A bruxa de Blair se tornou, em 1999, o primeiro longa-metragem parcialmente filmado em fitas de 8 mm a ser exibido em larga escala no circuito comercial. O enorme sucesso alcançado (o faturamento global chegou a US$ 240 milhões, transformando o falso documentário no quarto filme de horror de maior bilheteria da história do cinema) abria uma brecha para o uso massivo, na indústria profissional do audiovisual, de tecnologias audiovisuais de registro e circulação que eram, até então, restritas a práticas consideradas amadoras.
Não foi, claro, um processo automático, muito menos simples. Para se ter uma ideia, quando o longa Atividade paranormal (Paranormal activity) começou a circular em exibições restritas, em 2006, os executivos de Hollywood sequer chegaram a considerar o lançamento do filme diretamente em salas de cinema; eles desejavam realizar uma refilmagem, com atores e equipamentos ditos profissionais. O filme do israelense Oren Peli havia sido gravado com uma câmera digital Sony, equipamento tido por muitos como amador. Depois que a Paramount comprou os direitos da obra, foi necessária a intervenção de ninguém menos que Steven Spielberg, para garantir que o filme original fosse lançado do jeito que estava, com estética amadora. O resultado? Outro sucesso de público, com US$ 193 milhões arrecadados.
PROFISSIONAL X AMADOR
Àquela altura, a invasão da indústria do audiovisual por tecnologias amadoras já era uma realidade. Na primavera de 2004, para se ter uma ideia, a prestigiada revista de cinema Spectator dedicou um número inteiro ao fenômeno do filme amador, que começava ali, no rastro da valorização de um novo tipo de amadorismo elogiado por autores visionários como Chris Anderson e Alvin Toffler, a alcançar um novo nível de circulação e consumo midiáticos. O dossiê procurava repensar criticamente o amadorismo no campo do audiovisual. Nele, Broderick Fox lembrou que Hollywood havia desenvolvido, nas primeiras décadas de consolidação da indústria cinematográfica (entre 1910 e 1930), um modelo de produção industrial baseado numa fragmentação cada vez maior do trabalho. Esse modelo havia criado uma longa série de categorias profissionais que exigiam domínio técnico e tecnológico de equipamentos não apenas caríssimos, mas de difícil operação.
Foi exatamente esse modo de produção – adotado, através de pequenas variações, em praticamente todos os mercados de cinema espalhados pelo mundo – que determinou modelos estéticos bastante rígidos para o que chamávamos, até então, de “profissional” e “amador”. Para Fox, historicamente, uma pequena elite de fabricantes de filmes e equipamentos havia monopolizado o mercado de produção de tecnologia audiovisual, estabelecendo a bitola de 35 mm como signo da imagem “profissional”, e rotulando os formatos menores como “amadores”. A partir de então, a padronização estética havia levado ao estabelecimento de um sistema de distribuição de filmes exclusivamente dedicado a produtos esteticamente caracterizados como profissionais e, portanto, a uma compreensão cultural estreita daquilo que é considerado produto profissional. “Tudo isso, ao mesmo tempo, levou a uma definição de determinadas normas e convenções estéticas como profissionais, estabelecendo padrões estéticos inatingíveis, sem grandes quantias de dinheiro e de pessoal especializado, além de níveis de tecnologia muito além do alcance do amador”, escreveu Fox.
É exatamente por essa razão que a divisão rígida das fronteiras dos domínios do profissional e do amador constituiu, durante muito tempo, um “processo histórico de controle social sobre a representação”, nas palavras de Patricia Zimmermann. A fronteira entre amadorismo e profissionalismo passou a ser reforçada periodicamente, ao longo de diversos períodos da história do cinema, pela introdução constante de tecnologias caras e de complexidade técnica crescente, como os sistemas anamórficos de gravação e reprodução de imagens, introduzidos em 1953, e o sistema estereofônico com tecnologia de redução de ruídos Dolby Stereo, em 1975. Sempre que o domínio da técnica parecia prestes a se tornar acessível à categoria dos “amadores”, outras inovações tecnológicas substituíam sistemas anteriores e continuavam mantendo a divisão rígida entre este e o campo profissional.
VIDEOCASSETE
Aos poucos, o controle social exercido sobre essas duas categorias mudou. O surgimento e a consolidação do mercado de vídeo doméstico, com a aparição do videocassete, em 1971, foi um dos primeiros sinais dessas mudanças, nas áreas da circulação e do consumo de bens audiovisuais. Em 1995, quando os produtores de filmes já estavam faturando mais dinheiro com o mercado doméstico do que com as salas de exibição, o VCR (Video Cassete Recorder) começou a ser substituído pelo DVD (Digital Versatile Disc), de qualidade superior. Mais tarde, aparelhos de Blu-Ray e sistemas de distribuição de arquivos digitais de filmes através da internet, de forma legal (VoD, ou Video on Demand) ou ilegal (tecnologias P2P), vieram alterar ainda mais esse panorama.
Em 2007, longa O diário dos mortos dá contribuição à estética do "malfeito".
