Esses questionamentos inauguraram uma nova fase na carreira de Flaira Ferro. Em 2010, a bailarina ingressou no Curso de Formação de Intérprete Pesquisador em Dança, realizado pelo Acupe Grupo de Dança, e encontrou eco às suas inquietações nas aulas de professores como Marcelo Sena, Maria Eduarda Gusmão e Isabel Marques. Naturalmente, a dança contemporânea surgiu como direção, porque era o lugar “em que havia mais gente pesquisando, mais gente interessada nessas questões”.
Espetáculo Frevo da Casa busca reaproximar músicos e passistas.
Foto: Silvia Machado/Divulgação
A rotina de passista virtuosa, treinando incansavelmente para elevar o nível de execução e o grau de dificuldade dos movimentos, foi então substituída por um cotidiano de artista pesquisador, instigado e acompanhado pelas amigas Bella Maia, que acabava de regressar do Rio de Janeiro onde concluíra graduação em Dança, e Camila Moraes, que cursava Jornalismo na mesma turma de Flaira. Dessa união nasceu a Untanto Cia de Dança, que, apesar do curto período de existência, foi responsável pelo primeiro solo em dança contemporânea da passista. “Esse trabalho é um divisor de águas no meu percurso profissional. A vida começou a me jogar em lugares em que eu precisava ampliar a consciência sobre o meu dançar. Queria entender melhor o que eu fazia, e por que fazia. Quais eram as questões por trás desse corpo que foi construído na dança popular? Qual era o meu frevo?”
O espetáculo O frevo é teu? estreou em 2011, em resposta às inquietações, mas como não queria nem podia negar aquela dança que tinha dado forma aos seus movimentos até então, decidiu manter o frevo no papel de protagonista das suas criações. “Até mesmo porque acredito que as danças populares têm muito a oferecer às outras linguagens e formas de dança, pois possuem uma riqueza incrível de vocabulário gestual e rítmico, de direção, intenção, e qualidade de energia. Não vejo sentido em não continuar utilizando esse material, até mesmo para que outras pessoas vejam o quanto essas danças são poderosas.”
Desse rico vocabulário do frevo, Flaira extraiu também seu mais recente experimento cênico, Trajetos e trejeitos, e um vasto material para alimentar a pesquisa teórico-prática O espaço do passo, realizada em parceria com a bailarina e jornalista Valéria Vicente. “A intenção era analisar quais os espaços de atuação e formação dos passistas de frevo em Pernambuco, e discutir essas relações, utilizando um blog para todos poderem acompanhar o passo a passo da nossa pesquisa. Mas, como fizemos muitos laboratórios e vivências práticas, acabamos construindo também uma performance. Então, convidamos o Maestro Spok e o percussionista Lucas dos Prazeres, e assim surgiu o espetáculo Frevo de casa, com o desejo de reaproximar músicos e passistas de frevo que pareciam desconexos nos concursos e apresentações que vimos durante a pesquisa”, explica Flaira, enquanto informa que esse trabalho vai cumprir uma minitemporada no Centro Cultural da Caixa, no Recife, este ano, mas ainda sem data definida.
O trabalho de Flaira continuava frutificando. Mas tudo indicava que a caçula do engenheiro e político Fernando Ferro e da doutora Thereza não se satisfazia com o que muitos chamam de “zona de conforto”. O gosto por desafios fez com que ela, aceitando um convite de Rosane Almeida e Antonio Nóbrega, se mudasse para São Paulo. Na capital paulista, dividia seu tempo entre os ensaios da peça Amado, uma homenagem ao escritor baiano Jorge Amado no ano do seu centenário (2012); o trabalho como bailarina do espetáculo Húmus (da Antonio Nóbrega Cia. De Dança) e as aulas de danças brasileiras, que passou a ministrar no Instituto Brincante.
“Longe de casa e da família, começando a lidar com algumas dimensões da solidão e tendo que me reinventar em uma cidade onde ninguém sabia quem eu era, acabei entrando em um caminho de intensa autorreflexão, que me levou de volta à música”, conta Flaira, que acaba de iniciar sua carreira de cantora e compositora, lançando no começo deste ano, no Teatro Santa Isabel, o seu álbum de estreia, Cordões umbilicais.
