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'O toro de madeira'

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Março de 2015

Imagem Karina Freitas

A memória de alguns livros nos assalta de repente. Ou seria a lembrança das narrativas e seus autores? Tudo junto é o mais provável. Os e-books também despertam fetiches proustianos? Alguém sente junto deles o cheiro, a textura e a cumplicidade que o livro de papel nos provoca? Continuo embrionariamente ligado a esses objetos misteriosos e cheios de volúpia, que levo comigo para onde vou, como a roupa do corpo.

Não foi difícil trocar a caneta e o lápis pela máquina de escrever e esta pelo computador. Incorporo as novas tecnologias sem dificuldade. Mas não consigo me desfazer de alguns livros, seria como arrancar um dedo, ou até mesmo o pé. Já sofri tontura quando não encontrei as Folhas de relva, no lugar habitual na minha estante. Faltou chão e senti-me desamparado. Acostumei-me a estirar o braço à procura de respostas e consolo nos livros que me cercam.

A polêmica em torno da liberdade de imprensa, do direito de fazer humor com qualquer instituição, debochando até mesmo com o sagrado, me fez lembrar um conto do russo Mikhail Artsibachev. Pouco lembrado e menos lido, o autor se viu proscrito pela ditadura comunista, mesmo sendo um revolucionário. Caiu no esquecimento igual a centenas de escritores russos, cujos nomes e obras o regime apagou, após a revolução bolchevique.

O conto se chama O toro de madeira, foi traduzido por Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Rónai, e publicado em Mar de Histórias, Antologia do Conto Universal, pela Livraria José Olympio Editora. Embora eu possua esses volumes, li-o em Contos Russos, na coleção Universidade de Bolso, da Ediouro. Por que o preciosismo da informação? Quando me lembrei da narrativa, imediatamente me veio à memória o volumezinho de bolso, as ilustrações sombrias, o lugar reservado para ele na minha pequena biblioteca. O livrinho sobreviveu à doação de quase tudo que minha esposa e eu juntamos ao longo de 40 anos. Quando senti necessidade de reler o conto, localizei-o sem dificuldade e a sensação foi de que reencontrava um velho amigo, gasto pelo tempo e impregnado com o cheiro da velhice.

***

O estudante Veriguin, deportado político, anda pelo meio da floresta em direção à casa onde o seu amigo Chutof, igualmente revolucionário e perseguido, vive seus últimos dias, sofrendo de tuberculose. O contato com a floresta desperta nele o sentimento de que todo esforço é vão e que bastaria ao homem recolher-se à natureza e levar uma existência contemplativa e de poucos sonhos. Essas digressões provocam o riso no jovem comunista e a certeza de que após três dias de recolhimento, seria acometido pelo mais paralisante tédio. Mesmo assim ele deita na relva, aspira o ar úmido e cheio de fragrâncias, observa borboletas e escaravelhos, o céu entre as copas das árvores. Reagindo ao torpor, se levanta e procura o caminho que o levará à cabana do amigo exilado. Ao atravessar uma clareira avista uma choça baixa, enfeitada com trapos coloridos, o telhado descendo até o chão. A estranha habitação humana, em meio ao capim e as flores, desperta sua curiosidade. Quando pensa em se dirigir à casa, percebe um velho de barbas longas, muito baixo, o corpo envergado, os braços longos, as mãos ultrapassando os joelhos. Ele pula no meio da vegetação, executa passos de dança, num ritual que parece cômico a Veriguin. O rapaz se esconde e aprecia a cerimônia, mas não resiste e sai do esconderijo, indo em direção ao velho. Ele se espanta que alguém invada o seu espaço inviolável e grita cheio de um medo feroz. Indiferente aos apelos, o bolchevique continua rindo e pede ao avozinho que não se zangue. O ancião entra na cabana e volta com um ídolo de madeira de feições toscas, levantando-o sobre a cabeça. Pronuncia algumas palavras mágicas, estranhando que o rapaz ainda não tenha sido fulminado por seu deus.

– Vai-te embora! Chau, chau... Kirmet, Kirmet!

O estudante finalmente compreende que chegara num lugar sagrado, onde os profanos não deviam entrar, e que o ancião procurava mandá-lo embora da clareira. Mas percebe apenas a comicidade do ritual e assume de propósito uma atitude ameaçadora. Num gesto insensato e tolo, saca o fuzil que carregava consigo e dispara uma bala no deus de madeira. Quando a fumaça se dissipa, o velho tenta levantar o deus quebrado e desfigurado, mas não consegue e foge. Veriguin continua sua jornada em busca do amigo revolucionário.

Vocês precisam ler esse conto escrito há 100 anos, que trata de questões bem atuais: o direito de conspurcar e debochar o que é sagrado para os outros, em nome da liberdade assegurada por um estado laico, para o qual nada é sagrado. Veriguin chega à choupana do amigo, encontrando-o à beira da morte e descrente dos valores que o levaram a passar um quarto da vida na cadeia. As pessoas já sabiam o que ele fizera ao velho e ao seu ídolo pessoal. Um amigo de Chutof, homem idoso e sábio, diz o seguinte:

– Cada homem tem o seu ídolo. Não se trata de saber que ídolo ele adora. Não nos convém nem ao senhor, nem a mim, perseguir a religião alheia. Trate de sua religião e não se meta com a dos outros. Não se afaste do caminho do bem e, assim, será o servo do seu próprio deus. Não na igreja, mas no espírito.

Veriguin questiona o velho rude que aprendera a filosofar sozinho. Pergunta a ele como alguém pode crer num toro de madeira. Afirma sua fé apenas no homem, em todos os homens e na ideia de humanidade. O velho sorri condescendente e contesta:

– Não, o senhor está falando errado. Em cada homem não pode crer, pois o homem é mortal, e mesmo durante a vida ele é insignificante... O senhor acredita, como todos nós, é na verdade e no bem. É a verdade e o bem que o senhor venera nos homens. Por isso é que, para o senhor, o homem é o toro de madeira. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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