Apesar desse amplo repertório de combinações, é preciso pontuar que nem tudo que é molhado é molho. Há uma linha tênue que o distingue de outros estados líquidos da gastronomia. Profissional dos que mais prezam pelo rigor técnico na confecção desses preparos, o chef Hugo Prouvot destaca que ele deve ter a força de sabor que deve enjoar, se tomar de colheradas, como uma sopa, por exemplo. “Há um tempo, foi popularizado o termo redução, não como técnica espessante de concentração de sabores, mas como um produto final, o que é escorregadio. Uma redução de fruta é um coulis, uma calda. Há reduções que são molhos, e reduções que não são”, dissocia. “O molho precisa do prato. Não funciona sozinho, como um suco ou uma sopa”, resume o chef Joca Pontes, do Ponte Nova.
Discurso harmônico mesmo entre os profissionais do setor passa pela importância de um bom caldo para a excelência do resultado final do molho, sobretudo na cozinha clássica, na qual ele resulta da longa cocção de ossos, aparas de carnes, legumes e aromáticos. “A execução de molhos não é simples e exige uma boa noção prática do profissional, uma vez que se utiliza de técnicas para transformar ingredientes básicos em um produto final com cor, aroma, textura e sabor que marcam bastante o prato final do qual ele fará parte”, acredita a professora Luciana Sultanum. De sua parte, Taciana Teti garante que a base correta de caldo do osso promoverá aos bons molhos escuros uma trama espessante para adquirir a textura de napar, ou seja, uma leve camada aveludada em cima da carne.
Outro acordo entre os cozinheiros passa pelas características que o molho deve reunir para obter um resultado feliz: sabor, cor, textura e brilho. Para a obtenção desses elementos, refinamento técnico. “No caso do clássico molho de carne, é preciso estar reduzido ao ponto certo, não ter espessantes (farinha de trigo), ser ‘montado’ na manteiga (monter au beurre) e, por fim, o crucial, que seria estar com sal e pimenta bem-dosados”, lista Joca Pontes.
E tanta dedicação em torno de um aparente papel coadjuvante vem sendo reconhecida de outra forma. É que se nota que os clientes estão mais próximos de boas experiências gastronômicas ao reconhecer a qualidade de uma emulsão bem-feita, de um molho bem-reduzido. “A exigência aumentou. É como se, antes, você pudesse errar no molho, hoje, não”, acredita Rogério Costa, que produz mais de 10 tipos de molhos para o cardápio do Mingus.
Essa mudança também abriu horizontes para diferente cenário. O da maior liberdade de criação para o cozinheiro, que passou a realizar intervenções nesse receituário, utilizando ingredientes antes considerados inusitados. “Buscam-se novas texturas, temperaturas diferentes, porém, sempre com o objetivo de acentuar o sabor da preparação, ou talvez, ‘brincar’ com as sensações no paladar do comensal”, avalia Teti. Por outro lado, mesmo diante dessa nova prática, é importante frisar que a metodologia clássica serve como principal base nos restaurantes que, em grande parte, têm referência nos princípios gastronômicos franceses. “São, certamente, os itens que tomam mais tempo e trabalho nas cozinhas profissionais, já que representam um grande diferencial no resultado final dos pratos. Mesmo para a intervenção, a base é muito importante”, acredita Luciana Sultanum.
UM DESAFIO À QUÍMICA
É esse alicerce técnico que garante, por exemplo, o êxito de um béarnaise, considerado o rei dos molhos, e um dos mais difíceis e clássicos de todos eles. “Se não souber fazer um béarnaise, não pode ser considerado um chef. Aliás, ele não é nem um cozinheiro”, sentencia o restaurateur Nicola Sultanum. Feito à base de gema, estragão, cebola picada, redução de vinho branco, umas gotinhas de limão, sal, pimenta-do-reino, (muita) manteiga e (muito) cuidado, a emulsão é considerada uma improbabilidade química por unir elementos que não se juntam. Ou, pelo menos, foi ensinado que não: água e gordura.
Fino acompanhamento para os grelhados, o molho amarelado que, junto ao corte de entrecôte e fritas sequinhas, forma um dos ménages mais celebrados na cozinha mundial, é a receita mais fácil de dar errado no mundo. Está a um piscar de olhos de se tornar um punhado de ovos untuosamente mexidos ou uma maionese equivocada. “Ele nem sempre vai ficar igual e isso é sua mágica. Tê-lo no cardápio do restaurante é um grande desafio, é o tipo de preparo que para a cozinha”, depõe Nicola. Para o chef Rogério, que executa a receita na casa, o béarnaise tem que ter sabor, a cor e, acima de tudo, a textura.
Para conseguir o intento, alguns testes de laboratório comprovam que a temperatura ideal de cocção deve ser igual a 65º C. Mais que isso, coagula. No Mingus, um dos poucos endereços que oferecem a iguaria na cidade, o molho é preparado sob a técnica de banho-maria para o controle ideal da temperatura. O mérito não é só do chef. “Às vezes, sem que se dê conta, ele foi ajudado pela interação correta entre partículas de gordura, graças à qual elas se mantêm em suspensão. Essa interação, que envolve forças de atração e de repulsão, é que assegura estabilidade e consistência a um béarnaise”, explica a química Renata Cruz. Qualquer alteração nos ingredientes – na quantidade ou na qualidade – ou no modo de prepará-los pode romper o sutil equilíbrio que determina a intensidade daquelas forças, levando o molho ao lixo. Então, podemos chamar um molho de complemento?