e regimes estáveis não correm grandes riscos na aposta. A menos que estoure uma guerra. Mas, para o nosso país, que desde 1899 vive uma alternância de repúblicas e ditaduras, é temeridade comprar algodão na folha, apostar num futuro de oito anos. Isto aqui ô ô / É um pouquinho de Brasil, Iaiá / Deste Brasil que canta e é feliz / mas onde, de verdade, ninguém garante o dia de amanhã. Ary Barroso não escreveu o último verso do samba. Na euforia da Sexta República, a Nova República, ninguém imaginou o que nos esperava pela frente.

E veio igual a um tsunami.

Sem consideração pelas lágrimas do ex-presidente Lula, abraçado à bandeira verde e amarela, comemorando a conquista de trazer os Jogos Olímpicos para o Rio de Janeiro, pela primeira vez na América do Sul.

Muitas águas rolaram desde a aposta no escuro.

Na Copa de 2014, aconteceu um vexame esportivo e político, se expôs para o mundo a corrupção como caráter nacional e a decadência do nosso futebol. Estádios superfaturados, alguns construídos sem perspectiva de uso depois dos jogos, se tornando inúteis como a Ferrovia Madeira-Mamoré, a Ferrovia do Diabo, que matou 6.000 trabalhadores, um por cada dormente plantado no chão. A Madeira-Mamoré pelo menos serviu à ocupação e integração do território amazônico, se justificava como meio de escoamento da produção de borracha. Vivíamos um novo ciclo de euforia econômica, condenado ao mesmo destino de outros ciclos semelhantes: apogeu e decadência.

Mas, e as arenas de Manaus e Cuiabá?

E o Itaquerão do Corinthians?

Este deu certo, apesar dos trabalhadores sacrificados na construção que durou três anos, do acréscimo de quase meio bilhão sobre o valor calculado da obra, dos gastos com os 19.800 assentos temporários exigidos pela FIFA, para a cerimônia de abertura. O estádio foi cenário do massacre da presidente Dilma Rousseff, achincalhada por horas seguidas. Não se tratava das vaias do Maracanã, referidas por Nelson Rodrigues em suas crônicas bem humoradas, mas de palavrões gritados pela classe privilegiada, a dos que podem comprar ingressos caros.

Vexame.

Vergonha.

Amarga tristeza.

 Por esses dias até deixei de ler o meu poeta preferido.

Dentro de mim longitudes se alargam,

latitudes se estendem.

Ásia, África, Europa, são do leste;

coube ao oeste a América.

Porque sei que essa América a que Whitman se refere é a dele, a do Norte, com a ideologia expansionista do Destino Manifesto: os Estados Unidos e sua democracia estão destinados, pela divina Providência, a se espalharem por outras partes da América e do mundo. (...) Enfim aqui não só uma nação, mas uma nação proliferante de nações.

Nesses anos preparativos de Copa e Jogos Olímpicos, com ingerências da FIFA e do COI na vida brasileira já suficientemente estressada, me perguntei acerca das perdas e ganhos nos dois eventos. Os representantes das instituições não me convencem com o discurso sobre o valor do esporte no fortalecimento da paz entre os povos, nem com o aparente altruísmo dos seus empreendimentos. Percebo interesses pouco louváveis no subtexto do que falam. Promover a paz também não é a liturgia de algumas nações poderosas ganhadoras de medalhas. Elas praticam a filosofia de Waldo Emerson, o expansionismo e o direito de intervir sobre as nações mais frágeis, amparadas em ideologias de segurança e pacificação.

Houve ingerência em nossa política interna e na maneira de sermos, da parte do Sr. Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional, quando declarou entre muitas outras coisas que o Brasil atravessa a pior crise da história: econômica, política e de saúde mental. O estandarte do sanatório geral de Chico Buarque vai passar: Dormia a nossa pátria mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações. Mesmo sendo verdadeiro o diagnóstico psiquiátrico, nos ofende e humilha. Não acredito que o Sr. Bach e os membros do COI sejam sensíveis ao nosso futuro. Enxergo como única preocupação o acerto de contas com o Brasil, forçar para que os jogos aconteçam da melhor maneira possível, revertendo em lucro para a empresa, garantindo a continuidade do empreendimento no futuro.

Igualmente vergonhoso foi contemplar o presidente temporário do Brasil, o Sr. Michel Temer, espremido como um pronome oblíquo átono numa mesóclise, nulo e acossado pelo receio de vaias. Felizmente, prevaleceu o que nos torna únicos e imbatíveis: a arte e a criatividade. Uma força incomensurável, sem medida em ouro, prata ou bronze. 

 

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