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Cinema: "Nosso trunfo é a liberdade"

Profissionais ligados à cadeia produtiva cinematográfica participam de encontro para discutir questões relevantes da produção atual

FOTOS MARIA CHAVES

01 de Janeiro de 2015

Foto Maria Chaves

Entre as ações editoriais planejadas para este ano, como marco dos 15 anos da revista Continente, está a realização de uma série de encontros com realizadores dos segmentos culturais, para que discutam situações que consideram relevantes. Neste primeiro momento, cinco profissionais – três realizadores, um produtor e uma professora e crítica, mediados por duas jornalistas – falam sobre o cinema pernambucano contemporâneo. Parte dessa Conversa está nas páginas que se seguem, e disponibilizada no site da revista e no YouTube, para que a discussão se replique e gere novos debates. A intenção é que tal polifonia possa repercutir pontos de vistas convergentes e divergentes, enriquecendo nossa maneira de enxergar o fazer cinematográfico em Pernambuco. Essa experiência será repetida a cada dois meses. Portanto, em março teremos uma nova Conversa.

LUCIANA VERAS A gente pode falar numa identidade do cinema pernambucano? Se é algo que pode ser demarcado pela geografia ou se há afinidades geracionais…

ANGELA PRYSTHON Tem uma questão vinculada à cidade do Recife, a uma certa vontade de urbanidade, a uma certa atração cosmopolita da cidade, que não envolve só o cinema, se a gente for pensar. Inclusive, na história do cinema está muito marcado esse desejo de adesão ao imaginário mundial, que é ao mesmo tempo cosmopolita e provinciano, e também uma afirmação meio localista da cidade. Mas acho que, de fato, não tem uma unidade. Basta a gente pensar nos três realizadores que estão aqui, que têm perspectivas muito distintas em relação ao audiovisual, e que não é uma questão só geracional, até porque existe uma proximidade de idade. Acho que tem uma identidade relacionada com a cidade, mas também uma diversidade muito grande.

ADRIANA DÓRIA MATOS O que acontece também, talvez, com o cinema, é que quem está fazendo não está preocupado com essa questão de localidade, e, sim, com suas angústias e ansiedades. Mas o espectador tenta olhar no conjunto uma identidade, fica tentando catalogar, porque tem essa necessidade de classificação, que é arbitrária. A impressão que eu tenho é de que lá fora as pessoas estão vendo uma cidade que não é vista, ouvindo uma voz que não é muito ouvida, cenário, situações que não são colocadas por cinematografias de outras regiões. Tem esse desejo do público de se ver. Camilo, aquele seu filme, o Ave Maria ou a Mãe dos Oprimidos, é todo feito nas ruas centrais do Recife. Pedroso, no Pacific, que você juntou o que as pessoas foram lhe oferecendo… também tem essa coisa da identificação com aquelas personagens. E, Renata, o seu Superbarroco tem uma coisa de memória vinculada com seu trabalho como artista plástica.


Angela Phrysthon

RENATA PINHEIRO Mas, aí, logo depois eu faço, junto com Sérgio Oliveira, o Praça Walt Disney, em que a gente usa uma praça que fica no terceiro jardim de Boa Viagem, como um pino localizador de uma questão maior, que seriam as influências culturais, o que somos nós, que traçado urbanístico é esse. Acho que, inclusive, tem vários filmes com isso, que esse movimento do cinema pernambucano passou por uma fase de reconhecimento de área mesmo. Várias pessoas querendo entender que cidade é essa, porque, de fato, houve uma transformação muito abrupta e rápida e incomodou a todos. E engraçado que, talvez nesse momento, haja uma semelhança, pelo menos temática, entre algumas obras, mas, de ninguém combinou com ninguém, né?

CAMILO CAVALCANTE Eu prefiro pensar – assim como Jomard Muniz de Britto se referiu, nos anos 1970/ 1980, ao super-8, como está no livro de Alexandre Figueirôa – não como um movimento, mas como uma movimentação. Acho que hoje existem movimentações de pessoas, de grupos que se flertam ou não, mas que está todo mundo dentro de uma mesma rede, uma mesma malha, uma malha fina, que se entrecruza mais cedo ou mais tarde, ou que, se não se entrecruzou, vai se entrecruzar. E o nosso grande trunfo é justamente isso, essa pluralidade de ideias, mesmo, que correm livres e soltas. O que temos em comum é uma questão de persistência, de uma crença no que você, o autor, cada diretor, quer expressar. Existe uma fé muito grande no que você quer dizer. E isso está refletido nos filmes. Cada um tem a cara do seu realizador, o cheiro, o jeito do seu realizador. Isso é muito evidente. E o nosso grande trunfo é esse. Essa liberdade que a gente tem. Ninguém quer imitar o outro. Ninguém quer imitar a produção televisiva. Ninguém quer fazer filme que seja cartão-postal para trabalhar depois na teledramaturgia. Cada um, cada projeto, é particular e muito íntimo. Essa é nossa grande riqueza, é o que faz o nosso cinema ser tão pulsante. Porque ele é honesto no fazer, no sentir, no pensar, no criar. Cada um com a sua honestidade pessoal, com seu olhar, com sua meta, com seu foco, com sua persistência. Tem essa marca da persistência, que também é uma grande marca dos realizadores que habitam Pernambuco.

