FOTOS MARCIO RM
01 de Fevereiro de 2015
Para desagrado dos foliões mais exibidos, a banda não permite circulação de trios e carros de som
Foto Marcio RM
"Em 2015, comemoramos 500 anos. Os 450 do Rio de Janeiro e os 50 da Banda de Ipanema.” A máxima é de Claudio Pinheiro – cofundador, atual diretor do grupo e o único ser humano a jamais ter faltado a um desfile da Banda desde a sua fundação, em 1965. Uma vez que não seria exagero enxergar a aniversariante cinquentenária como parte inexpurgável da história do Rio de Janeiro, tampouco honesto imaginar um outro lugar em que ela poderia ter se tornado o que se tornou, basta um breve apanhado histórico para chegar à conclusão de que Claudio tem razão.
Em 1959, o artista plástico Ferdy Carneiro convidou alguns amigos para passar o feriado em Ubá (MG) – dentre eles, o irmão mais velho de Claudio e futuro patrono da banda, Albino Pinheiro. Deslumbrados ficaram com o que lhes apresentou a irreverente Philarmônica Em Boca Dura, grande atração do carnaval local: cavalheiros de ternos brancos surrados e damas em vestidos senhoriais ostentavam instrumentos que não faziam a mais vaga ideia de como tocar (uma outra banda “verdadeira”, discretamente, fazia o trabalho). Capitaneados por Ferdy e Albino, seis carnavais mais tarde, uns 30 gatos pingados – dentre eles Jaguar e a turma do Pasquim – se inspirariam na verve zombeteira e anárquica da Philarmônica para fundar a Banda de Ipanema.
Cofundador e atual diretor da banda, Claudio Pinheiro orgulha-se de nunca ter faltado aos seus desfiles
Se as circunstâncias de gênese podem parecer pouco grandiloquentes para aquilo que viria a se tornar o primeiro patrimônio imaterial tombado do Rio de Janeiro, vale lembrar, antes de tudo, o marasmo em que vivia o carnaval de rua carioca naqueles tempos. Afora o solitário e tradicional Cordão da Bola Preta, que se consagra centenário em 2018, os festejos momescos que não aconteciam nas grandes passarelas de samba enredo limitavam-se aos clubes privados e bailes oficiais. “O mais importante deles – veja que absurdo! – acontecia nas dependências solenes e históricas do Theatro Municipal. Os blocos tinham sumido das ruas, até mesmo nos subúrbios”, conta Ziraldo, outro ilustre cofundador da Banda de Ipanema. “Antes da Banda, não tinha %&#$ nenhuma”, reitera Claudio.
YOLHESMAN CRISBELLES
Dada a carência, não foi preciso muito para que os ipanemenses passassem a seguir adoidadamente aquela procissão indecorosa. E como era para o bairro que estavam voltados todos os olhos do país naquela época, eis que não tardou que se desse uma grande explosão de bandas carnavalescas pelas ruas de todo o Brasil. “Logo apareceram de volta os blocos, e o Simpatia é Quase Amor, também de Ipanema, abriu caminho para o tipo de bloco que existe hoje no Rio”, explica Ziraldo. O lema “Uma banda em cada bairro”, erguido em faixa desde os primórdios da Banda de Ipanema, tornou-se rapidamente realidade.
Mas a mais célebre faixa – assim como Claudio Pinheiro, presente em todos os desfiles da banda – traz os dizeres Yolhesman Crisbelles. Trata-se de uma aleatoriedade: um cidadão de cunho messiânico, que fazia discursos em cima de um caixote na Central do Brasil, costumava terminar suas frases, geralmente incompreensíveis, com essa expressão igualmente indecifrável – acontecido que Ferdy Carneiro não deixou passar. Todavia, se a primeira faixa trouxe de volta os blocos à rua, a segunda arregalou os olhos paranoicos da ditadura militar.
Leila Diniz é a eterna musa do grupo carnavalesco. Foto: Reprodução
O SNI (Serviço Nacional de Informações) teve certeza de que estava diante de um código subversivo. Há rumores de que escalou agentes infiltrados nos desfiles, na tentativa de desvendar o mistério. Embora essa suposta operação tenha resultado em nada, os contratempos dos foliões ipanemenses com os militares estavam longe do fim. Yolhesman Crisbelles não era o único mote da Banda a alertar os militares contra a ameaça subversiva iminente. De acordo com o relatório do comissário Deuteronômio da Rocha Santos, que tentou encerrar as atividades carnavalescas da Banda de Ipanema em 1974, também se evidenciavam temerários os chavões: “a. – ‘a praça é do povo’, utilizado por elementos comunistas; b. – ‘República Livre de Ipanema’, sinônimo da ‘comuna’, isto é, circunscrição territorial dentro de um estado; nesse caso, o bairro ficaria sob administração desses elementos; c. ‘esquerda festiva’, designação dos elementos comprovadamente de ideologia alienígena, mas de conduta ‘burguesa’, frequentadores assíduos dos bares e cervejarias do bairro’”.