Bailarina utilizava-se do repertório vasto do frevo na criação
de coreografias. Foto: Ju Brainer/Divulgação
MÚSICA
O disco, com viés autobiográfico, tem 10 faixas autorais (duas em parceria com Igor Bruno, uma com a amiga Camila Moraes e outra com Ulisses Morais) e mais uma música-bônus, composta e cantada à capela pelos pais da artista. A irmã mais velha, Flávia Ferro, entrou como parceira em uma das composições. “Ninguém na minha família é artista profissional, e sempre tive dificuldade em aceitar que ser artista era minha profissão. Incluí-los foi uma forma de me sentir incluída”, conta. O desejo de cantar veio, segundo ela, mais de motivações pessoais do que profissionais. “Eu era uma criança muito chorona, berrava por tudo, tanto que acabei ficando com calo nas cordas vocais. Acho que meus medos e muitos traumas eu guardei na garganta. Essa região do meu corpo é meu lugar de emoção. O lugar simbólico de expressão da minha vida. Tive vontade de cantar exatamente para desatar esses nós da garganta.”
Para dar forma às suas ideias musicais, ela contou com a experiência de dois amigos músicos, que conheceu no processo criativo da peça Amado, Leonardo Gorosito e Alencar Martins. Quando o processo estava finalizado, a artista percebeu uma unidade conceitual que permeava as faixas e chegou ao título. “Minha mãe é obstetra e, por causa disso, assisti a vários partos. Naquele momento, essas imagens dos cordões umbilicais vieram muito fortes e se transformaram na música-título do CD – Somos tantos mundos dentro de outros mundos mais e estamos ligados por cordões umbilicais. Com esse disco, eu volto para o ventre da minha família, só que de outro lugar e de outra forma, mas sempre ciente do quanto, sozinha, eu não sou nada, preciso do outro para me manifestar. Necessitamos de um suporte emocional comunitário, familiar, para nos ajudar a tomar nossas decisões individuais, e fazer as escolhas certas.”
Na vida real, esse regresso não tem data marcada, mas é uma certeza. “Ficar aqui, para sempre, não. E, para minha sanidade mental, tenho que ir ao Recife pelo menos uma vez por semestre, para beber na fonte das minhas memórias, dos meus afetos, e não correr o risco de me perder de mim mesma.” Então, Flaira vai continuar em São Paulo por tempo indeterminado, desenvolvendo trabalhos de atriz, cantora e dançarina, e fugindo dos engavetamentos e dos rótulos.“O regionalismo das minhas composições está mais no meu sotaque pernambucano do que na musicalidade. Cada faixa tem um mote inspirador, um ritmo da cultura popular como ambiência sonora, seja maracatu, cavalo-marinho, batuque paulista, e, é claro, o frevo. Mas tudo dissolvido, tudo bem-misturado”, comenta.
Sobre suas referências musicais, Flaira diz que, mesmo sendo clichê, reconhece em Elis Regina a máxima excelência artística, na voz preciosa, na presença cênica e na interpretação dramática. Ao lado da eterna musa da Música Popular Brasileira, ela cita nomes como Gilberto Gil e o próprio Antonio Nóbrega, com quem trabalha há três anos. “Me interessa quem está fazendo fusão de linguagens, porque unir dança, música e teatro é o que me dá mais prazer. É muita crueldade com o ser humano querer que ele seja uma coisa só pelo resto da vida. A vida é muito grande para você querer colocar tudo numa gaveta, muito grande para você ser uma coisa só”, argumenta.
Mesmo nessa fase, em que a ênfase é musical, Flaira Ferro mantém o teatro e, principalmente, a dança, muito presentes na sua cena, até porque, como ela faz questão de afirmar, não se trata de uma transição, uma troca ou predileção por uma determinada linguagem artística, mas de uma multiplicidade consciente. “Eu me sinto plena fazendo isso, deixando a arte me tomar por todos os poros.”
CHRISTIANE GALDINO, jornalista e mestre em Comunicação Rural (UFRPE).