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Por que me devoras?

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Setembro de 2015

Cain Slaying Abel, de Peter Paul Rubens, C.

Cain Slaying Abel, de Peter Paul Rubens, C.

Imagem Reprodução

Suponho que o curta-metragem foi dirigido por Luchino Visconti, mas não posso garantir com certeza. Eu o assisti no antigo Coliseu, em Casa Amarela, quando o Recife possuía cinemas no centro da cidade e nos bairros, e várias salas exclusivas para filmes de arte. Tratava-se de uma produção italiana em que reuniram cinco diretores. O curta que me impressionou narrava a história de uma atriz famosa pela beleza – ou seria uma cantora lírica? –, aguardada ansiosamente numa festa em sua homenagem. Depois de algumas taças de champanhe, a beldade sente-se mal e desmaia. Os convidados se aproximam do corpo e começam a despi-lo de tudo o que realça a beleza. Removem joias, roupas e maquiagem, num trabalho de desconstrução do mito. Nunca esqueci os rostos expressionistas, as máscaras de concupiscência e crueldade dos predadores ávidos em destruir.

O assassinato de Abel pelo irmão Caim, no Gênesis, é o primeiro registro sobre a inveja na mitologia judaico-cristã. Isso se considerarmos que as motivações de Adão e Eva ao comerem o fruto da árvore plantada no meio do Éden eram apenas a desobediência e a gula. Mas, o desejo do primeiro homem e da primeira mulher poderia ser o de que os seus olhos se abrissem e eles também se tornassem como os deuses, versados no bem e no mal. Uma pulsão invejosa.

Abel era pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo. Caim ofereceu os frutos da sua colheita a Iahweh e Abel, por sua vez, as primícias e a gordura de seu rebanho. O Deus se agrada de Abel e sua oferenda, mas não se agrada de Caim e do que ele traz ao altar. Caim ficou irritado, com o rosto abatido, o que foi percebido pelo Onisciente, aquele a quem nada escapa, nem mesmo um fio de cabelo da nossa cabeça.

O Deus não ignora os danos da sua arbitrária preferência. Mesmo assim interroga Caim: “Por que estás com raiva e por que teu rosto se abateu? Se estivesses bem disposto não levantarias a cabeça? Mas se não estás bem disposto, não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te espreita; podes acaso dominá-lo?” A interpelação de Iahweh aumenta o rancor de Caim, levando-o ao descontrole. Possesso, ele busca anular o que não compreende, nem aceita.

– Não tolero o êxito do outro, sabê-lo preferido e sentir-me repudiado. O que fiz? Em que errei? Por acaso as espigas não são necessárias à sobrevivência do homem, igualmente ao leite e à carne das ovelhas? Porém este Senhor parcial só tem olhos para as oferendas do meu irmão, só enxerga a prosperidade do seu trabalho. Mesmo que eu reinventasse o mundo, salvasse a humanidade do abismo, mesmo assim não seria olhado, nem teria a minha criação reconhecida. Julgo-me superior a Abel. Sou moderno e graças ao cultivo do solo crescem as cidades, o homem se fixa na terra e prospera.

Este poderia ser o discurso do invejoso. Menciono a fala em que Caim subestima as realizações do irmão.

– Quem é Abel? Um pastorzinho insignificante. Olha cabras e ovelhas pastarem, arranca o som modorrento de uma flauta, não possui ambições, mal distingue a noite do dia. Mas, com os artifícios da sua música, composta apenas de habilidades, ele engana o Todo Poderoso e alguns tolos juízes que o premiam, como se vissem merecimento onde nada existe. Abel reproduz estrídulos, coisa feita, artefatos.

Exaltado pelo amor próprio, Caim mata o irmão. Matar é o derradeiro recurso do invejoso para suportar-se e continuar vivendo.

Shakespeare aprofundou o estudo dos pecados capitais, no seu teatro. Macbeth, personagem exemplo de cobiça ao poder, trai, enreda e mata para alcançá-lo. Investigando a personalidade do general escocês, descobrimos que a inveja o impulsiona a cometer atrocidades. A esposa alimenta a fogueira do invejoso. Ela incensa qualidades, que supostamente passam despercebidas. Ataca o destino e as forças que regem o universo e que não se ajoelham diante da grandeza do esposo. Eleva sua vaidade às alturas do que julga merecimento.

Através do sobrenatural, se dá o encontro de Macbeth com três feiticeiras esquálidas e estranhas na maneira de vestir. As parcas semeiam a cobiça ao trono da Escócia, no coração de Macbeth, que valoriza profecias e sinais fora da lógica. Bem diferente do pérfido Edmundo, do “Rei Lear”, o mais elaborado invejoso da história da literatura. Edmundo recusa que a astrologia e o sobrenatural expliquem seu nascimento bastardo, sem os direitos do irmão Edgar, filho legítimo do nobre Glócester, a quem ele se julga superior em tudo.

“Tal é a excelente loucura do mundo que, se nos encontramos de mal com a fortuna (o que acontece frequentemente por nossa própria culpa), achamos que o sol, a lua e as estrelas sejam culpados de nossas desgraças; como se fôssemos vilões por necessidade, loucos por compulsão celeste; patifes, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbados, embusteiros e adúlteros pela obediência forçada ao influxo planetário e como se só fizéssemos o mal por instigação divina! Admirável escapatória do homem femeeiro essa de colocar suas veleidades lúbricas sob a responsabilidade de uma estrela! Meu pai se uniu com minha mãe sob a cauda do Dragão e a Ursa Maior presidiu ao meu nascimento; daí se segue que seja eu violento e libertino. Basta! Teria sido o que sou, se a mais virginal estrela do firmamento houvesse piscado, quando fui bastardeado.”

Ninguém escapa aos invejosos, nem à sua sanha destrutiva. Na fábula do vaga-lume que vai ser devorado pela serpente, o inseto solicita fazer três perguntas ao réptil. Faço parte da sua cadeia alimentar? A resposta é não. Já lhe fiz algum mal? Outro não. Então, porque vai me devorar? Porque não suporto o seu brilho, responde a serpente. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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