“O cinema é transnacional desde a sua origem”
Lúcia Nagib, professora e pesquisadora brasileira radicada em Londres, propõe um uso diferente do termo world cinema, em que ele não se refere àquele que reage a Hollywood
TEXTO Alexandre Figueirôa
01 de Agosto de 2016
A professora e pesquisadora brasileira, radicada em Londres, Lúcia Nagib
Foto Alexandre figueirôa
[conteúdo da ed. 188 | agosto de 2016]
O termo world cinema ganhou visibilidade nos estudos de cinema a partir do final dos anos 1990. Ele define um campo crescente no audiovisual que busca mapear e definir a cultura cinematográfica mundial a partir de uma perspectiva crítica e teórica não centrada na ideia da hegemonia da cultura europeia ocidental e de Hollywood, em particular. Uma das estudiosas mais importantes do world cinema é a professora e pesquisadora brasileira Lucia Nagib. Vivendo e ensinando no Reino Unido desde 2003, ela começou seu trabalho no campo do cinema mundial no Centre for World Cinemas, da University of Leeds, em 2005, e hoje coordena o Centre for Film Aesthetics and Cultures do Department of Film, Theatre and Television, da University of Reading.
O livro Remapping world cinema: Identity, culture and politics in film (“Remapeando o cinema mundial: Identidade, cultura e política no cinema”, de 2006), organizado por Stephanie Dennison e Song Hwee Lim, foi essencial na consolidação do conceito que, desde então, vem ampliando o seu alcance diante de um mundo globalizado e do crescimento das produções transnacionais. Nele, encontramos, entre outros, os artigos An atlas of world cinema (“Um atlas do cinema mundial”), de Dudley Andrew, e Towards a positive definition of world cinema (“Para uma definição positiva do cinema mundial”), de Lucia Nagib. Nesse artigo e nos diversos trabalhos publicados sobre o tema, Nagib rejeita a visão hollywoodcêntrica na cartografia do cinema mundial e opta por uma abordagem positiva e inclusiva do termo, em que passa a definir world cinema como um fenômeno policêntrico com picos de criação em diferentes locais e períodos. Ou seja, elimina noções de unicentrismo, primazias e coloca o cinema feito nas diversas partes do mundo – de Taipei ao Recife – em pé de igualdade, incluindo nesse mapa até mesmo o cinema hollywoodiano, que passa a ser mais um entre os outros, em vez de ser algo ao qual se deve contrapor como foi usual, por exemplo, no conceito de Terceiro Cinema, nos anos 1960.
Atualmente, Lúcia Nagib coordena o projeto Towards an intermedial history of Brazilian cinema: Understanding intermediality as a historiographic method (“Rumo a uma história intermídia do cinema brasileiro: Entendendo a intermidialidade como um método historiográfico”), uma parceria entre pesquisadores da Universidade de Reading e da Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo, que pretende revisar a história do cinema brasileiro não a partir de uma linha temporal evolutiva, mas das relações do cinema com as outras artes e meios de comunicação.
CONTINENTE Lúcia, como foi o processo de criação do Centre for World Cinema, da University of Leeds?
LÚCIA NAGIB Eu passei um ano como professora visitante no Birkbeck College, da Universidade de Londres, e, durante esse período, foi criada uma cátedra de World Cinema para comemorar o centenário da Universidade de Leeds; candidatei-me a ela e fui escolhida. Na Inglaterra, ao concorrer a uma cátedra, o candidato deve apresentar um projeto em que imprime o seu perfil. Então, propus um conceito de world cinema um pouco diferente do que estava estabelecido. Foi até iconoclástico, porque o termo, como ele era usado, fazia sentido apenas nos países de língua inglesa, como acontece também com o termo world music, ou seja, identifica a arte produzida no resto do mundo, fora do centro, e o centro compreendido como Estados Unidos e Europa. No Brasil e em outros países, mesmo europeus, a expressão “cinema mundial” não tem esse sentido. Cinema mundial quer dizer o cinema do mundo todo.
CONTINENTE Em que consistiu essa sua proposta para o world cinema?
