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Céu: a força da delicadeza

Em 'Tropix', seu quarto álbum, produzido pelo marido, o baterista pernambucano Pupillo, a cantora paulistana aproxima a Tropicália do pós-punk eletrônico

TEXTO Ronaldo Bressane

01 de Junho de 2016

Foto Renato Parada

Mas a delizadeza pode ser uma força”, me devolveu a amiga, se espreguiçando. “Ser delicada não te impede de ser forte”, ela desenvolvia, enquanto enrolava os cabelos ruivos numa trança, os olhos azuis gelando qualquer contestação. Levantou-se e foi buscar outro gim-tônica; no ar, uma voz bisava o que ela havia acabado de me dizer. “Logo que o perfume do invisível te inebriou/ você me viu/ e o mundo também/ E o que estava quietinho ali/ se mostrou, meu bem”. Quando a amiga voltou com o drinque, eu já sabia como começar este texto sobre a Céu.

Agora que chega a seu quarto álbum de estúdio em 12 anos, já se pode afirmar que a carreira de Maria do Céu Whitaker Poças, 35 anos, tem um desenho todo particular — traçado em nanquim 0.01, pena finíssima. Lançado no fim de março, Tropix é outra releitura da forma como a cantora paulistana veio ao mundo: a delicadeza. “Por delicadeza perdi minha vida”, escreveu Rimbaud. Pois é com esta qualidade que Céu ganha a sua. Quando a conheci, em 2005, ela lançava o primeiro álbum, CéU, e conseguia ser ainda mais tímida que hoje. Nossa primeira entrevista foi na Livraria da Vila; no movimentado café eu mal ouvia a sua voz: lembro que pedi várias vezes para que repetisse as respostas. Ela dizia só ter criado couro para subir ao palco depois de um episódio bizarro. Começou a carreira participando de shows de amigos e fazendo pockets em lugares como o restaurante Grazie a Dio e a Galeria Ouro Fino, em São Paulo, onde encarava o microfone meio durona. Pouco antes, tinha passado uns meses em Nova York e treinava a voz em cafés onde cantava bossa nova — para pagar as contas, trabalhava faxinando e lavando prato em bares.


Quarto álbum de Céu, Tropix foi produzido pelo baterista da Nação Zumbi, Pupillo.
Imagem: Reprodução

“Eu cantava Eu sei que vou te amar, toda concentrada, e quando chega naquela última parte, mais dramática, em que a gente tem que fazer uma pausa”, Céu contava, “Escuto um cara berrando pro garçom: ‘Me traz uma picanha!’”. Quase chorou — de raiva, de humilhação.

Em nosso segundo encontro, 11 anos depois, agora no café do Espaço Cult, sempre na Vila Madalena onde a cantora oferece o ar de sua graça — ela mora ali perto, na Vila Beatriz —, riu da recordação da maldita picanha e lembrou outro show fundamental para fazê-la criar um espaço todo seu em uma apresentação. “Aí fui pra Paris e fiz um evento no La Cigalle, um lugar de jazz chiquésimo; aquela plateia cheia de pessoas de cabeça branca e eu uma menina tímida… Foi difícil, quase deu branco. Mas daquele show pra frente foi que comecei a encarar os shows com mais leveza”, ela diz.

Filha da artista plástica Carolina Whitaker e do maestro Edgar Poças, que se notabilizou por compor as canções do grupo infantil Balão Mágico, nos anos 1980, em fins dos anos 1990 Céu conheceu o produtor Antonio Pinto, com quem morou em Nova York, e, através dele, Beto Villares. Tanto Antonio quanto Beto produziram trilhas para o cinema nacional e internacional (Antonio indicado a Emmys e Oscars) e a produtiva união com a cantora criou uma expressão ao mesmo tempo local e global. Cedo Céu percebeu que o som que buscava demandaria uma produção com visão “glocal” — no nível do São Paulo confessions (1999), álbum produzido pelo músico sérvio-paulista Suba, que se tornou, pela originalidade conceitual e perfeição técnica, um influente modelo a quem buscasse refundir ritmos brasileiros através da eletrônica, com um apego especial pela bossa nova. (Antes de morrer tragicamente em 1999, Suba produziria o clássico Tanto tempo, de Bebel Gilberto.)

