Neste ponto da discussão, é possível levantar a pergunta: seria Noturno sem música um romance regionalista? A resposta dependerá de qual conceito de “regionalismo” cada leitor adota em sua própria reflexão, mas Noturno sem música me parece escapar de um regionalismo no sentido restrito do termo. Embora as marcas do sotaque nordestino sejam fortes em sua linguagem, embora as cenas da vida no agreste pernambucano tenham destaque, a intencionalidade do romance reside em uma busca de equilíbrio entre a crônica social e a reflexão existencial do seu protagonista. Como quase toda a literatura brasileira daquele momento, a questão do nacional deixa suas marcas também em Gilvan Lemos, sem dúvidas. Mas ela não é um ponto de chegada. Do mesmo modo, as marcas da cor local não são tratadas com o exotismo dos regionalismos menores, nem há uma obsessão em vincular a essência de uma cultura nacional à região nordestina. Além do mais, Noturno sem música se interessa pela vida urbana, embora não seja a urbanidade do Recife, mas sim a de uma cidade que seria equivalente à São Bento do Una do próprio Gilvan.
Os painéis sociais construídos pelo romance são breves e eficientes. E, não obstante os coadjuvantes pecarem pela unidimensionalidade, cumprem bem o papel de ajudar a compor estes quadros sociais. É o caso dos funcionários da fábrica, por exemplo, e em especial da tocante cena que envolve o filho de um deles, cujo apelido é Pelado. Quando Jonas, em um dos raros momentos nos quais consegue sair do seu próprio narcisismo, se comove com a pobreza da criança e lhe dá um queijo de presente, se surpreende com a atitude dela. Pelado, após segurar o alimento “como quem segura uma imagem de santo”, esconde o queijo e se recusa a comê-lo. Após muito insistir, a criança lhe revela o porquê, dizendo: “Vou levar pra mãe”.
Quanto mais simples a escrita de Gilvan se torna, mais as suas imagens brilham: “À tardinha o movimento da feira esmorecia. Matutos que se retiravam, estalando o relho no animal carregado; cachaceiros cantando pelas bodegas; raparigas nas esquinas, pintadas, fumando, na tentativa de suas últimas conquistas amorosas; cachorros a farejar montes de basculhos; adeuses, despedidas, lembranças às comadres”. Sua linguagem de estreia já tem a fluidez do melhor José Lins do Rego; as palavras e expressões regionais fazem sentido na boca das suas personagens, sem soarem como adornos desnecessários. Uma das melhores, se não a melhor cena de Noturno sem música, descreve a primeira vez na qual Jonas vê um avião voando: “O ronco enchia a cidade. Corria gente de toda parte, meninos gritavam exaltados: Tou vendo, tou vendo! Consegui avistá-lo, pontinho perdido no azul imenso”. Como se fosse um pequeno conto do realismo mágico contrabandeado para o interior do romance, a passagem do avião mobiliza toda a cidade. As ruas se enchem de gente a fim de observar o prodígio; as crianças gritam; teorias são criadas para explicar sua passagem pela região: “É capaz de estar perdido [...] Acontece. Às vezes perdem a rota”.
É uma cena-chave para entendermos Noturno sem música. Este não é apenas um romance de um período de mudanças no desenvolvimento do romance brasileiro; a própria obra tematiza transições. A chegada da vida moderna ao interior, exemplificada na cena acima, é só um destes momentos. Há outros: os limites fronteiriços entre o amor e o ódio; a ambiguidade, vivida por Jonas, entre o delírio e uma vida cotidiana sem graça; a exuberância do sexo versus a certeza de que cabe à carne a putrefação; o entrelaçamento da vida com a morte, por fim. Logo, o principal conflito do romance não é o fato de Jonas nutrir um amor não correspondido por uma mulher mais velha. Nem é, tão somente, a sua orfandade, ou a falta de perspectiva de ascensão social. Jonas afunda porque não consegue negociar com o mundo à sua volta. Além disso, ele não sabe lidar com os próprios sentimentos. Jonas se recusa a amadurecer. Não há atenuantes em sua visão de mundo; não há a compreensão da existência de ciclos que se alternam em movimentos contraditórios, porém necessários. Falta-lhe paciência, justamente porque lhe sobra tempo. Assim, Gilvan Lemos criou uma personagem cuja explosiva mistura de frustrações e radicalismo nos diz respeito hoje, em pleno 2016. Jonas é um pequeno “homem do subsolo” do Agreste pernambucano, um homem para quem a vontade de destruição é a única forma de escape.
Infelizmente, quando tenta alçar voos existenciais mais amplos, Noturno sem música se perde em especial nos seus principais personagens. Falta a Jonas, por exemplo, uma ironia, ou uma gravidade metafísica, que encontramos nos homens atormentados do Dostoiévski de Memórias do subsolo ou de Crime e castigo. Devido a esta ausência, a convivência prolongada com nosso principal protagonista se torna cansativa. Os demais personagens que orbitam ao seu redor, embora interessantes como tipos sociais, não recebem maior aprofundamento. Às mulheres, em especial, cabe um papel bastante secundário. Elas são pouco mais do que mecanismos que geram conflitos no romance – me refiro a Marta e a Inês, mãe de Jonas –, ou que servem como gatilhos de comoção sexual.
Apesar destas ressalvas, a republicação de Noturno sem música, ao mesmo tempo em que se republica o seu segundo romance, Jutaí-Menino, também pela Cepe Editora – que vai reeditar toda a obra do autor, é uma iniciativa muito bem-vinda. Não apenas para que possamos entender os primeiros passos de um bom escritor, cuja obra merece novas leituras e releituras, mas sim porque há na vida errática de Jonas e da sua cidade uma força bruta atestando que, mesmo em suas páginas de juventude, Gilvan Lemos é uma voz que merece ser ouvida.