Do Recife, Julio Maria entrevistou o compositor Alceu Valença, que narrou uma passagem curiosa entre ele e o parceiro Geraldo Azevedo com Elis, uma tentativa frustrada de mostrar as músicas da dupla. Ocorrido no intervalo do ensaio de um show no Rio de Janeiro, no começo dos anos 1970, o encontro tomou um rumo diferente, com a chegada de Milton Nascimento ao camarim, encabulando os pernambucanos perante a cantora.
Na capital pernambucana, Julio também pesquisou, no acervo do Diario de Pernambuco, matérias falando da passagem dela na cidade, no episódio a favor da libertação do preso político Edval Nunes da Silva, o Cajá. Líder estudantil ligado a Dom Hélder Câmara e integrante da Comissão de Justiça e Paz, Cajá foi preso em maio de 1978, acusado de tentar reorganizar o Partido Comunista Revolucionário.
Ao chegar ao Recife, em julho daquele ano, para a temporada de Transversal do tempo (que fazia uma crítica ao momento político da época), Elis sabia da prisão e das torturas sofridas por Cajá, dedicando a ele a sua primeira apresentação no Teatro Santa Isabel. Ameaçada pela Polícia Federal a não mais mencionar o nome do preso, sob a pena de ter as suas apresentações canceladas, Elis deu um drible nos censores, ao subir ao palco, na noite seguinte, usando uma artimanha para pronunciar o nome de Cajá novamente. “Prestes a começar, olhou para a plateia como se procurasse por um de seus músicos perdidos e, fingindo que o avistava, disse, definindo bem cada sílaba no final da frase: ‘E você, o que está fazendo aí? Vem pra cá, já’. Grande parte do público percebeu o ‘Cajá’ e aplaudiu”, relata a biografia, que traz ainda a transcrição de uma carta escrita por Elis a Cajá, cheia de culpa, depois de ser proibida de visitá-lo na prisão (leia no site da Continente).
Dona de gestos imprevisíveis, Elis desconcertou muitas pessoas. Da mesma maneira com que prestou solidariedade gratuita a Cajá e, pouco antes, à roqueira Rita Lee, em 1976, depois de ter sido presa grávida por porte ilegal de maconha, a cantora também foi capaz de vetar nomes como o de Nana Caymmi em seu programa na TV Record, O fino da bossa, comandado ao lado de Jair Rodrigues, entre 1965 e 1967, conforme conta Nada será como antes. Depois de viajar do Rio para São Paulo, a convite da produção, Nana foi dispensada antes mesmo dos ensaios, sob a alegação de que o programa já estava completo.
Elis também foi protagonista, em 1971, da demissão de toda a sua banda, que contava com músicos como Toninho Horta, Nelson Ângelo, Novelli e Wilson das Neves. O grupo, que contestava os valores do cachê e pedia aumento a contragosto da cantora, que acreditava pagar devidamente, foi surpreendido na última apresentação da temporada do disco Ela, num clube de Vinhedo, interior de São Paulo. “Quando soavam os últimos acordes de Upa neguinho, Elis foi ao microfone como quem arremessa calmamente uma granada para trás: ‘Eu queria que vocês aplaudissem minha banda com força porque, a partir de hoje, ela não toca mais comigo’.”
Para escrever a biografia, Julio Maria muniu-se de 115 depoimentos, consulta a livros, jornais e revistas. Fotos: Divulgação
Em relação ao Furacão Elis, lançado em 1985, três anos após a morte da cantora, Nada será como antes difere na abordagem, ao aprofundar fatos ligados à vida de Elis, especialmente aqueles relacionados a gravações de discos e realização de shows. O conhecimento musical de Julio – ele próprio tendo estudado guitarra na Universidade Livre de Música – ajuda a compor o cenário narrativo, contextualizando com informações de cunho mais teórico-musical, sem soar enfadonho. Dessa maneira, por exemplo, descobrimos que, durante a gravação de Depois da queda, Elis chegou a desafinar após embarcar nos harmônicos da flauta, adotando outro tom na canção, fenômeno comum a ouvidos bastante sensíveis, como de instrumentistas, não de cantores. Retirada a flauta, Elis não errou mais a tonalidade.