LÚCIA NAGIB O papel dos Estados Unidos no cinema mundial é muito forte por causa do peso de Hollywood. World cinema era compreendido no mundo anglófono apenas como aquele cinema que reage a Hollywood ou que não é Hollywood. É um conceito negativo, ninguém sabe o que é esse world cinema, só sabe o que ele não é. Tentei chamar atenção para isso, que o conceito deveria realmente abarcar tudo e não ser um cinema reativo. Eu estava muito insatisfeita com esse modo de olhar essas cinematografias tão ricas e tão diferentes, e obscurecer tudo que elas são simplesmente para defini-las pelo que elas não são. Propus um conceito positivo de world cinema, que enxerga aquilo que é específico dessas cinematografias e que as organiza segundo seus picos criativos. Olhando a história do cinema, nós identificamos várias ondas que ocorrem no mundo em função de questões econômicas, políticas, culturais, e é a partir delas que se dá a emergência de um movimento ou de uma forte corrente cinematográfica. No Brasil, nós tivemos vários desses picos, desde a idade de ouro, da bela época do cinema brasileiro, nos anos 1920, passando pelo Cinema Novo, a partir do cinema da Retomada. Assim, embora críticos de cinema e festivais ainda adotem a expressão world cinema como uma forma de identificar cinemas não anglófonos, o conceito positivo que propus ganhou relevância no meio acadêmico.
CONTINENTE E esses picos criativos em diferentes partes do mundo apresentam ligações entre si do ponto de vista estético ou de linguagem?
LÚCIA NAGIB Sim. Se você olhar atentamente, vai encontrar muitas características comuns entre eles. Uma dessas características é uma busca do realismo, o desejo de se revelar uma realidade escondida desses países. Isso aconteceu com o Neorrealismo italiano, que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial para mostrar tudo aquilo que tinha sido reprimido e escondido durante os anos do fascismo. A Nouvelle Vague também foi uma insurreição contra um cinema teatral, um cinema posado, que correspondia a uma escola que os jovens cineastas achavam retrógrada, engessada, sem vida. E, no Brasil, o Cinema Novo foi a mesma coisa. Tínhamos vivido a experiência da Vera Cruz, da Atlântida, cinemas fortemente baseados em estúdios, e o pessoal do Cinema Novo, com influência do Neorrealismo, foi para a rua, para a favela e, depois, foi para o sertão nordestino. Esse realismo é algo que conecta cinemas no mundo inteiro e é uma ilusão achar que eles estão simplesmente reagindo a Hollywood.
CONTINENTE Mas alguns desses novos cinemas nos anos 1960 foram identificados com o conceito de Terceiro Cinema e se caracterizavam exatamente por uma declarada reação a Hollywood e ao cinema clássico americano e europeu. Isso não iria de encontro ao conceito positivo que você propõe?
LÚCIA NAGIB Para mim, eles já se constituem world cinema, embora, naquele momento particular, fosse muito importante a demarcação da identidade nacional e a recusa do imperialismo econômico americano. Isso era forte e o que estava no horizonte era a adoção de regimes políticos que se opunham ao capitalismo, fosse ele o socialismo ou até mesmo formas mais radicais de comunismo. Mas outros momentos dos novos cinemas no mundo não se referem apenas a isso. Nós tivemos um momento do cinema brasileiro, o cinema da Retomada, por exemplo, que não se voltou necessariamente contra o establishment e não se voltava contra o cinema americano de modo algum. Longas como Baile perfumado (Paulo Caldas e Lirio Ferreira, 1996) e outros feitos no Nordeste nos meados dos anos 1990 são obras com muitas cores, muita vida, Lampião toma uísque, dança. Tem algo de bonito e belo, mesmo numa região de miséria e que não era vista da mesma maneira pelo Cinema Novo. São filmes que têm uma combinação com a música pop, com a arte pop; a postura política nesse momento é totalmente diversa. Em Cidade de Deus (2002), Fernando Meirelles também apresenta um tipo de realismo que não tem conflito com Hollywood, usa câmera estilizada e trilha musical pop, enquanto denuncia a pobreza, a injustiça e a exclusão social.
CONTINENTE Isso mostra que é preciso muito cuidado na hora de analisar os movimentos cinematográficos e os filmes.
LÚCIA NAGIB Sim, são movimentos complexos. Existem os motivos que são recorrentes, que a gente vai encontrar em todas as cinematografias, mas existem as diferenças e, às vezes, essas são até mais interessantes, porque elas revelam contextos. Em Taiwan, por exemplo, encontramos um cinema que flerta com o Japão e dá as costas à China, porque, para eles, o problema é a China, e não os Estados Unidos. No novo cinema taiwanês, que é maravilhoso, com cineastas como Tsai Ming-Liang, Edward Yang ou Hou Hsiao-Hsien, existem até filmes falados em japonês, porque eles tinham uma nostalgia do tempo de quando eram ligados ao Japão. É interessante prestar atenção a esses cinemas, porque aprendemos sobre suas culturas. E, se trazemos Hollywood para a equação, só complica, a gente vai ter uma imagem distorcida disso. Há teorias que tentam analisar todos esses cinemas com base nas convenções holywoodianas, então parece que esses cinemas são rebeldes, sempre querendo quebrar alguma coisa, quando, na verdade, algumas vezes, não. Eles têm o próprio fluxo.
