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Música ao acesso de todos

Criado para democratizar o ensino musical, Conservatório Pernambucano de Música chega aos 85 anos com trajetória de formação de grandes instrumentistas brasileiros

TEXTO ULYSSES GADÊLHA
FOTOS LEO CALDAS

01 de Outubro de 2015

Orquestra Sinfônica Jovem

Orquestra Sinfônica Jovem

Foto Leo Caldas

A primeira gestão do maestro e violinista Cussy de Almeida (1936 – 2010) à frente do Conservatório Pernambucano de Música (CPM), em 1967, desencadeou uma revolução na música local. Segundo conta o maestro e professor Sérgio Barza, com o surgimento do Movimento Armorial, na década de 1970, a Orquestra Armorial de Câmara assumia o protagonismo da cena cultural, pondo o conservatório no centro da efervescência. Desse modo, a orquestra inaugurava o padrão musical que caracteriza a escola de música, misturando elementos do erudito e do popular. Completando 85 anos em 2015, a instituição resguarda as metas definidas por Cussy, que podem ser traduzidas na busca por aproximar a boa música da vida das pessoas.

O trabalho de Cussy à frente do CPM foi marcante para a história da cultura pernambucana, mas o esforço de criação de uma escola de referência musical para Pernambuco teve início ainda no século 19. O maestro Euclides Fonseca pretendeu criar a entidade, mas morreu em 1929, um ano antes de ver o sonho realizado. A tarefa ficaria para o pianista e regente carioca Ernani Braga (1888 – 1948), junto com o pianista Manuel Augusto dos Santos e o violinista Vicente Fittipaldi, primeiro regente titular da Orquestra Sinfônica do Recife. A fundação ocorreu em julho de 1930, de acordo com Sérgio Barza, atendendo a um apelo da população. Como instituição da sociedade civil, precisou de financiamento privado, e o Conde Pereira Carneiro foi um dos grandes patrocinadores do projeto.

Instalado na Rua do Riachuelo, Boa Vista, o conservatório terminou o seu primeiro semestre de funcionamento com cerca de 100 alunos, ensinando basicamente piano e violino. Já em dezembro, realizou audição num Teatro de Santa Isabel lotado. Naquele momento, Ernani Braga transmitia a noção de que qualquer pessoa poderia se formar como músico. “Antes disso, só existia aula de música particular. Com o conservatório, pessoas de quaisquer classes sociais podiam aprender. Se não tivessem dinheiro para pagar, o governo pagaria”, afirma Barza. Em 1941, a instituição se tornaria autarquia do governo do estado.

Intérprete oficial da Semana de Arte Moderna de 1922, Ernani Braga chegou a trazer o compositor Heitor Villa-Lobos para visitar o CPM. Entre 1930 e 1960, o Recife era parada obrigatória para os grandes músicos de concerto do mundo. Eles vinham se apresentar na Argentina, mas os navios atracavam no Porto do Recife, para abastecimento. Nos dois dias que a embarcação geralmente passava no Recife, os artistas se apresentavam. Para abrigá-los próximo ao cais e ao Teatro de Santa Isabel, foi construído na Avenida Martins de Barros, em Santo Antônio, o Grande Hotel (onde hoje funciona o Fórum Thomaz de Aquino).


Para o professor Sérgio Barza, instituição concentra demanda de ensino de música no estado

Em 1961, o CPM se muda para a sede atual, na Avenida João de Barros, em Santo Amaro. Nessa época, já estavam instituídas boa parte das disciplinas que oferece na área de música erudita. A música popular só apareceria em 1969, com a cadeira de violão erudito, do professor Henrique Annes, que abriria a porta para a disciplina de bateria, em 1970, com José Xavier. “Recém-chegado da Europa, o maestro Cussy de Almeida seria nomeado pelo governador Nilo Coelho para reformular o conservatório, em 1967. Como nessa época não havia concurso, boa parte dos professores não estava formalmente contratada. Assim, Cussy procedeu a regularização da instituição e deu início à criação de uma orquestra representativa”, relata Sérgio Barza.

ORQUESTRA ARMORIAL
Esse esforço institucional culminou com a criação da Orquestra Armorial de Câmara de Pernambuco, já que – simultaneamente à reforma feita por Cussy de Almeida – ocorria a formulação do Movimento Armorial por Ariano Suassuna. À parte a discordância entre Cussy e Ariano quanto à presença de instrumentos populares no grupo, o fato é que a orquestra capitaneou o movimento, já que era considerada a linguagem mais direta para o público. “A ideia de Ariano era que a orquestra fosse o carro-chefe do Movimento Armorial”, destaca Barza. Essa orquestra gravou cinco discos, com composições do próprio Cussy (AboioNo reino da pedra encantada), de Jarbas Maciel (Chamada Nº 2, d’A Pedra do Reino), Capiba (Sem lei nem rei) e Clóvis Pereira (No Reino da Pedra Verde). As músicas eram executadas com violinos, viola, violoncelo, contrabaixo, flautas e percussão, com a entrada ocasional do cravo.

