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'David Copperfield': O filho dileto de Dickens

Romance, que é considerado o mais autobiográfico do autor inglês e foi publicado em folhetim, recebe nova edição nacional, acrescida de textos analíticos

TEXTO Priscilla Campos

01 de Fevereiro de 2015

Charles Dickens publicou este oitavo romance em jornal, entre 1849 e 1850

Charles Dickens publicou este oitavo romance em jornal, entre 1849 e 1850

Imagem Reprodução

Quando alguém se dedica à literatura e reconhece a palavra como obsessão, aceita, sem avisos prévios, certo feitiço que converte escritores em personagens. Charles Dickens e Fiódor Dostoiévski, por exemplo, foram atingidos pelo tal encantamento narrativo. Durante mais de um século, jornais, publicações acadêmicas e, posteriormente, biografias voltadas para a vida do vitoriano propagaram seu encontro com o escritor russo em 1862. Contudo, a correspondência na qual Dostoiévski contava os pormenores da conversa para um amigo nunca apareceu. Após árdua pesquisa acadêmica, a história revela-se, afinal, como ficção: nas últimas décadas, o historiador britânico A.D. Harvey – e suas múltiplas identidades – foi o responsável pela disseminação da narrativa. Para além do imaginário que envolveu a falsa notável reunião, Dostoiévski era, de fato, um dos entusiastas leitores de Charles Dickens. De suas leituras, a mais importante (e comentada em seus escritos pessoais) foi a de David Copperfield (1850), escolhido pelo russo como companheiro literário em uma fria prisão siberiana.

O romance – lido também por Henry James, Franz Kafka e D. H. Lawrence – ocupa lugar central na obra de Dickens. Em uma bonita nova edição assinada pela Cosac Naify, com tradução de José Rubens Siqueira, David Copperfield volta às livrarias brasileiras e ao debate crítico de forma estimulante. Após as 1.238 páginas narrativas, o leitor ainda tem pela frente outras 40 com textos analíticos, entre eles, um ensaio de Virginia Woolf. “Quando lemos Dickens, reformulamos nossa geografia psicológica (...)”, afirma a escritora, e continua: “Com tamanha força nas mãos, Dickens fez seus livros se inflamarem, não apertando a trama ou afiando a fala, mas atirando mais um punhado de gente no fogo”. Essa imagem da fogueira à espreita permanece durante todo o livro: os mais de 30 personagens (todos memoráveis à sua maneira) são rodeados, em algum momento, pela angústia e beleza das chamas dickensianas. O que não quer dizer que o leitor fique incólume à calorosa cerimônia. Em Romance das origens, origens do romance, a escritora e tradutora francesa Marthe Robert define os escritos de Flaubert como uma bela “frigideira, onde o leitor encontra tanto prazer em tostar”. Do romantismo que cerca o fogo primitivo à informalidade do alumínio queimando, Dickens arremessa todos sem piedade, pois como sentenciou Georg Lukács: “O romance é a epopeia do mundo abandonado por Deus”.

Através do relato detalhista de David Copperfield, o leitor captura com facilidade alguns elementos gerais do texto, como o tom melodramático, a temática burguesa, o exercício de uma linguagem urbana – apesar de o escritor ter vivido muitos anos no interior da Inglaterra – e a estrutura folhetinesca. Nos primeiros capítulos, Dickens investiga com primor a infância. A constante postura inocente diante dos fatos cotidianos e a devoção a figuras femininas, como sua mãe Clara, a governanta Peggotty, a tia-avó Betsy Trotwood, marcam a fase inicial do narrador. Ritos de passagem e os chamados coup de théâtre (viradas narrativas), característicos da literatura dickensiana, aparecem continuamente nessa fase, porém, sem causar cansaços significativos no ritmo da leitura.

ESTIMA PELA MEMÓRIA
Ao fugir a pé do precário cargo que ocupava na empresa londrina do Sr. Murdstone (seu terrível padrasto), David passa por diversas provações. Logo no começo da empreitada em busca do reencontro com sua tia, moradora da cidade de Dover, ele é vítima de um assalto que o obriga a desfazer-se de suas roupas em troca de algum dinheiro. Obstáculos físicos estão presentes: o garoto dorme sem nenhum conforto nas ruas, passa fome e enfrenta mudanças climáticas. Os infortúnios emocionais e materiais são superados um a um com a esperança e a determinação características do herói romântico. Tais rituais também representam o passeio por diferentes britanismos: dos costumes à geografia, as terras da rainha tornam-se bússola para a navegação em David Copperfield.


Pesquisa para capa da nova edição buscou tipologia dos cartazes
teatrais. Imagem: Reprodução

Compreendida por pesquisadores como a publicação mais autobiográfica de Dickens, a narrativa tem pela memória grande estima. Em A teoria do romance, Lukás reflete sobre a eterna batalha travada no espaço romanesco entre o real e o imaginário: “(...) a objetividade do romance, a percepção virilmente madura de que o sentido jamais é capaz de penetrar inteiramente a realidade, mas de que, sem ele, esta sucumbiria ao nada da inessencialidade – tudo isso redunda numa única e mesma coisa, que define os limites produtivos, traçados a partir de dentro, das possibilidades de configuração do romance (...)”. A palavra sentido é aqui muito bem-vinda. Ao render-se ao ficcional, o romancista procura a ressignificação de certa existência.