Céu, no entanto, se afastou da bossa nova, gênero tão afeito a novas cantoras no Brasil, para percorrer um caminho próprio — mas, apesar da distância, sua voz doce, pequena, colocada e afinadíssima lembra o registro de Astrud Gilberto. A cantora surgiu em uma época ainda reticente de compositoras — havia Marisa Monte, Vanessa da Matta, Cibelle —, cena que hoje tem a companhia de um time muito mais diversificado, como as amigas Anelis Assumpção, Tulipa Ruiz, Karina Buhr e Ava Rocha. Suas composições, bem como suas escolhas, como Bob Marley e a dupla Bosco-Blanc em CéU, receberam tratamento técnico finíssimo, que seria mantido em Vagarosa (2009), Caravana Sereia Bloom (2012) e no recente Tropix. A mesa de comando do estúdio, agora ocupada pelo marido Pupillo e o multi-instrumentista francês Hervè Salters (General Elektrik), já pertenceu, fora Villares e Pinto, a músicos como Gustavo Lenza e a Gui Amabis — este, o pai de sua filha Rosa Morena.

Entre os músicos que tocaram em seus álbuns estão Lúcio Maia, Jorge DuPeixe, Dengue e Pupillo (da Nação Zumbi), Fernando Catatau e Dustan Gallas (do Cidadão Instigado), Bruno Buarque, Curumin, Rodrigo Campos, Thiago França, Guizado e o parceiro de todas as horas Lucas Martins — “um verdadeiro quem é quem na cena brasileira”, conforme citou o guitarrista e jornalista Luiz Chagas em recente crônica no Estadão. Inquieta, Céu também gravou com Rica Amabis, Seu Jorge, Herbie Hancock; formou com as amigas Anelis Assumpção e Thalma de Freitas o trio Negresko Sis; seu primeiro álbum, CéU, vendeu 500 mil cópias, e o terceiro, Vagarosa, 150 mil; foi indicada quatro vezes ao Grammy Latino; homenageando um ídolo de adolescência, excursionou cantando o clássico álbum Catch a fire de Bob Marley; logo antes de Tropix, gravou um álbum ao vivo no Centro Cultural Rio Verde, no epicentro de sua Vila Madalena.

Céu estava ansiosa no Espaço Cult. Cabelos encaracolados cheios, escondendo os olhos e as famosas pintinhas — citadas na canção Grains de beauté, de Vagarosa —, sapatos e camisa brilhantes, a postura de Céu, mais segura, contrastava com a daquela menina tímida de jaqueta jeans que vi na Livraria da Vila. Havia concedido cinco entrevistas antes da chegada da Continente, mas sua ansiedade era por outro motivo: dali a alguns dias ela sairia em longa turnê. Raridade em um meio tão volátil como a MPopB, a turnê de lançamento somava 30 shows em mais de um mês de apresentações entre Europa, EUA e Brasil. Por pelo menos três semanas seguidas ficaria longe de sua Rosa Morena. Na escola, a filha, hoje com sete anos, nem sempre pode acompanhar a mãe nas turnês, como em outras ocasiões — a menina já preencheu quatro passaportes. Caseira, Céu nem via a hora de voltar.

PÉ NA ESTRADA
“Pegar estrada deixa você sujeito a coisas sem controle”, ela diz — em uma frase muito significativa para quem afirma ser do dominador signo de “Satanáries”. “Hoje me sinto em casa no palco. Claro que antes eu fico nervosa: existe um frio na barriga eterno. Mas já curto dançar, me soltar. Só que na estrada rolam umas coisas louconas. Vou muito pra Alemanha, onde tem um cara que vai em todos os shows — e eu sei que ele vai estar lá de novo. No começo ficava muito assustada. Ele é gigante e fica na frente do palco, regendo a gente, a banda toda, briga com o baterista, chocha o show!”, ri. “Só na décima música é que acha bom. É a loucura dele. Tenho um outro fã que foi nazi, tinha banda de metal; já me disse que ouvindo meu som e os Beastie Boys é que virou o oposto, e hoje me segue também”, conta.

Céu faz questão de afirmar que seu esquema lá fora é de rock, não de cantora brasileira. “Estar em uma banda me ensinou a me virar”, diz, com o peso de ser dos poucos brasileiros a participar do programa de Jools Holland. “É demais, um monte de artista foda fazendo um puta som, respeito total com os músicos e ninguém estressado: muito astral”, empolga-se. “Podia ter um programa assim no Brasil. O Holland não tem ego, faz questão de deixar o músico brilhar. Quando acabou, falei pra produtora: please come to Brazil!”.


