Os Aniceto, do Cariri cearense
Ilustração Marisa Luisa Falcão
Raimundo Aniceto sofreu um acidente vascular cerebral, não pode mais tocar o pífaro, nem dançar o Baião Gigante, pantomima em que representava a luta de dois homens com punhais. O acidente comprometeu a fala, o sopro e os passos de Raimundo. Ele era o membro mais antigo da Banda Cabaçal Irmãos Aniceto, mitológica no Cariri e em todo o Ceará. Aos 82 anos, Raimundo ainda se exibia com os sobrinhos, a terceira geração Aniceto, pelo Brasil e estrangeiro.
Numa tarde do mês de março, em 1956, quando eu acabara de chegar ao Crato, vindo dos Inhamuns, homens bateram à nossa porta, na rua dos Cariris. Um deles percutia uma caixa, outro a zabumba, e dois tocavam em pífaros. À frente do grupo, um rapaz segurava a bandeira de São José e o bisaco para as esmolas. No sertão onde morei, nunca havia escutado melodias parecidas, nem mesmo no rádio do meu pai, o primeiro que fez barulho entre os lajedos, espantando as aves de arribação. Mamãe deu algumas moedas, que enfiei no bornal dos pedintes. Eles partiram e eu os acompanhei de perto. Teria ido bem longe, seduzido pela música, se mamãe não me arrastasse de volta para casa.
Apesar da boa memória, sou incapaz de garantir quantos instrumentistas formavam o conjunto. Por dedução, suponho que eram apenas quatro, porque anos depois eu dei de presente aos Aniceto o prato de estanho que eles usam até hoje, e que transformou o quarteto em quinteto.
Somente quando me tornei estudante de medicina na Universidade Federal de Pernambuco, abri os olhos para outras formas de conhecimento, desprezadas nos cursos formais. Batizei o saber de Universidade Popular da Cultura Livre e busquei formação com vários artistas, mulheres e homens sábios, mesmo analfabetos. Foi procura espontânea, necessidade de suprir o vazio que o ensino curricular provocava em mim. Corri atrás de conhecimentos supostamente menores, valorizados apenas por folcloristas, etnólogos e antropólogos. A mesma estratificação brasileira de classes se reproduzia na cultura. Havia os dominadores e os dominados, os miseráveis e os ricos, o que era produzido fora do contexto regional e o que se produzia internamente, amalgamado na oralidade, nas religiões proibidas, na música, no artesanato e na dança. Naquela época como agora interessava às elites que os pobres continuem pobres e analfabetos, pouco diferentes do modelo escravagista, pois a mobilidade social sempre ameaçou os mais favorecidos.
A partir da década de 1970, procurava os Irmãos Aniceto de caderneta e lápis em punho, gravador e máquina fotográfica. A banda era formada por José, o pai, afastado dos instrumentos que exigiam mais virtuosismo ou esforço, como o pífaro e a zabumba, acomodado na pequena caixa, de fácil manejo. Velho e cansado, ele parecia dormir durante as apresentações. A banda estava à frente de tudo, no Crato: na buscada do pau da bandeira, para a festa de Nossa Senhora da Penha padroeira; na malhação do Judas, durante a Quaresma; nos reisados; nas quadrilhas juninas; nas renovações ao Coração de Jesus; nas procissões; no dia do município; e até em alguns enterros.
O segundo filho da prole era Francisco, que cedo passou a ser considerado mestre. Fabricava os instrumentos da banda e discorria sobre o tempo, a natureza, o universo, as viagens espaciais e os feitiços, como o desencantamento de lobisomens. Não havia um assunto sobre o qual ele não houvesse pensado, emitindo opiniões originais. Depois dele vinha João, irmão siamês da zabumba, recitador de loas, rezador de novenas e especialista na entronização dos santos no altar. Era o mais religioso da família, um oficiante dos mistérios. Seguia-se Antonio, exímio pifeiro, pândego, menino brincalhão cheio de presepadas. Imitava as vozes das pessoas, o canto dos pássaros, todos os bichos que se possa imaginar. Por último, Raimundo, impressionado pela concentração com que dançava, parecendo em transe a cada gesto, arrebatado por forças desconhecidas.
Acompanhando os Aniceto, presenciei a perfeita comunhão entre o sagrado e o profano, o sutil deslizamento da música e dança apolínea para a dionisíaca. A celebração aos santos católicos de repente se transformavam em libações alcoólicas, rituais frenéticos iguais aos dos terreiros de orixás. Louvava-se Deus com comida e aguardente e, aos cochichos, irreverentes conversas sobre sexo.
Os músicos bailarinos foram caindo na ordem decrescente de idades. Morreu José, o pai, depois Francisco, João e Antonio. Um irmão chamado Luiz, que não cheguei a conhecer, nem ouvi tocando, debandou da orquestra e da família, em busca das terras de Goiás. De uma irmã afinada ao pífaro, apenas tive notícia. A cada baixa na família, como no exército espartano dos trezentos, um neto assumia o posto e o instrumento. Agora que Raimundo não toca nem dança, apenas sorri com beatitude superior à doença e à morte, a banda passou à nova geração.
Os Aniceto tinham um palanque cativo na exposição agropecuária do Crato, que reunia gente de todo o nordeste. No começo, se apresentavam numa carroceria de caminhão. As atrações do evento se transformaram em mega shows com Ivete Sangalo, Roberto Carlos e Wesley Safadão. Essa gente que embolsa cachês milionários, nada tem a ver com os festejos da antiga cidadezinha, cercada de matas e banhada pela água das nascentes. São bem diferentes dos músicos que abriam e fechavam o ciclo natalino e de reis, o carnaval, a quaresma, as festas juninas e da padroeira, o dia de finados.
Feliz do povo que se reconhece nos seus músicos e poetas. O artista ideal será capaz de incorporar a grandeza, estranheza e diversidade de seu lugar, de sua gente e da natureza que o cerca. A sonoridade dos Irmãos Aniceto parecia com o vento na floresta do Araripe e o azougue dos relhos dos caretas. Bastava escutá-los e sentir. Porém ninguém ouve mais nada. Todos ficaram surdos com os milhões de decibéis dos trios elétricos.
RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.