DROGAS
O livro tem ainda o mérito de tratar, sem pudor e com total liberdade da família, de um tema até então considerado tabu: o rápido e intenso envolvimento da cantora com a cocaína, no início de 1981, cerca de 10 meses antes de morrer. Momento que também coincide com o fim do casamento com César Mariano, às vésperas da estreia de Trem azul, seu último espetáculo. Ligada à vida pessoal e profissional, já que César também atuava como arranjador e diretor musical dos espetáculos de Elis, a separação possivelmente potencializou o traço de insegurança da cantora, característica da sua personalidade observada desde o início da carreira, aprofundando vertiginosamente a experiência com a droga.
Assim, Julio relata passagens duras aos olhos de muitos fãs que acreditavam ter sido ela vítima de uma vingança dos militares, já que havia o envolvimento do médico-legista Harry Shibata na determinação da causa mortis da cantora. Shibata, para quem não sabe, foi o mesmo que assinou o laudo de suicídio do jornalista Vladimir Herzog, e teve a farsa da ditadura desmascarada pelo namorado de Elis na época, o advogado Samuel MacDowell, que provou ter sido Herzog assassinado.
Durante a turnê do Trem azul, segundo o jornalista, eram raras as noites em que ela não cantava sob efeito da droga. Ao menos uma vez, escreve, Elis perdeu totalmente a noção do que fazer no palco, minutos antes da apresentação, sendo forçada a entrar no chuveiro do camarim para recuperar minimamente o controle, o que a fez protagonizar uma de suas mais confusas apresentações da temporada, com gestos exagerados e frases desconexas.
Questionado pela Continente se isso já não seria uma característica da dependência química, Julio acredita que, embora pareça, não é possível afirmar categoricamente – pelo pouco tempo da experiência dela com a droga e também pela boa fase profissional e pessoal que vivia na época. Curiosamente, a Elis que foi fundo no consumo da cocaína misturada no álcool era a mesma considerada, pouco antes, “cara limpa” por colegas de profissão, que criticava duramente quem consumisse drogas perto dela, sendo capaz de deixar o hotel ou brigar com amigos, se os visse fumando um cigarro de maconha.
“A coisa é bem simples. Era uma pessoa que foi careta a vida inteira e se envolveu com drogas meses antes de morrer, sem traquejo para a coisa. Foi um acidente. Ponto. Azar do Brasil. Não há uma superinterpretação a respeito disso. Um dia, ela cansou de todo mundo no seu entorno, mandando brasa no consumo, e mudando de assunto, assim que ela chegava. É muito chato você ser polícia dos seus amigos”, comenta João Marcello Bôscoli, filho mais velho de Elis com o compositor Ronaldo Bôscoli.
Sem problema em falar na morte de Elis (“Eu tenho problema é com a morte dela”), João Marcello diz que a família nunca cerceou o trabalho de Julio. “Não acredito em autorização prévia. Acho um eufemismo para censura. Não sou contra o debate, mas não faz sentido”, afirma João Marcello. Mesmo sem ter lido ainda a versão final da biografia, ele afirma que não mudaria nada. Maria Rita autorizou sem ler. Apenas Pedro Mariano leu, revelando depois ter conhecido mais a mãe e, por tabela, a si próprio. “A gente não tem essa ausência de interferência por falta de carinho com a Elis ou para parecer para a mídia que a gente é legal. É uma convicção. Primeiro, que é o único jeito que tem de ser feito. Se fosse diferente, a gente estaria retrocedendo. Depois, porque muita gente, inclusive a Elis, trabalhou duro e passou por muitas coisas ruins para chegar aonde chegou, e para a gente ter essa liberdade, que nos é fundamental. Se fosse um livro chapa-branca, ficaria esquisito”, considera João Marcello.
MARCELO ROBALINHO, jornalista, doutorando em Comunicação em Saúde na Fiocruz.