CONTINENTE E são esses momentos localizados em um certo contexto histórico, portanto, que interessam no contexto do world cinema hoje?
LÚCIA NAGIB Nós precisamos ter a generosidade de não chegar com o esquema pronto. Vamos deixar esses cinemas dizerem o que é que eles são. Existem historiadores, por exemplo, que afirmam que, na Rússia, só após Eisenstein e outros cineastas terem visto os filmes americanos é que eles mudaram completamente o seu estilo e inventaram o cinema de montagem. Acho que, ao focalizar por aí, você perde os referenciais locais. Em vez de chegar com um esquema, vou ver o que esses filmes estão me dizendo, criar um monte de interrogações na minha cabeça e tentar explicar.
CONTINENTE Nesse sentido, até o próprio cinema hollywoodiano pode ser enquadrado dentro desse contexto que você propõe para o world cinema em que todas as cinematografias são valiosas e dignas de apreciação?
LÚCIA NAGIB De certa forma, sim, porque há momentos do cinema hollywoodiano que são apaixonantes e não podemos esquecê-los. Tiveram uma influência crucial, capital no modo como se faz cinema no mundo. Mas é importantíssimo ressaltar que existem coisas cruciais também nos outros cinemas, começando com Lumière e Méliès, os fundadores. E não existe uma lei que nos obrigue a ficar olhando só para Hollywood. E, se você olhar na produção de estudos de cinema, existe a predominância de livros sobre esse cinema. Isso é algo massacrante. Assim, quando lancei a minha série sobre o world cinema, que já tem 30 volumes publicados, decidi que não deveria me preocupar com essa produção.
CONTINENTE Mas isso é se opor a ele, de certa forma.
LÚCIA NAGIB Não. É no sentido de abrir para outros cinemas. Quando estava escrevendo o artigo Towards a positive definition of world cinema, olhei para todas as histórias do cinema e notei a existência de uma fatia daqueles estudos grande demais para Hollywood. Tem algumas histórias do cinema que fazem um volume para Hollywood e um outro para os demais cinemas. Acho que existe uma desproporção. Hoje, temos uma variedade muito maior de métodos de abordagem, de interesses, e os cinemas fora de Hollywood deixaram de ser exóticos. Os filmes do tailandês Apichatpong Weerasethakul estão disponíveis para qualquer pessoa e os críticos escrevem sobre ele nos jornais e isso é normal. São obras que, há alguns anos, seriam completamente ignoradas.
CONTINENTE A Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, em seu encontro anual em 2013, abriu um grande espaço para debater o conceito de world cinema. Como você vê essas discussões e reflexões sobre o world cinema no Brasil?
LÚCIA NAGIB Eu acho que o Brasil é um dos melhores países para isso, muito aberto, receptivo. Tive a sorte de minha formação ter acontecido em São Paulo, onde eu abria os jornais e lia sobre filmes do mundo inteiro, sobretudo durante as edições da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, do Leon Cakoff. Ela era uma vitrine maravilhosa e com cineastas do mundo inteiro indo para lá. Também vi todo o novo cinema alemão de primeira mão graças ao Instituto Goethe, que exibia cópias dos filmes em 16 mm por todo o Brasil. Tinha ainda a Fundação Japão, que fazia festivais maravilhosos de filmes japoneses. Quando cheguei à Inglaterra, ninguém acreditava que o Brasil tivesse esse tipo de abertura aos filmes de diversas partes do mundo.
CONTINENTE Essa análise mais ampla da produção do mundo inteiro é também resultado de um mundo globalizado, com mais possibilidades de trocas de informação. Isso alteraria o panorama do world cinema na medida em que a globalização impulsiona as realizações cinematográficas transnacionais?