Foto: Divulgação
A tecnologia de produção também mudou a relação do consumidor com os produtos audiovisuais. As camcorders começaram a ser vendidas em 1983, inicialmente gravando em fitas analógicas, com qualidade visual e sonora muito inferior à resolução vista nas telas das salas de exibição. A divisão entre o filme amador e o profissional, então, era rígida e evidente. Mas as tecnologias digitais que surgiram a partir de 1992 começaram a mudar esse panorama. Camcorders que geravam arquivos digitais de resolução cada vez maior começaram a chegar ao mercado em 2003. Ao mesmo tempo, variações mais robustas da tecnologia digital passaram a ser utilizadas também na produção dita profissional de bens audiovisuais.
No meio dessa constante corrida tecnológica que aproximava, tensionava e borrava os limites entre técnica e estética profissional e amadora, sugiram filmes como os já citados A bruxa de Blair e Atividade paranormal. Na mesma época, as tecnologias de registro passaram a dar saltos técnicos sucessivos, com a introdução de telefones celulares e câmeras portáteis capazes de gravar imagens (e sons), e depois editá-los, em resolução cada vez maior.
Outra variável importante consistiu na mudança gradual do tipo de consumo audiovisual exercido pelos espectadores. Até o aparecimento da Web 2.0 (que permitia o tráfego de dados a velocidades cada vez maiores), do YouTube, das redes sociais e de novos meios de armazenamento e exibição de bens audiovisuais, em 2005, o público que assistia à televisão e ao cinema – a esmagadora maioria do consumo audiovisual – via quase sempre imagens bem-iluminadas, bem-compostas, nítidas e estáveis. No entanto, a proliferação dos dispositivos de registro, associada ao surgimento de múltiplas plataformas de exibição desse material, acostumou gradualmente o espectador a uma estética amadorística: imagens tremidas, borradas, sem nitidez, sem profundidade. Tudo isso contribuiu para alterar significativamente a experiência do espectador com bens audiovisuais.
Além de tudo isso, as grandes redes de TV passaram a recorrer cada vez mais a equipamentos de registros doméstico em reportagens ou programas de entretenimento. A exposição contínua a esses recursos, nos anos que se seguiram, ajudou os espectadores das grandes redes de televisão a se acostumarem a uma estética permeada por imagens precárias ou imperfeitas. Em 1999, as estatísticas mostravam que, em cada sessão de cinema de A bruxa de Blair, pelo menos um espectador passava mal e se sentia nauseado, por causa das imagens trêmulas e escuras. Duas décadas depois, ninguém estranha mais a estética da imperfeição.
PROSUMERS
As novas gerações de equipamentos e tecnologias de boa qualidade a preços acessíveis também ajudaram a romper, de certo modo, o modo de produção culturalmente considerado como profissional. Isso aconteceu ao mesmo tempo em que uma série de pesquisadores, como Charles Leadbeter e Chris Anderson, observaram que, em várias áreas da atividade humana, a distinção entre amadores e profissionais já não era culturalmente relevante. Produção musical e astronomia são áreas citadas por esses pesquisadores, nas quais especialistas pagos (profissionais) e apaixonados diletantes ou iniciantes em um ofício (amadores) trabalham de forma integrada ou conjunta, ou produzem bens cuja diferença não é mais tão clara ou perceptível. O cinema tem sido citado com frequência nas pesquisas sobre a geração Pro-am, ou prosumers, como são chamados os amadores que trabalham integrados ou alcançam resultados de qualidade técnica e/ou estética próxima dos profissionais.
Nesse fenômeno de profissionalização do amador, os filmes de falso found footage de horror exercem um papel de transição bem curioso. Afinal, tais filmes constituem ficções codificadas como documentários. Neles, imagens e sons são cuidadosamente manufaturados para parecerem frutos de registros históricos espontâneos. Essa casualidade costuma ser inscrita na tessitura fílmica através de técnicas que simulam a estética amadora: é o enquadramento que corta partes importantes da imagem, a perda de foco, a iluminação estourada ou deficiente; é a perda do eixo sonoro, a incapacidade de manter os níveis de áudio estáveis, a microfonia, as pancadas e estouros do microfone. Filmes como [Rec] (Jaume Balagueró e Paco Plaza, 2007), Cloverfield (Matt Reeves, 2008), Diário dos mortos (Diary of the dead, George Romero, 2007), Megan is missing (Michael Goi, 2011), Perseguição virtual (Open windows, Nacho Vigalondo, 2014) e Amizade desfeita (Cybernatural, Levan Gabriadze, 2014) estão entre as obras recentes que ajudaram a alimentar e naturalizar a estética do amadorismo. Hoje, o produto dessa estética nos rodeia, e podemos vê-lo diariamente nas reportagens com câmera escondida, nas videocassetadas dominicais, nas imagens da câmera de vigilância e nas filmagens amadoras com telefones celulares, usadas rotineiramente em telenovelas, filmes, noticiários de TV e no uso pessoal.
RODRIGO CARREIRO, jornalista, professor e coordenador do curso de Cinema da UFPE.