David Bowie: O homem que caiu na Terra
De Space Oddity, sua primeira música a ganhar repercussão, ao álbum-epitáfio Blackstar, o artista inglês conseguiu surpreender até o fim
TEXTO Schneider Carpeggiani
01 de Fevereiro de 2016
As diversas de faces que Bowie, em sua vida-arte, assumiu ao longo do tempo
Fotos Reprodução
Numa noite qualquer do finalzinho de 1969, o locutor de uma rádio universitária de Yale anuncia a chegada do single novo de um cantor inglês ainda pouco conhecido, Space oddity, de David Bowie. Ele confessa que ainda não sabe dizer se gostou ou não da faixa, mas declara que há algo de perturbador nela. Indeciso, pede que liguem para a emissora e dividam suas impressões. Foi já sob o signo do estranho, do desviante, que a crítica cultural norte-americana Camille Paglia teve seu primeiro contato com Bowie: ela era uma das ouvintes. E escutar Space oddity naquele momento carregava uma espécie de premonição do que seria a década seguinte.
Apesar de ter sido lançada um mês antes da chegada do homem à Lua (julho de 1969), Space oddity só fez sucesso na parada inglesa quando do retorno da missão da Apollo 11 (a canção estreou no top 5 britânico na primeira semana de setembro). De fato, era preciso esperar o pouso seguro da nave na Terra: antes disso, não parecia prudente exaltar uma canção sobre um astronauta que corta o contato com a base e inicia sua própria (e talvez suicida) rota, lançando um suspiro de enfado para o momento de assombro de nós, terráqueos, com viagens ao espaço – “o Planeta Terra é azul e não há nada que eu possa fazer sobre isso”. Space Oddity também só fez sucesso após o Festival de Woodstock (em agosto do mesmo ano) ter levado ao extremo os sonhos comunitários de paz e amor da década que se encerrava.
Com sua letra sobre o solipsismo de um astronauta chamado Major Tom, o primeiro sucesso de Bowie parecia bater de frente com a ideia do sonho populista que fez – e faz até hoje – a fama de Woodstock. A revolução do Major Tom era pessoal e intransferível. “Space oddity com o seu isolamento frio dizia muito mais sobre os escuros anos 1970, uma década de hedonismo decadente”, observou Camille, lembrando aquela noite quando viveu seu grau zero bowiano.
O Major Tom à deriva foi o germe, o princípio de infecção de uma carreira que creditava ao alien um signo de empoderamento. Se os anos 1970 fizeram emergir cenas musicais e culturais que se orgulhavam de que o freak is beautiful, Bowie ensinava que era preciso não apenas ser “estranho”, mas moldar os sentidos dessa estranheza. E, para isso, a perspectiva de vidas alienígenas em sociedades distópicas era perfeita. Em 1972, ele chega ao estrelato definitivo como um E.T. superstar.
Na capa do álbum Ziggy Stardust and the spiders from Mars, o personagem ainda não nos é apresentado de forma completa. Temos a figura distante de um garoto com roupas masculinas empenhando de forma confiante uma guitarra em algum subúrbio londrino crepuscular. O jogo de papéis sexuais e o exagero teatral da sua persona são quase imperceptíveis ali. A primeira aparição de Ziggy Stardust acontece apenas durante uma performance do hit Starman para o programa Top of the Pops. Bowie/Stardust interpreta a canção com uma autoconfiança soberana, como se dividisse com o telespectador (o programa era voltado a adolescentes) um segredo que as gerações anteriores mal podiam suspeitar. Bowie/Stardust não era homem, mulher, terráqueo, e embaralhava todas as nossas expectativas binárias do que deveria ser uma estrela do rock. Ainda assim, ele parecia levemente familiar, uma suspeita que se agravava pela forma como Bowie/Stardust encarava a câmera durante a performance.
Há um momento de tensão particular, quando Bowie/Stardust coloca os braços de forma libidinosa em volta do pescoço do guitarrista Mick Ronson e canta o inquisidor verso He thinks he’d blow our minds (Ele acha que estouraria nossos miolos). O que de fato ocorreria. Em 2008, a revista Out elege Ziggy Stardust and the spiders from Mars o álbum mais gayde todos os tempos. Na justificativa da publicação para a escolha, o fato de que apenas um E.T. poderia simbolizar a solidão que o estigma da homossexualidade, do queer, carregava naquele tempo. Bowie estava certo ao fazer a cultura pop olhar para as estrelas.
Mas a aparição definitiva do alien popstar é a foto de capa de Aladdin Sane, de 1973, e talvez uma das imagens mais famosas e parodiadas da cultura popular desde então. Temos um jovem de sexo indefinido, de longo cabelo cor de cobre e com o rosto marcado por uma tatuagem em forma de raio. Seus olhos em repouso passam a impressão de que o raio não é apenas tatuagem, mas talvez uma cicatriz. Em sua solidão, estaria ele hibernando, talvez machucado ou já morto, ressaltando o clichê do rock de que é preciso vivenciar tudo de forma imediata? A capa de Aladdin Sane é a Mona Lisa de David Bowie, a métrica para entendermos tudo o que ele fez antes e depois, por comparação ou por exclusão: seja em sua fase de flâneur por uma Berlim ainda dividida (existe personagem mais alienígena do que um David Bowie pela capital alemã rachada pelo Muro?) ou no homem de cabelos descoloridos que nos convidava a let’s dance em pleno crepúsculo da disco music.
Pensei em Major Tom, em Aladdin Sane, em Ziggy Stardust e em todos os alienígenas que estiveram ao lado de Bowie (e ao nosso lado), quando vi pela primeira vez o vídeo e a capa do álbum Blackstar, no final de 2015. No lugar do raio, temos uma série de estrelas fraturadas. Em algo como a colônia de um planeta distante, a marca do freaknão é mais uma cicatriz no rosto, mas os olhos vendados, talvez lembrando as lendas sobre profecias e adivinhações que costumavam cercar o signo da cegueira. Assim como fazem os grandes artistas, o Bowie de olhos vendados lança seu olhar para um lugar que não conseguimos ainda enxergar. Para muitos, esse lugar seria a morte iminente, apenas dois dias após o lançamento do álbum. A performance final de um grande manipulador de expectativas.
Do alto da estrela fraturada do seu álbum-epitáfio, David Bowie fez a sua despedida soar como a primeira vez em que o mundo teve contato com sua persona alienígena: um starman à deriva que parece ter certeza de que, apesar dos mundos de distância a nos separar, ele nunca será um estranho para nós.
SCHNEIDER CARPEGGIANI, repórter especial da revista Continente.