O primeiro concerto da Orquestra Armorial ocorreu em agosto de 1970, com um repertório barroco. A segunda, em outubro do mesmo ano, no lançamento do Movimento Armorial por Ariano. Ainda em 1970, o CPM realizou o Concurso Sul-Americano de Execução Musical, quando inaugurou o lendário piano Steinway, o melhor do mundo, que fora adquirido pelo governo para nivelar a qualidade instrumental de Pernambuco. O evento também prestou homenagem aos 200 anos de Ludwig van Beethoven (1770-1827). “Todas as metas que Cussy de Almeida estabeleceu para o conservatório ainda existem hoje como missão nossa, de formar músicos excelentes e interiorizar o ensino. O conservatório não é uma escola de música do Recife e, sim, de Pernambuco”, sublinha Sérgio Barza.

Na gestão do maestro Clóvis Pereira, entre 1983 e 1987, Cussy criou a Orquestra de Cordas Dedilhadas de Pernambuco, que foi outro marco na música popular e erudita local. O grupo contava com ex-integrantes da Orquestra Armorial, como Henrique Annes e Ivanildo Maciel, além de nomes notáveis como Adelmo Arcoverde. Em 1995, nasceu a banda de música instrumental SaGrama, que se tornaria o grupo representativo mais famoso do conservatório. Juntando flauta, clarinete, marimba, viola sertaneja, o SaGrama completa 20 anos de existência com sete discos gravados, entre eles a trilha sonora da série e do filme Auto da Compadecida, inspirado na obra de Ariano Suassuna. “Para quem trabalha com música de raiz, aqui é o melhor lugar do Brasil. É uma diversidade absurda de ritmos e folguedos, os gêneros como maracatu, caboclinho, baião, tudo tem sua história, seu roteiro”, afirma o líder do grupo e professor do CPM, Sérgio Campelo.


Quando era aluno do CPM, o músico Mateus Alves teve
composição no repertório da Orquetsra Sinfônica Jovem

MÉTODO SUZUKI
O trabalho de difusão do ensino foi acentuado quando a pianista Elyanna Caldas, diretora do CPM entre 1987 e 1990, trouxe o Método Suzuki, que facilitava o aprendizado da teoria musical. Depois, Cussy de Almeida, em sua segunda gestão, levou aulas para comunidades do Recife, como o Alto do Céu. Foi de lá que vieram músicos como o solista Gilson Cornélio Filho, que terminou sua formação em violino aos 16 anos. “Como sou filho único e perdi meu pai quando ainda era muito pequeno, minha mãe sempre batalhou sozinha para manter a casa. Ela saía para trabalhar e eu ficava com minha tia, mas aproveitava os momentos de desatenção dela e ia brincar na rua. Para evitar isso, minha mãe ficou sabendo desse projeto, bem perto de minha casa, e me matriculou nele”, lembra Gilson. Ele conta que, em 2000, quando tinha 11 anos, ganhou bolsa para estudar no CPM com o professor Ademar Rocha e concluiu a formação técnica cinco anos depois. Graduou-se em música na Nicholls State University, nos EUA, e hoje cursa mestrado, vivendo de música na cidade americana de Albuquerque.

No conservatório, Gilson participou da Orquestra Sinfônica Jovem, projeto oriundo da disciplina de Prática de Orquestra, criada pelo professor Sérgio Barza em 2000 e da qual passou a fazer parte o professor e maestro José Renato Accioly, em 2004. A OSJ tinha o objetivo de proporcionar aos alunos a vivência numa orquestra, além de criar plateias para a música de concerto. Durante os 10 anos que esteve em turnê com projeto Circuito Sinfônico –patrocinado por empresas como Chesf e Petrobras –, a orquestra realizou cerca de 200 apresentações, além de 150 concertos-aulas em mais 40 cidades em Pernambuco e no Nordeste. Por falta de financiamento, a OSJ parou desde 2013. “Nós estávamos quase chegando ao nível profissional, quando tivemos que encerrar nossas atividades. Em 2013, numa apresentação na Mimo, o crítico Clive Davis, do jornal inglês The Times, disse que nós éramos melhores que a Sinfônica de Londres. Certo que nós não éramos, mas nós passamos essa impressão para ele”, diz José Renato Accioly.

O repertório da OSJ era formado por compositores clássicos, como Beethoven, Bach, Mozart, Tchaikovsky, Rossini, Verdi, Wagner, Dvorak, Bernstein, além de brasileiros como Vicente Fittipaldi, Villa-Lobos, Brenno Blauth, Clóvis Pereira e Dierson Torres. Alunos da entidade, como o contrabaixista Mateus Alves, também tiveram a oportunidade de ter composições próprias executadas pela orquestra jovem.

“Em 2010, a gente aprovou um projeto no edital da Petrobras Cultural e lançamos o disco com composições próprias. Mateus Alves, por exemplo, compôs a música Duas estações nordestinas, em homenagem a Clóvis Pereira, e nós tocamos”, diz Accioly. Graduado em Londres, Mateus acredita que é essencial para o conservatório realizar o diálogo entre a música popular e a música erudita. “Só teria sentido se abraçasse esse tipo de manifestação. Diferente de Londres, onde eles estão replicando, conservando e mantendo a cultura erudita deles. A música popular tem a ver com a herança negra, dos escravos, a cultura indígena. É preciso uma instituição para manter a nossa música”, alega o contrabaixista.