Sonantes é o projeto paralelo da cantora com Dengue, Gui Amabis, Pupillo e Rica Amabis. Foto: Fabiano Feijó/Divulgação

Quando reclamo que Tropix é apenas seu quarto disco em 12 anos, ela reclama de volta. “Mas é porque o músico brasileiro vive de show, tem que fazer muito show pra pagar as contas. Quando vai compor?”, questiona. “Fora isso, há poucos lugares para tocar. O Sesc é maravilhoso, paga bem e dá toda a assistência, mas por contrato não deixa a gente fazer shows muito antes nem muito depois. E é um dos raros lugares em que o ingresso é barato. Se eu vou fazer shows em casas de jazz, que custam mais caro, o fã reclama”, explica.

E quando ela compõe, como compõe? “Escrevo letras, inícios de letras, não escrevo narrativas. Sempre tive relação mais forte com música. A letra veio depois. Hoje gosto muito de ler Neruda, Mia Couto, Manoel de Barros. Nesse minuto estou lendo a biografia do Kraftwerk. Meu processo é orgânico, recorta e cola, sou meio doidona, pego uma parte, colo em outra, junto, faço as músicas na cabeça, jogo no piano, uso o (software) Garage Band… De Sangria eu só tinha melodia, aí pedi a letra pro Lira e virou aquele bolero com bongô”, descreve. Do processo da criação, Céu passa a contar como foi o de gravação. “O Caravana Sereia Bloom foi lo-fi, esse é hi-fi”, contextualiza. “Tem a ver com Kraftwerk, samba, bolero e trip-hop. Queria fazer uma ode brasileira às máquinas. Só que a nossa máquina é enjoadinha, enferruja com a maresia”, brinca.

“Quando estava no final do Caravana, senti que precisava contar uma nova história. O Pupillo sabia o que eu queria — ele tem essa loucura de fazer beats o tempo todo, então rolava um processo de pré-criação do disco entre a gente. Aí vi que queria trabalhar com alguém de fora, fazer um power trio só baixo-bateria-synth. E acabei conhecendo o Hervé através do Curumin. Ele faz um soul pop animal, eu o vi nas turnês em San Francisco e Berlim: toca muito, manja muito de harmonia, é loucão no palco. Curti a vibe do cara e o convidei para vir passar uma semana gravando com a gente. Levei pra padaria, dei um açaí, aí o Hervé começou a entender tudo e deu certo… até foi meu parceiro numa música”, diz, rindo, sobre Varanda suspensa, que descreve a casa do avô em São Sebastião.

GAROTA DA BANDA
Em vez de fazer a diva, Céu prefere ser “a garota da banda”, como nos álbuns de jazz. Daí Tropix ter um som tão preciso, seco, equilibrado, com a mesma fisionomia do começo ao fim. “Era um sonho fazer um disco com a mesma turma.” Ser ariana a torna uma cantora muito controladora? “Acho que hoje a gente tem mulheres mais fortes na cena, como a Tulipa, a Karina. Mas sei delegar. Administro a minha casa! Curto me cercar de gente legal, aí confio”. O baterista da Nação Zumbi, apesar de produtor do disco, tem presença discreta. “Ele trabalha para a música”, Céu justifica. “Entende do que a música precisa — trouxe de volta a tamba junto com o pitch eletrônico, por exemplo. É moderno e velho ao mesmo tempo; tem muita elegância”, elogia.

Não deixa de ser curioso que Céu lance o quarto álbum no mesmo ano em que Afrociberdelia, primeiro disco em que o marido mangueboy tocou, completa duas décadas. O manguebeat foi uma influência fundamental na sua criação. “Escutei manguebeat a primeira vez em Nova York e fiquei chocada: traduzia tudo o que queria ouvir. O Brasil tem essa cultura do possível, e o manguebeat traduzia o que acontecia fora de um jeito nosso, de realizar as coisas da maneira que a gente pode. É uma continuidade do modernismo e do tropicalismo, e hoje você vê as pessoas trazendo referências contemporâneas e mundiais sem perder o foco no Brasil”, ensina, elogiando as composições de Jorge Du Peixe, que outra vez comparece como parceiro, em A nave vai.

