Mas voltemos às narrativas nas quais o mundo exterior também ganha um belo retrato, dividindo as atenções com o universo interior dos escritores. Um dos autores mais procurados nesse campo é o norte-americano Paul Theroux, um apaixonado por trens que já escreveu sobre mais de 20 viagens. Em sua primeira experiência de deslocamento transformada em livro, saiu de Londres, perambulou por Bombaim, Kuala Lumpur, Saigon e diversas outras cidades e vilarejos até chegar a Tóquio. Da Inglaterra para o Japão e de novo para casa, utilizou quase que exclusivamente o transporte ferroviário, indo pelos famosos trilhos do místico Expresso Oriente e voltando pela congelante Transiberiana. A viagem aconteceu no começo da década de 1970 e foi registrada em O grande bazar ferroviário, um clássico do gênero. O trajeto foi refeito por ele há alguns anos e registrado no livro Trem fantasma para a Estrela do Oriente (2008), que, além de uma narrativa de viagem, constitui-se um precioso registro das mudanças ocorridas nesses lugares.
As viagens feitas por Theroux são marcadas também pela gente que encontra pelo caminho. São desde encontros fortuitos – o taxista, a recepcionista do hotel – até escritores renomados. Um desses grandes momentos se deu com Jorge Luis Borges, em Buenos Aires, durante uma viagem que cortava a América de norte a sul. Nesse fragmento de narrativa, presente em Até o fim do mundo, Theroux coloca o leitor na sala de um dos maiores artistas de todos os tempos. “Não havia tapetes no chão, para que o homem cego não tropeçasse; nenhuma mobília mal colocada contra a qual ele pudesse colidir. Não se via um grão de poeira no chão brilhante. As pinturas eram indefinidas, mas as gravuras em metal eram identificáveis […]. Havia uma grande variedade de livros. Um canto era quase todo ocupado por edições da Everyman, os clássicos em traduções inglesas – Homero, Dante, Virgílio…”, escreve, antes de contar como foi o encontro com o mestre argentino, que termina com Borges convidando-o a voltar na noite seguinte para lhe fazer uma leitura de Edgar Allan Poe.
As viagens de Theroux costumam ser um tanto convencionais, ainda que marcadas pela aventura. Há autores viajantes que optam por elementos pouco habituais para lhes fazer sair de casa, o que, invariavelmente, acaba propiciando experiências singulares também ao leitor. O italiano Tiziano Terzani, por exemplo, deixou sua terra natal e partiu para o Extremo Oriente sem pegar aviões por um motivo um tanto quanto excêntrico. Se Theroux fez caminho semelhante pela convicção de que por terra viajamos melhor – aproveitando cada cultura e dando mais tempo a nós mesmos para desfrutarmos os lugares –, Terzani seguiu por chão graças a uma profecia: um adivinho tinha lhe dito que não voasse de jeito nenhum ao longo do ano de 1993; as chances de morrer eram enormes.
Daí surgiu o livro Um adivinho me disse, que leva o leitor ao sudeste asiático, onde o autor recorrentemente procura outros adivinhos para confirmar ou não tal profecia. “Eu era o primeiro estrangeiro para quem lia o futuro. Seu método consistia em partir do ano do nascimento, perguntar um número inferior a 109, e com uma varinha de prata fazer complicadas contas nas cinzas, cancelá-las, fazer outras e traçar da vida um quadro que em um instante estava ali e no instante seguinte desaparecia com um simples movimento da caixa que devolvia às cinzas uma superfície lisa, sem marcas. Gostava dessas verdades porque eram mais efêmeras que os horóscopos escritos no papel”, relata em certo momento, colocando quem lê a obra também à frente daquele futurologista do outro lado do mundo, na primeira metade da década de 1990.
Outro escritor que vai para aqueles cantos do planeta propulsionado por uma razão heterodoxa é Nick Tosches, que deixou Nova York e perambulou pela Tailândia, Camboja e Hong Kong e com um objetivo claro: encontrar alguma casa de ópio para vivenciar a esfumaçada tradição relegada e ilegal em praticamente todo o mundo, o que invariavelmente leva autor e leitor para uma viagem pelo submundo dos países por onde passa.
“É uma cidade de muitas cobras. A noite é abrandada apenas pelo brilho suave das lanternas coloridas. Com o canto do olho, vejo uma enorme criatura rastejando perto de mim: uma píton de espessura assustadora. Mas seus olhos se erguem e fitam os meus, e são olhos humanos: é um mendigo sem ombros retorcendo-se sinuosamente por entre as mesas, sobre a terra escura e fria. Seu olhar humano fica gélido como o de uma naja”, escreve, registrando um desses momentos nem sempre solares que costumam marcar qualquer viagem que não se limite a um resort em que se passa dias isolados da realidade.
Claro que viver o que Theroux, Terzani, Tosches e muitos viajantes-escritores – como Airton Ortiz, talvez o Paul Theroux tupiniquim, ainda que sem preferência pelos trens – viveram é a melhor opção para qualquer um. Só assim se pode ter as próprias vivências e reflexões sobre cada experiência. No entanto, se a quantidade de lugares a se conhecer é muito maior do que os recursos disponíveis, deslocar-se na companhia de escritores costuma ser um aprendizado deveras enriquecedor.