Professor José Renato Accioly afirma que a Orquestra Sinfônica Jovem estava próxima do nível profissional quando se viu obrigada a encerrar as atividades

Ainda no governo Eduardo Campos, uma comissão foi formada para realizar a institucionalização da OSJ, a fim de garantir orçamento para dispor de 20 músicos profissionais que servirão de referência para 60 alunos bolsistas. A atual diretora do CPM, Roseane Hazin, acredita que em 2016 a orquestra deverá retomar as atividades. “Nós continuamos com nossas aulas individuais, mas é preciso ter essa prática de orquestra”, defende Hazin.

Oferecer a formação superior em música também está entre os planos da entidade para o médio prazo. “Nós temos professores com mestrado e doutorado, temos capacidade para isso”, afirma a gestora.

Com o violonista Sidor Hulak à frente do conservatório, a instituição conseguiu o primeiro reconhecimento do curso técnico pelo Ministério da Educação (MEC). Hoje, o CPM recebe mais de 2 mil estudantes, entre os cursos regular e técnico. Para atender a essa demanda, trabalham 167 professores nas áreas de Iniciação Musical, Canto, Percussão, Cordas Dedilhadas, Cordas Friccionadas, Sopros, Piano e Teclado. Além do SaGrama, a escola ainda conta com uma banda sinfônica, uma orquestra de frevo e os grupos representativos Alegretto (de música antiga) e Orquestra Retratos (de cordas dedilhadas).

Com o projeto Orquestrando Pernambuco, o CPM oferece formação musical básica nos bairros de Alto do Pascoal, Alto do Céu, Poço da Panela, Coelhos e Santo Amaro. A violinista Rafaela Fonsêca, formada pelo CPM, ex-integrante da OSJ, hoje ensina no Orquestrando Pernambuco e na Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque e acredita que há um ambiente favorável para a difusão da música. “A gente sabe que é uma profissão muito cara, porque o instrumento é caro, tem cordas, palhetas, toda a manutenção é cara. Mas conheço pessoas que saíram de projetos sociais e são profissionais concursados, conseguiram bolsas para estudar no exterior. A música é mais democrática porque acaba julgando a pessoa pela sua competência técnica naquele instrumento, não é como um vestibular”, afirma.


Rafaella Fonsêca, ex-integrante da OSJ, hoje ensina no
Orquestrando Pernambuco e na Orquestra Criança Cidadã.
Foto: Alex Ribeiro/Cria SA/Divulgação

Os mais jovens é que têm colocado a tradição musical do conservatório para a frente, como é o caso da jovem cantora Pandora Calheiros, de 11 anos, que entrou no CPM aos 7 anos. Amadrinhada pela cantora Nádia Maia, Pandora cursa piano erudito no CPM. Influenciada pelo avô, a garota passou a se apresentar na noite do Grande Recife, cantando boleros, bossa nova e samba-canção. “Eu cantava para os vizinhos, apenas. Depois que entrei no conservatório, comecei a ter aulas de canto coral, aprendi teoria musical, a ler partituras, os acordes do piano. Quando ganhei meu primeiro piano, passei a praticar em casa, geralmente uma hora por dia”, conta Pandora. Com o piano erudito, ela passou a se portar melhor e planeja, um dia, se apresentar com o instrumento.

Conciliando as aulas no ensino fundamental com o conservatório e o curso de inglês, Pandora faz shows com sua banda, que conta com sete músicos. Em setembro, ela se apresentou no Manhattan Café, casa de shows do Recife que recebe grandes nomes da música popular brasileira. “Já teve shows em que Pandora ficava no camarim brincando de boneca, esperando a hora da apresentação”, relembra a mãe, Kátia Calheiros. A garota compôs a música Flores para Clarice, homenageando a escritora Clarice Lispector, que foi tema do Bloco das Flores, no carnaval recifense deste ano. A colaboração levou a cantora para o quadro dos imortais da agremiação.

Na visão de Sérgio Barza, o conservatório continua concentrando a demanda do ensino de música no estado. “Desses 2 mil alunos que nós temos, se 200 se formarem como bons músicos, para nós será ótimo. Teremos 1,8 mil ouvintes que passarão essa cultura para frente. Nesse sentido, o conservatório está formando gerações”, afirma. Esse traçado termina por laurear o projeto de Cussy, a tentativa de tornar o conservatório uma escola de primeiro mundo, uma referência para o país.

“A maioria das pessoas que fazem o conservatório realizam esse trabalho com amor”, ressalta Accioly. “Nós entendemos que existe apenas música boa e ruim. Não temos essa visão de que a música de concerto é algo antigo, feito por compositores que já morreram. Nós não fazemos música comercial, não é o nosso foco. Nós fazemos uma música com performance, que tem forma, demanda técnica. Essa música está ao acesso de todos”, declara Roseane Hazin. 

ULYSSES GADÊLHA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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