“Jorge conduz a voz de maneira diferente, é imagético, pega muitas coisas que ouve na rua — uma coisa que eu também gosto de fazer”, diz. Pupillo apresentou ainda uma referência central, que acabou permeando toda a sonoridade lo-fi: a banda paulistana Fellini, que era amada por Chico Science. No marco zero do manguebeat, há o registro de um show chamado Zumbi canta Fellini em que a banda pernambucana só tocou músicas da banda paulista. “Eu não conhecia! Foi o Pupillo quem mostrou os discos Amor louco e Fellini só vive duas vezes. Fiquei louca! Foi difícil escolher o que gravar, mas acabamos pegando Chico Buarque song. A outra opção era Teu inglês, porque meu inglês também é ruim, eu sempre falo mal nas entrevistas lá fora (risos). Estava ouvindo muito pós-punk e foi legal rever SP ali. Fiquei tão apaixonada, que hoje eu quero fazer um disco só cantando Fellini.”

De fato, a sonoridade eletrônica de Tropix tem mais a ver com os anos 1980 — embora o belo clipe em preto e branco de Perfume do invisível, dirigido pelo cineasta Esmir Filho, aproxime Céu dos globos espelhados dos anos 1970. A sinestésica canção tem uma influência frequente para Céu: os quadrinhos — o título é homônimo do safado álbum de Milo Manara. “Esmir é incrível, eu tava a fim de trabalhar com ele há muito tempo. O clipe ficou lindo e tem muito a ver com o conceito do disco: minimalista, com um ruído na maquininha.” Outro livro a surgir como pano de fundo é Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak, na suave A menina e o monstro — um lullaby que trata da complexa relação entre mãe e filha. Concluindo a seção de parcerias, o ouvido esperto de Céu chamou Dinho, da banda goiana Boogarins, para concluir Camadas. “É das melhores bandas da atualidade. O Dinho chegou no estúdio, pegou o violão e acabou a música em uma hora. Eu tinha iniciado a melodia com letra, ele continuou. Ele é muito legal, a voz, o jeito de tocar”, elogia. Fellini, Nação Zumbi, Boogarins: intuitivamente, Céu traçou em seu álbum a linha evolutiva da MPopB lisérgica.

GESTOS POLÍTICOS
Inevitável, já que a entrevista se deu um dia após a massiva manifestação pró-impeachment, falar de política. Naquele domingo, Céu não havia saído de casa. “Eu estava indignada! Manifestar é importante, reformar é importante, mas mudar o governo para a direita usando subterfúgios eu acho um infortúnio para nossa democracia, 50 mil passos pra trás”, ela afirma. “Protestar contra a corrupção é legítimo, eu adoraria estar lá se fosse só por isso. Só que nessa confusão estão acontecendo manobras perigosas. Tenho medo do que o Brasil pode virar. Nossa memória curta pode nos trair”, adverte.

Política é também, de certo modo, o cenário de Rapsódia brasilis. “É a história de uma menina de família aristocrática que prefere ficar na cozinha. Me sentia melhor naquele lugar. E também é sobre o Brasil, essa relação da babá, criação, terceirização de filho. Como você contrata uma pessoa que faz tudo o que você não faz, que limpa a sua sujeira, mas é alguém com quem você nunca se relaciona?”, confronta. “Por que você contrata uma pessoa e veste ela de branco? Eu nunca tive babá. Quando viajava, às vezes levava a professora da Rosa. A moça que trabalha em casa é um anjo em minha vida, mas nunca contratei alguém o tempo todo para a Rosa. Daí essa música, que é uma reflexão sobre casa- grande e senzala… uma relação que ainda acho estanha.”

“O sussurro pode ser mais alto que um grito… um recado pode ecoar mais longe que uma manchete na primeira página… um redemoinho pode conter mais diabos que um tornado… e um fiapo de nuvem pode trazer uma chuva mais pesada que uma nuvem cúmulo-nimbo”, minha amiga dizia, já no terceiro gim-tônica, enquanto eu finalizava este texto.

O modo de Céu falar de política, discreto, pode ser mais tonitruante que as histerias políticas tramadas em Brasília. “A música Bobagem é sobre feminismo. Cumadi, também. Gosto de falar de modo pontual, não sou falastrona. A mulher ficou sobrecarregada com tanta coisa que resolveu fazer. São conquistas. A gente paga um pato por isso, mas é bom saber que a mulher saiu da casinha!” O tempo acabava e Céu olhou para cima antes de voltar às fotos. “Acho que vai chover”, afirmou, meio distraída, se despedindo. Sim, sem dúvida a delicadeza é uma força: naquela hora o firmamento só continha um fiapo de nuvem… mas pouco tempo depois o mundo caiu sobre a Vila Madalena. 

RONALDO BRESSANE, jornalista e escritor.

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