Abel era pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo. Caim ofereceu os frutos da sua colheita a Iahweh e Abel, por sua vez, as primícias e a gordura de seu rebanho. O Deus se agrada de Abel e sua oferenda, mas não se agrada de Caim e do que ele traz ao altar. Caim ficou irritado, com o rosto abatido, o que foi percebido pelo Onisciente, aquele a quem nada escapa, nem mesmo um fio de cabelo da nossa cabeça.
O Deus não ignora os danos da sua arbitrária preferência. Mesmo assim interroga Caim: “Por que estás com raiva e por que teu rosto se abateu? Se estivesses bem disposto não levantarias a cabeça? Mas se não estás bem disposto, não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te espreita; podes acaso dominá-lo?” A interpelação de Iahweh aumenta o rancor de Caim, levando-o ao descontrole. Possesso, ele busca anular o que não compreende, nem aceita.
– Não tolero o êxito do outro, sabê-lo preferido e sentir-me repudiado. O que fiz? Em que errei? Por acaso as espigas não são necessárias à sobrevivência do homem, igualmente ao leite e à carne das ovelhas? Porém este Senhor parcial só tem olhos para as oferendas do meu irmão, só enxerga a prosperidade do seu trabalho. Mesmo que eu reinventasse o mundo, salvasse a humanidade do abismo, mesmo assim não seria olhado, nem teria a minha criação reconhecida. Julgo-me superior a Abel. Sou moderno e graças ao cultivo do solo crescem as cidades, o homem se fixa na terra e prospera.
Este poderia ser o discurso do invejoso. Menciono a fala em que Caim subestima as realizações do irmão.
– Quem é Abel? Um pastorzinho insignificante. Olha cabras e ovelhas pastarem, arranca o som modorrento de uma flauta, não possui ambições, mal distingue a noite do dia. Mas, com os artifícios da sua música, composta apenas de habilidades, ele engana o Todo Poderoso e alguns tolos juízes que o premiam, como se vissem merecimento onde nada existe. Abel reproduz estrídulos, coisa feita, artefatos.
Exaltado pelo amor próprio, Caim mata o irmão. Matar é o derradeiro recurso do invejoso para suportar-se e continuar vivendo.
Shakespeare aprofundou o estudo dos pecados capitais, no seu teatro. Macbeth, personagem exemplo de cobiça ao poder, trai, enreda e mata para alcançá-lo. Investigando a personalidade do general escocês, descobrimos que a inveja o impulsiona a cometer atrocidades. A esposa alimenta a fogueira do invejoso. Ela incensa qualidades, que supostamente passam despercebidas. Ataca o destino e as forças que regem o universo e que não se ajoelham diante da grandeza do esposo. Eleva sua vaidade às alturas do que julga merecimento.
Através do sobrenatural, se dá o encontro de Macbeth com três feiticeiras esquálidas e estranhas na maneira de vestir. As parcas semeiam a cobiça ao trono da Escócia, no coração de Macbeth, que valoriza profecias e sinais fora da lógica. Bem diferente do pérfido Edmundo, do “Rei Lear”, o mais elaborado invejoso da história da literatura. Edmundo recusa que a astrologia e o sobrenatural expliquem seu nascimento bastardo, sem os direitos do irmão Edgar, filho legítimo do nobre Glócester, a quem ele se julga superior em tudo.
“Tal é a excelente loucura do mundo que, se nos encontramos de mal com a fortuna (o que acontece frequentemente por nossa própria culpa), achamos que o sol, a lua e as estrelas sejam culpados de nossas desgraças; como se fôssemos vilões por necessidade, loucos por compulsão celeste; patifes, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbados, embusteiros e adúlteros pela obediência forçada ao influxo planetário e como se só fizéssemos o mal por instigação divina! Admirável escapatória do homem femeeiro essa de colocar suas veleidades lúbricas sob a responsabilidade de uma estrela! Meu pai se uniu com minha mãe sob a cauda do Dragão e a Ursa Maior presidiu ao meu nascimento; daí se segue que seja eu violento e libertino. Basta! Teria sido o que sou, se a mais virginal estrela do firmamento houvesse piscado, quando fui bastardeado.”
Ninguém escapa aos invejosos, nem à sua sanha destrutiva. Na fábula do vaga-lume que vai ser devorado pela serpente, o inseto solicita fazer três perguntas ao réptil. Faço parte da sua cadeia alimentar? A resposta é não. Já lhe fiz algum mal? Outro não. Então, porque vai me devorar? Porque não suporto o seu brilho, responde a serpente.
RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.