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A Rosa Púrpura do Recife

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Novembro de 2015

Imagem Reprodução

1965. Nem me lembro se já havia completado 14 anos. Deixo a sala quente do Cine Moderno, no Crato, após a sessão das 16h30. Escureceu e a temperatura amena do lado de fora causa alívio. Estou sozinho, sinto-me perturbado e sem condições de compreender o que vi. Habituara-me às referências do cinema americano, à Igreja Católica, aos rituais da Semana Santa, quando as rádios tocavam música clássica e as salas de projeção exibiam filmes antigos e precários sobre a Paixão de Cristo. O Evangelho segundo São Mateus fugia aos meus padrões cinematográficos, parecia diferente até mesmo de O leopardo, que eu assistira numa sessão noturna de domingo, no mesmo cinema superlotado e sufocante. Ainda não me ligava em nomes de diretores, sentia-me atraído por astros e estrelas. Mas, no Evangelho atuavam apenas artistas amadores e pessoas do povo, um choque para os padrões da época. Descobri afinidades com o teatro popular da tradição caririense. Pela primeira vez constatava que os bens de cultura eram comuns a todos os povos.

1968. Buscava filmes de impacto, mesmo incompreensíveis. Às vezes era derrotado pelo cineasta ou pelo público, como aconteceu na sessão do filme A chinesa, do francês Jean Luc Godard. Profundamente irrealista, supostamente tratando do racha entre o comunismo chinês e o russo, o filme provocou curto circuito nos cérebros prosaicos dos cinéfilos cratenses. Depois de meia hora de projeção, no Cinema Cassino, todos abandonaram a sala e ocuparam o hall do velho sobrado. Uma chuva forte interditava a praça Siqueira Campos, em frente, e o Café Líder, à esquerda. As pessoas preferiam olhar a chuva e os relâmpagos cortando o céu, a assistir a película projetada. Era uma quarta-feira, sessão única das 19h30. Sozinho na sala, sem compreender nada do que via, fui abordado pelo bilheteiro.

– Vamos desligar o projetor.

– Por quê?

– Todo mundo foi embora.

Levantei-me aliviado. Ainda não conhecia Jorge Luis Borges, nem sua declaração de que abandonava os livros, se não gostasse deles. Eu não alcançava a linguagem do filme, mesmo assim teimava em continuar assistindo. Saí para o tumulto do hall e engrossei o número de espectadores dos fenômenos naturais. Parecíamos felizes com nossa escolha, lamentando apenas não termos um bom café. A noite ficou célebre pela recusa cratense ao cinema de Godard, pelo cataclismo que arrasou a cidade e por uma tragédia. Ao atravessar a rua da Vala, uma jovem caiu dentro do canal e foi arrastada pelas águas turbulentas. Seu corpo encontrado no meio de um canavial tinha sido destroçado pelos choques com as pedras e os troncos das árvores.

1969. No Recife, onde me preparo para o vestibular de medicina, leio e coleciono os suplementos culturais do Jornal do Comércio. Celso Marconi enche minha cabeça de cinema novo, neo-realismo e nouvelle vague. São tempos de iniciação. A cidade só falava no filme Teorema, do diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Descubro ser o mesmo que havia inquietado o adolescente provinciano com sua leitura do Evangelho de São Mateus. Nesse tempo, ia-se ao cinema com devoção. O Recife possuía salas para filmes de arte – Coliseu e AIP – e sessões exclusivas no São Luiz, Veneza, Art Palácio, Ritz e Astor. As filas desceram a conde da Boa Vista quando foram exibidos no cinema São Luiz, em temporada de semanas, Roma e Morte em Veneza, e até oSatyricon, de Fellini. Mas, poucos filmes causaram tanto estupor na sociedade recifense como Teorema. Talvez, O último tango em Paris ou O império dos sentidos, com abordagens sexuais escandalosas para a época.

Em Teorema, o núcleo de conflitos é uma família burguesa. Pai, mãe, filhos e empregada não serão os mesmos, depois que um visitante anunciado por um anjo atravessa suas vidas. De forte conotação simbólica, cada personagem representa um segmento da sociedade italiana, exposta em suas fragilidades. Vivíamos no Brasil o período mais repressivo da ditadura militar, a Igreja Católica pregava a teologia da libertação, o feminismo assentava suas bases e, através da contracultura, ensaiava-se uma revolução sexual. Terreno fértil às ideias de Pasolini, um mundo dicotomizado em fascismo e comunismo, direita e esquerda, deus e diabo, bem e mal. Explosivo para o Recife socialmente desigual, colonialista, escravocrata, machista, de economia calcada no modelo falido dos engenhos e usinas de açúcar. Os cinemas exibiam a bomba Teorema e a radioatividade se propagava em ondas, contaminando até os que não assistiam ao filme.

1975. Pasolini é assassinado. Ninetto Davoli, o ator que interpretara o anjo da anunciação em Teorema, reconhece o corpo destruído. Durante 40 anos a trágica história se reconta em diferentes versões. Giuseppe (Pino) Pelosi, o assassino confesso, negará, anos depois, que tivesse sido o único executor. Surgem teorias conspiratórias. Pino se confessa vítima. Antes de morrer, Pasolini renegara sua Trilogia da vida – DecameronOs contos de Canterbury eAs mil e uma noites –, por sentir-se vítima do capitalismo e da indústria cinematográfica. Em alguns países e em algumas telas projetam a derradeira criação, a mais censurada de todas: Saló ou os 120 dias de Sodoma, apontamentos sobre os requintes mais perversos do sadismo e do masoquismo. Nesse filme preferido por Glauber Rocha estão indicações para o futuro martírio de Pasolini.

Nunca assisti Saló. Os cinemas do Recife se transformaram em supermercados e não consigo ver filmes em shoppings. Preciso de alguns encantamentos que já não existem nas salas de cinema. Sou igual à ingênua Cecília, heroína do filme A rosa púrpura do Cairo, de Wood Allen. Sempre me perco dentro dos enredos e me transformo nos personagens projetados nas telas. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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