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Teresa Margolles: Desejo de poetizar as tragédias cotidianas

Mexicana toma partido das linguagens artísticas para expôr situações de violência e morte no seu país, mas acaba discutindo processos semelhantes mundo afora

TEXTO Luciana Veras

01 de Fevereiro de 2015

A artista registrou fachadas de edificações abandonadas por conta da violência em Ciudad Juárez

A artista registrou fachadas de edificações abandonadas por conta da violência em Ciudad Juárez

Fotos Teresa Margolles/Divulgação

"Em outubro, também, foi encontrado o cadáver de outra mulher, no deserto, a poucos metros da estrada que une Santa Teresa a Villaviciosa. O corpo, que se encontrava em avançado estado de decomposição, jazia de boca para baixo, vestindo moletom e calça de material sintético, em cujo bolso se encontrou um crachá segundo o qual a morta se chamava Elsa Luz Pintado e trabalhava no hipermercado Del Norte. O assassino ou os assassinos não se deram ao trabalho de abrir uma cova. Tampouco se deram ao trabalho de penetrar muito no deserto. Simplesmente arrastaram o cadáver uns tantos metros e lá o deixaram.” As frases iniciais da página 378 de 2666, livro-síntese do escritor chileno Roberto Bolaño, publicado no Brasil em 2010, poderiam pertencer a alguma obra da artista mexicana Teresa Margolles, exposta em Enquanto for necessário, em cartaz até 8 de março na Galeria Vicente do Rego Monteiro, na Fundação Joaquim Nabuco, no Derby.

Por que a insinuação entre ficção e realidade? Difícil seria não conjurá-la ante semelhanças bizarras. Em A parte dos crimes, uma das cinco subdivisões de 2666, Bolaño descreve com minúcias milhares de assassinatos de mulheres, transcorridos na cidade de Santa Teresa e nos municípios vizinhos do estado de Sonora, no norte do México. Iniciados em 1993, e continuando na crônica policial urbana e bolaniana ao longo de vários anos, os crimes ficcionais prescreveram, após pouco ou nenhum avanço nas investigações. Mas os feminicídios que outorgaram uma fama indesejada a Ciudad Juárez persistem, assim como outros assombrosos atos. Em setembro de 2014, desapareceram 43 estudantes mexicanos em Iguala, cidade ao sul do país. Até hoje, embora existam diversas hipóteses acerca do sumiço, as autoridades policiais e o governo não ofereceram uma explicação oficial. “Penso que Bolaño morreu antes do tempo. Se ele estivesse vivo, e seguisse escrevendo, ficaria horrorizado”, comenta Teresa, em entrevista à Continente.


Mulheres são convidadas a participar da produção de peça, enquanto discutem as circunstâncias de violência a que são submetidas. Foto: Divulgação

Nascida em Culiacan, no estado de Sinaloa, há 52 anos, “uma zona tão quente como o Recife”, Teresa Margolles trabalha e mora em Ciudad Juárez, colada na fronteira com os Estados Unidos (bem próxima a El Paso, no Texas). É Ciudad Juárez que aparece, por exemplo, em Esta finca no será demolida, que reúne dezenas de fotografias de edificações abandonadas, tiradas entre 2009 e 2013, documentando o êxodo dos moradores diante da violência calamitosa. Há cinco anos, 3,7 mil pessoas foram assassinadas na localidade, como atesta uma outra obra, PM 2010, em que a artista apresenta, em ordem cronológica, as capas de um periódico local com o costume de estampar, na primeira página, imagens de cadáveres e fotos de mulheres em poses sensuais.

Estaríamos anestesiados frente a tanta violência? “Não creio que estamos anestesiados, mas o que fazemos? Como trabalhamos a memória? Não encontramos como transmitir isso. Como artista, sirvo como uma peneira para converter uma tragédia, para que todos que não têm relação com Ciudad Juárez, por exemplo, possam ver. Como fazer com que alguém que não esteja ligado à tragédia a rechace? O PM é um periódico que você, que mora aqui, não pode ver, mas esse cadáver está na sua capa. É muito forte em um dia, imagine então todos os dias. Durante um ano, houve 3,7 mil assassinatos em uma única cidade. Utilizo a arte como uma trincheira, para possibilitar que tudo qualquer um possa ver, sentir e se emocionar”, responde Teresa Margolles.


Foto: Divulgação

Em Trepanaciones (sonidos de la morgue) – trabalho de 2003 que consiste exclusivamente da audição da gravação do ruído que uma serra faz, durante uma autópsia, ao abrir um crânio humano (no caso, de uma pessoa assassinada) –, Teresa Margolles traz um pouco da sua experiência nos necrotérios. Formada em Ciências da Comunicação pela Universidad Nacional Autónoma da Cidade do México, ela também estudou Medicina Forense. “Sou artista e entrei no morgue não apenas para saber anatomia, mas para poder compreender o corpo. Quanto ‘vive’ um cadáver? Aprendi o que é o corpo social, o que significa esse corpo que está ali, sem vida, enquanto alguém o espera lá fora. O necrotério me ensinou que, dentro daquelas paredes, está um corpo que tem lá fora uma família, uma composição familiar que nunca mais será a mesma. Dimensione isso para um país. Você acha que o México vai ficar igual, depois do sumiço desses 43 estudantes? Que país queremos que siga adiante?”, questiona.