Novas representatividades são construídas ao longo do processo de escrita de um romance. Na psicanálise lacaniana, escrever é uma maneira de estar em contato com o sinthoma, expressão que engloba o simbólico, o real e o imaginário do sujeito. Ao grafar “Fui filho póstumo. Os olhos de meu pai estavam fechados para a luz deste mundo havia seis meses, quando os meus se abriram para ele. Há algo de estranho para mim, mesmo hoje, na ideia de que ele nunca me viu (...)”, Dickens ingressa no procedimento analítico, procura para o seu sinthoma um lugar antes desconhecido. De acordo com Marthe Robert, o escritor, por meio do romance, “exprime um desejo de mudança que tenta realizar em duas direções, pois ou ele conta histórias, e muda o que é, ou busca casar-se acima de sua condição, e muda o que ele é”.

A expressão “turma dickensiana de grotescos” está no livro The english novel: an introduction, importante fortuna crítica assinada pelo filósofo britânico Terry Eagleton. Em capítulo dedicado a Charles Dickens, Eagleton faz uma análise cirúrgica dos personagens, sempre tão contrários à perfeição. Para ele, todos são realistas, humanos e “fiéis a um novo tipo de experiência social”. A partir dessa noção de “novo tipo”, é pertinente observar aspectos que estão entrelaçados na formação dos indivíduos dickensianos. Todas as personagens em David Copperfield possuem algum desvio, seja ele neurótico, histérico, comportamental. A submissão de Clara às maldades e imoralidade do Sr. Murdstone; a impassibilidade egoísta de Steerforth; a inocência doentia do Sr. Dick.

Tal desorientação pessoal – presente no cotidiano de todos nós – é disseminada pelo escritor com capricho nas descrições. Essa esgotante revelação de indivíduos às vezes pouco desenvoltos em suas ações, idiotas, insistentes em seus erros, passa longe da ideia de personagens ricos e versáteis que se sustentou até ali na literatura. Ao apresentar um amplo conjunto bizarro de pessoas, Dickens traz a consolidação de “sociedade” até então estranha para os romances. A certeza de que o incomum também pode ser encontrado nos heróis e nos vilões é triunfante em David Copperfield.


Hablot Browne criou desenhos para 10 novelas de Dickens, entre elas,
David Copperfield. Imagem: Reprodução

A partir da exposição dos personagens, é fácil constatar que o escritor possuía senso estético muito poderoso em conceber imagens. Certa noção de posicionamento do “olho do espírito”, surpreendente para aquela época, pode ser observada em trechos como este: “Se eu pudesse associar a ideia de um touro ou de um urso a alguém tão brando como o sr. Mell, eu pensaria nele, com relação àquela tarde em que o tumulto chegou ao ápice, como um desses animais, açulado por 10 mil cães”. Ao debruçar-se tão exaustivamente sobre seus personagens, Dickens explora, talvez, todas as suas habilidades linguísticas e narrativas, tornando David Copperfield seu “filho predileto”, como afirma no prefácio da edição de 1867.

MINÚCIAS GRÁFICAS
Assinado pelos designers Paulo André Chagas e Nathalia Cury, o projeto gráfico da nova edição (com 1.303 páginas) oferece um relacionamento livro x leitor interessante para um calhamaço. A escolha pelo formato pocket em capa dura trouxe para o clássico manuseio mais fácil e, ao mesmo tempo, elegante. “Levamos em consideração a economia na produção para baratear o preço de um livro desse porte. O pocket é um formato que estamos acostumados a usar aqui na Cosac, não só na linha Portátil. Ao mesmo tempo, no caso do David Copperfield, gostaríamos que tivesse capa dura, para, além de estruturar melhor o objeto (que, por conta do menor tamanho versus grande número de páginas, parece um cubo), resultar em uma encadernação que valorizasse o livro – promovendo uma distância dos pocket books convencionais – e privilegiar sua abertura, facilitando a leitura”, explica Paulo André.

De acordo com o designer, a ideia para a capa e organização gráfica (títulos dos capítulos, estilo de fonte, artes) surgiu da pesquisa realizada por ambos, dos impressos ingleses da época em que o romance foi escrito. “Foi um período interessante na comunicação visual, na qual os cartazes de teatro eram bem característicos, com suas misturas quase esquisitas de estilos de fontes. Isso era feito para chamar a atenção de quem passasse na rua e para ‘espremer’ a maior quantidade de informação possível em um mínimo espaço – o que, para mim, os tornava bizarramente atraentes. Esse universo dos cartazes teatrais também faz menção às leituras públicas dramatizadas que Dickens fazia de seus livros. Outra coisa que levamos em consideração foi que os livros do autor saíam em capítulos ilustrados mensalmente. Isso nos fez procurar ilustrações da época e tentar usá-las para contar um pouco da história já na capa, como vinhetas”, relata Paulo.

Anna Grigorievna, mulher de Dostoiévski, conta em seu diário que o russo lhe apresentou as novelas de Charles Dickens como parte de sua “educação literária”. Complexo em sua infinidade de vertentes esperando para ser discutidas, David Copperfield faz parte da biblioteca estelar na qual todos os apaixonados por literatura devem fazer uma visita. 

PRISCILLA CAMPOS, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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