LÚCIA NAGIB A questão das produções transnacionais dá essa impressão de que hoje é quase impossível se falar de cinematografias nacionais, mas eu acho que não é tão simples assim, por dois motivos. Primeiro: o cinema é global e transnacional desde a sua origem. Lumière, quando criou o cinematógrafo, pretendia vender aquela máquina para vários países. Então, viajou para o Egito, Japão; ele queria espalhar o seu produto e era importante que houvesse filmagens nesses lugares. Por outro lado, o excesso da globalização cria a resistência do nacional, estimula alguns realizadores a querer preservar a identidade de suas culturas. Portanto, na mesma medida em que você vê cineastas e produtoras indo em busca de dinheiro de programas de incentivo internacionais, dos workshops e mostras dos festivais para fazer um filme, também vê a emergência de filmes baratos, pobres e que surgem num lugar onde menos se espera. Falo, por exemplo, desse filme maravilhoso chamado Atanarjuat (Zacharias Kunuk, 2001), o primeiro longa-metragem escrito, dirigido e atuado na língua inuktitut, feito inteiramente com financiamento local e que fala da história do povo inuit (esquimós), suas lendas, e você descobre, de repente, a identidade cultural deles, de uma terra, porque sua existência faz sentido naquela terra, naquele lugar gelado, e todos os mecanismos que eles desenvolvem para sobreviver num ambiente tão hostil.
CONTINENTE Nesse contexto, com todas as reações locais, poderíamos afirmar que o interesse dos estudiosos do world cinema por essas cinematografias isoladas ou localizadas é também uma ação política? Que posicionamento político seria esse?
LÚCIA NAGIB Quem está determinando esse posicionamento político são os próprios cineastas. Vamos pegar o caso de Pernambuco, que é bastante curioso, pois ele escapa um pouco ao que afirmei anteriormente sobre como ocorre a preservação de uma identidade local. Embora os cineastas pernambucanos estejam captando recursos e apoios na Europa, nos Estados Unidos, para completar o orçamento dos seus filmes, existe uma grande preocupação em definir claramente de que lugar eles estão fazendo cinema. Kleber Mendonça Filho tem uma pauta política clara tanto em O som ao redor (2013) quanto no seu novo filme, Aquarius (2016): a expansão imobiliária tresloucada que está acontecendo no Recife, com problemas específicos e com um passado também particular. Uma história que vai lá para trás, para o período colonial e a exploração resultante do plantio da cana e da indústria do açúcar, do senhor de engenho, dos escravos que depois viraram mão de obra barata, quase escrava. E o que ele descreve do agora remete a esse passado. E, embora seja algo bastante específico daquela região, pelo tipo de olhar, pelo tipo de intervenção, ele se comunica com iniciativas de outros países que tiveram esse mesmo tipo de preocupação. É curioso ver que esse cinema dialoga com o trabalho de um cineasta como Jia Zhang-Ke, da China. Ele também está se rebelando contra algo do seu país, no caso, a construção da barragem da hidroelétrica das Três Gargantas, que provocou a inundação de diversas cidades e o deslocamento de milhões de pessoas, motivo do seu filme Em busca da vida (Still life, 2006).
CONTINENTE Depois de tantos anos dedicados ao world cinema, você agora está coordenando um projeto sobre cinema brasileiro. O que ele traz de novo?LÚCIA NAGIB O projeto se chama Towards an intermedial history of Brazilian cinema: Understanding intermediality as a historiographic method. Normalmente, nós compreendemos a história do cinema como um movimento evolutivo. Sai do cinema primitivo para um modo clássico e depois evolui para o moderno, e, depois, para o pós-moderno. Não acho que estamos sempre evoluindo, acredito que há idas e vindas. Avanços e retrocessos. Coisas que são consideradas ultramodernas ou experimentais, hoje; ao compararmos com o cinema dos primeiros tempos, descobrimos que muitas dessas coisas já estavam lá. Houve vanguardas em toda história da arte e o cinema é uma mistura de artes, ele é o conceito wagneriano da arte total. Nele, você tem música, literatura, pintura, fotografia, e esses meios estão entrelaçados. Assim, a proposta do projeto é ver como o cinema se relaciona com essas artes e construir uma história com base nisso, que não é evolutiva, mas que localiza momentos em que essa interação com as artes esteve mais efervescente e visível, e observar como esses momentos se relacionam. Por exemplo, analisar as chanchadas, que são filmes do gênero musical, em relação a outros momentos do cinema brasileiro em que a música também foi forte, que pode ser o cinema contemporâneo feito em Pernambuco, em que os filmes do chamado árido movie tiveram um diálogo direto com o manguebeat. Ou comparar com as produções da Vera Cruz e da Maristela, em que também havia a interação do cinema com o teatro de revista. Ver como isso criou um modo de atuação, como a música determinava a distribuição dos filmes quando saíam as marchas de carnaval. O nosso foco é intermedial, para poder dar espaço a todas essas manifestações. Às vezes, você acha que um filme não é interessante em si, mas, quando começa a olhar o modo como essas artes foram abordadas nesse filme e a influência que tiveram, começa a ver que ele fica mais interessante.