Para o curador da mostra, Moacir dos Anjos, Enquanto for necessário expande essas indagações e faz o espectador cotejar o que é visto com a realidade de seu próprio lugar. “O que move esses trabalhos não é a mera vontade de causar um mal estar no outro, mas o desejo de, por meio do oferecimento de algo que é próximo da matéria morta, avizinhar fatos, gentes e lugares que são arbitrariamente distanciados pelas narrativas oficiais da violência. Talvez sugerir que não há quem não esteja de algum modo implicado no estado de coisas que leva tanta gente à morte abrupta no México”, observa.


Além de Comunicação, a artista mexicana também estudou Medicina Forense,
trabalhando em necrotérios. Foto: Antonio de La Rosa

“No entanto, o trabalho de Teresa mais e mais alcança lugares afastados de Ciudad Juárez e mesmo do México, mas que com essa cidade e seu país partilham a necessidade de tornar visível e de lidar com a violência que atinge, em particular, populações que não possuem o que tantas outras já têm, como direitos mínimos assegurados. Por exemplo, ela desenvolve uma série de ações, em localidades diversas, com grupos de mulheres bordadeiras que conversam sobre o medo e o risco que habitam suas vidas, ao mesmo tempo em que trabalham sobre um tecido previamente embebido em sangue de uma pessoa assassinada na cidade onde moram”, completa.

TRAGÉDIAS BORDADAS
No Recife, Teresa foi ao Alto José do Pinho para reproduzir o ritual que encenara no Panamá, na Nicarágua, na Guatemala e em Ciudad Juárez, com as indígenas tarahumaras. No adensado bairro da Zona Norte do Recife, deu às bordadeiras um lençol que tocou a cabeça de um jovem assassinado a tiros, mas o que se ouve no registro audiovisual é diferente. “O que escutamos, e por quem aquelas mulheres trabalhavam, é a história de uma mulher de 28 anos que foi assassinada e era prima de uma bordadeira. Vivia na rua, não possuía documentos, embora tivesse filhos e familiares que a reconheceram. Mas o estado não a reconheceu, era o momento da Copa do Mundo, e ela passou nove dias no IML, antes de ser enterrada. Eu disse que elas tinham ampla liberdade para costurar suas ideias no lençol como se fosse um mural, e aí uma delas começou a dizer o que se passou com sua prima. Então as demais começam a desenhar com o que ouviram de sua amiga, e é a história desse feminicídio que está ali. O corpo foi colocado em um lugar com pouca profundidade, um córrego de água suja, e a ideia é pensar em como a memória está curta… Passa um papel de jornal, passa uma laranja, passam folhas, ou seja, nada se detém. A memória é tão curta, que uma tragédia tapa a outra”, explica a artista mexicana.


Na videoinstalação PM 2010, Teresa registra capas de tabloide sensacionalista que exibe imagens de crimes ao lado mulheres sensuais. Foto: Divulgação

Na abertura da exposição, em dezembro passado, as bordadeiras finalizavam o mural, emocionando Teresa: “O cuidado e a delicadeza com que estavam honrando a memória de uma mulher desconhecida me tocaram muito. Qual o propósito de desenterrar essa história? Ao falar dela, elas a tornaram pública, devolveram sua identidade. Qualquer morte é uma tragédia e isso tem que ser falado”. É sobre a banalidade com que se lida com a violência cotidiana, com os crimes contra mães, esposas e amantes, que também versa a exposição, a primeira individual dela no Brasil. “Quando eu fui à Guatemala, havia 600 mulheres assassinadas em um ano. Quem sabia disso? Ninguém. É um embargo, não se fala, não se conhece. Desgraçadamente, a violência é agora um elo, é algo que nos une. Quando se pensa no México, é tequila e mariachis; quando se fala do Brasil, é samba, Carnaval, futebol, biquínis, mas nós sabemos o que está acontecendo nas ruas. Que país permite que se matem 3,7 mil pessoas em um único ano? Por que em 2010 ninguém se indignou? Agora o México está indignado por causa de 43 jovens, cujo único delito era ser pobres e querer aprender”.

Fazer arte, para Teresa Margolles, é prosseguir na tentativa de poetizar e dar visibilidade às tragédias do cotidiano – enquanto for necessário. “Aquelas casas retratadas em Esta finca no será demolida já não existem mais. Foram abandonadas pelo medo, pelo temor. E agora a especulação imobiliária as derrubou de vez. Quem sabe dentro de alguns anos não surjam essas grandes edificações de 30 andares como existem no Recife? As pessoas que moram nesses prédios acham que não têm nada a ver com a violência. Mas, quando assassinam alguém na rua, e o corpo é removido, o sangue fica na areia. Esse sangue seca, o vento o leva, viajando quilômetros, e faz esse pó cair na nossa cara. E esse vento nos toca… Estamos todos conectados. Se não fizermos nada, esse vento estará cada vez mais próximo. Só vou parar quando nascer um menino que não tiver seu pai e sua mãe assassinados, que possa olhar para trás e ver sua família inteira lá”, arremata a artista. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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