Apesar dos alertas de Deuteronômio, a Banda passou e agigantou-se em progressão desgovernada. “No primeiro ano, tinham 30. No terceiro, 1.800”, conta Claudio Pinheiro, que hoje se prepara para administrar algo em torno de 60 mil foliões. Além de fiéis seguidores, a Banda de Ipanema também acumulou, ao longo das décadas, um currículo mais que respeitável de padrinhos e madrinhas. Dentre os que compõem a lista, estão Bibi Ferreira, Cartola, Tom Jobim, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Grande Otelo e Leila Diniz, primeira e eterna rainha da Banda. Mas a mais ilustre e imodesta das condecorações acontece mesmo este mês: para a ocasião dos “500 anos” celebrados, quem fará as honras simultâneas de padrinho e madrinha será a cidade do Rio de Janeiro. “Rio, logo existo” é o novo a entrar para o outrora famigerado hall dos chavões da Banda e estampa a camisa oficial do cinquentenário.
Entre as faixas empunhadas pela banda, a mais famosa é a que traz escrito o enigmático dístico Yolhesman Crisbelles. Foto: Reprodução
Mesmo com tanta carioquice ostentada, não seria desvario chamar a maior das instituições ipanemenses de patrimônio imaterial brasileiro. Em parte, porque seu repertório atual de 100 músicas de quase quatro horas é uma verdadeira cartografia da música popular do país – ciranda, marchinhas, samba-enredo, bossa-nova, choro, valsa, carimbó, maxixe, frevo, baião, forró e até a Suíte de Villa-Lobos já entraram na trilha do passo (vale até aproveitar o assunto para esclarecer que a ausência de sinônimos genericamente carnavalescos para “banda”, neste texto, se deve à clara distinção defendida por seus fundadores: um bloco é majoritariamente percussivo, enquanto uma banda dá destaque aos sopros).
Em outra parte, porque suas tubas e trombones transcendem os contornos da cidade de São Sebastião – só este ano foram convidados para os carnavais de Juiz de Fora, Fortaleza e São Paulo. “E estou esperando o convite para o Recife, $#%&!”, cobra Claudio, que, em delírios de grandeza, professa superar o Galo da Madrugada.
PERSONAGENS
Albino Pinheiro, considerado por Fausto Wolff “o maior prefeito que o Rio já teve, sem jamais ter sido prefeito”, é um dos principais responsáveis por promover o encontro da Zona Norte com a Zona Sul da cidade – popular e nobre, respectivamente –, e pela fama de farra democrática que a Banda de Ipanema até hoje carrega. Conhecedor de cada gafieira, botequim e roda de samba da cidade maravilha, precisava de muito mais que uma quarta-feira de cinzas para desmanchar sua verve de agitador cultural – façanha que só mesmo a morte, em 1999, conseguiria fazer, embora parte de suas crias siga vivendo por ele. Como secretário de Turismo da prefeitura local, Pinheiro revitalizou a tradicional Festa da Penha e criou o projeto Seis e Meia, que se mantém desde 1976.
O poeta Ferreira Gullar está entre os intelectuais que deram prestígio ao desfile. Foto: Reprodução
“Era dificílimo encontrar alguma manifestação cultural de massa no Rio de Janeiro que não tivesse um dedo dele. Seu maior pecado foi jamais ter escrito um livro”, lamenta Claudio, que pensa em assumir o registro histórico, enquanto enfrenta rodeios da municipalidade para erguer uma estátua do irmão na praça General Osório – tradicional ponto de concentração e chegada da Banda. No cinema, o documentário Folia de Albino (2000), do também cofundador e falecido Paulo Cesar Saraceni, traz uma série de depoimentos sobre aquele que talvez desbanque Vinicius de Moraes do lugar de “branco mais preto do Brasil”.
Mas Claudio e Saraceni não foram os únicos que se preocuparam com a preservação da memória do patrimônio imaterial carioca. Marcio RM, que assina as fotos desta matéria e há 32 anos fotografa todos os desfiles, espera aproveitar a ocasião do aniversário da Banda e da cidade para publicar um livro com todos os registros que acumulou. “É uma vontade muito antiga, sigo em busca de algum patrocínio”, explica. Marcio começou com a tradição aos 20 anos, quando arrumou o primeiro emprego no Jornal de Ipanema, antes dos antigos diários de bairro darem lugar aos grandes veículos de imprensa. “Fotografar é sair para pescar, e a Banda de Ipanema tinha vários cardumes.”
De um início com 30 foliões, o grupo estima para este ano 60 mil participantes
Dos personagens célebres, Marcio rememora as folclóricas travestis que passaram a povoar a Banda, com grande representatividade a partir dos anos 1980. Destacam-se, entre suas lembranças, Lola Batalhão, lembrada pelo título de rainha dos gogo boys e por extravagâncias, como desfilar carregada em uma bandeja e servida qual leitão; a Sereia Splash, interpretada por um chapeleiro cuja elasticidade fônica tornava a voz de sua personagem muito diferente da sua habitual, e a Mulher da Mala, que há três décadas desfila e tem circunstâncias de nascimento que caberiam em um romance de realismo fantástico.
“Minha tia morreu e ganhei de herança um apartamento dela em São Paulo. Quando o adentrei, descobri que estava repleto de malas e mais malas do mundo todo, todas cheias com roupas que remetiam aos países mais improváveis, da Escócia ao Japão!”, conta Eduardo Rasberge, ator e artista plástico com quem a Mulher da Mala divide as honras de ter sido rainha da Banda em 2002. Rasberge, contudo, não é muito simpático à diretoria atual, apesar de sua coroação só ter vindo na era pós-Albino. “Tio Ferdy e Tio Albino eram alegres, mas a diretoria atual é desagradável. Os seguranças são uns brutos. E, como a Banda cresceu, já está em tempo de arrumarem carros de som”, critica.
O incômodo da Mulher da Mala com os rumos recentes dos desfiles, vale dizer, é partilhado com algumas das suas figuras mais antigas e notórias, ainda que por razões bastante distintas. Para o cartunista Jaguar, o próprio predomínio de travestis e a transformação da folia em patrimônio já foram motivos para protestar – na ocasião, chegou a dizer que era um despropósito “tombar uma molecagem”. Ferreira Gullar, outro ilustre folião, queixou-se na crônica E a banda passou da superpopulação carnavalesca que tornara quase impossível sambar nas sufocantes avenidas cariocas e acabara por descaracterizar o cortejo. Já Ziraldo aparenta ter uma percepção mais ponderada dos novos tempos, embora concorde que os velhos nunca voltarão. “A presença do que chamam de Banda de Ipanema hoje não tem nada a ver com a banda original. Mas eu não fico deprimido como o Jaguar, porque tenho a vaga impressão de que o mundo se move e a felicidade vem acompanhada da ‘obsolescência planejada’. Quer dizer, a felicidade tem seu tempo de uso”, avalia.
É notória a presença da diversidade sexual no desfile da
Banda de Ipanema
Para Claudio Pinheiro, todavia, é preciso despir-se de saudosismos e enxergar o presente em seus avanços: “A Banda sempre fez apologia ao carnaval de rua: uma banda em cada bairro. Agora o pessoal vai à rua e reclamam? Isso é tacanho, tem de ficar feliz”. No entanto, mesmo admitindo que é impossível manter o formato de cinco décadas atrás, quando 30 pessoas podiam desfilar na Vieira Souto sem serem engolidas por uma multidão interminável, Claudio se mantém fiel às cláusulas pétreas. São elas: entra quem quiser, a música é brasileira e o pé é no chão – nada de trios elétricos nem carros de som, para o infortúnio da Mulher da Mala.
O certo é que, se os tempos mudaram, a Banda de Ipanema foi protagonista da própria transformação. Chamou as pessoas para a rua e elas vieram. Hoje, desfilam os filhos e netos dos casais que ajuntam há 50 anos, e que devem seguir se multiplicando. Afinal, uma vez tombada, no Carnaval em que a última das diretorias resolver cruzar os braços, restará ao prefeito a obrigação de empunhar seu estandarte. Mas é improvável que isso se dê na gestão de Claudio Pinheiro, cuja paixão pela folia o impede de enxergar muita fundamentação retórica no coro nostálgico dos descontentes: “Tem gente que não gosta até de sorvete de caju, %&$#!”.
MATHEUS TORREÃO, jornalista e músico.
MÁRCIO RM, fotógrafo, com projeto de mapeamento de festas populares.