ANGELA PRYSTHON É, concordo que tem uma individualidade, mas dá para encontrar uma recorrência. E acho que também tem influências naturais: cada realizador vai ter seu grupo de influências, seu repertório, e, aí, tem uma coisa geracional que dá para identificar. Se você pensar, por exemplo, que a geração dos veteranos – Lírio Ferreira, Claudio Assis, Paulo Caldas, Marcelo Gomes – tem um enfoque talvez mais folclórico, regionalista; Marcelo um pouco menos, no sentido até de marcar esse lugar de Pernambuco. Aí, você pega uma geração intermediária, com Camilo e Kleber (Mendonça Filho), e depois essa geração da Símio e da Trincheira, que tem uma pegada mais realista, um realismo mais internacional, que traz influências de um minimalismo expressivo. Fico pensando em filmes como Eles voltam, de Marcelo Lordello, por exemplo, que possui algo de várias coisas, tem algo desses ventos orientais. E Ventos de agosto, de Gabriel Mascaro.

JOÃO VIEIRA JR. Sempre falei que não é um movimento, mas que existe uma identificação, porque todos esses são filmes autorais. Existe um diretor que pensou e quis se expressar artisticamente, de algum jeito, alguns mais existenciais, outros mais sociais.O Recife é até uma cidade muito aberta. Que outra cidade teria um baile cubano há 30 anos? Aqui, tem uma abertura à música e ao cinema.

CAMILO CAVALCANTE Os filmes eram uma força que reunia toda a cidade. O Baile perfumado foi uma coisa épica, de desbravadores naquele tempo.


Camilo Cavalcante

JOÃO VIEIRA JR. Naquele momento, você não tinha uma coisa que a gente tem hoje: um calendário. Todo ano tem o Funcultura, tem também o Fundo Setorial. Antes se levava um tempo muito grande, você gastava a maior parte do dinheiro com fretes, com equipamentos, com profissionais que sabiam operar e não sabiam quanto tempo levaria aquela empreitada.

CAMILO CAVALCANTE E, hoje em dia, dá para você filmar e finalizar o filme todo aqui sem sair do Recife. Tecnicamente, é possível.

RENATA PINHEIRO Já que a gente está tentando descobrir o que é esse movimento, eu acho que tem muito a ver com fazer filmes baratos. Porque o que é que acontece: você tem um projeto muito grande, muito dispendioso, ele vai ter que se enquadrar a um certo padrão, para que os possíveis fornecedores dessa verba, que seriam empresas e grandes grupos de comunicação, achem aquilo interessante e coloquem dinheiro. E dinheiro é uma coisa difícil. Acho que a gente não se enquadrar num gosto assim, mais empresário, vamos dizer, nos dá muita liberdade. Talvez seja isso. A forma seria fazer com pouco. A gente vê no orçamento. Outro dia, vi a lista dos filmes mais caros do Brasil. São filmes de R$ 9 milhões. Meu Deus do céu, dá para fazer um filme de duas horas com esse dinheiro?

LUCIANA VERAS Quanto custou Amor, plástico e barulho?


A história da eternidade, filme de Camilo Cavalcante, foi premiado em diversos festivais, entre eles o de Paulínia e na Mostra Internacional de São Paulo. Foto: Antônio Melcop/Divulgação

RENATA PINHEIRO R$ 600 mil para filmar, R$ 1,2 milhão com o lançamento. Mas eu queria um pouco mais. Um filme com um elenco grande, praticamente um musical… O que quero dizer é que é incrível. Tive uma conversa informal, há pouco tempo, com a dona de uma produtora comercial. Ela disse: “Eu quero conteúdo, Renata. Pensa nos conteúdos para criar um programa de TV, mas tem que estar sempre vinculado a algum possível patrocinador”. Então, é para eu falar de biscoito para ter o biscoito Treloso? Não é isso que acontece com o nosso cinema. Na verdade, a gente é muito corajosa. Banca, mesmo, o que acredita e pode. E não estou com discurso de “eu não preciso de dinheiro”. Não, preciso de dinheiro. Mas eu sei também que o dinheiro muitas vezes escraviza. É maravilhoso o Funcultura porque a gente consegue viabilizar nossos filmes.

ADRIANA DÓRIA MATOS: João, o último filme que Marcelo fez com Cao Guimarães, O homem das multidões, é muito lindo, ousado e silencioso. Não é um filme comercial. Vocês tiveram alguma dificuldade para viabilizar, porque vocês fizeram em coprodução, não é?

JOÃO VIEIRA JR. Todos os filmes que a REC produziu ou coproduziu são de baixo orçamento. Talvez Tatuagem tenha sido o mais caro deles, tem 40 atores com fala. Com a comercialização, pode ter chegado a R$ 2,4 milhões, mas O homem das multidões foi R$ 1,8 milhão. Então, todos eles são muito dependentes de editais, não tem como pensar antecipadamente qual é o perfil de patrocinador, até porque a gente quase não fez esse tipo de captação. Você consegue o edital hoje, faz o plano financeiro, junta com outro, espera o fundo setorial. Com raríssimas exceções – o Era uma vez eu, Verônica e o Cinema, aspirinas e urubus –, uns 20% do orçamento é que a gente conseguiu através da Lei do Audiovisual. Nesses dois, tivemos patrocinadores como a Neoenergia e Brasil Telecom. Orçamento é uma coisa da hipótese. Nunca consegui fazer um filme em que a gente captasse todo o orçamento inscrito na Ancine, eles sempre foram menores porque chega um momento que têm que sair. Então, até o orçamento é um processo dinâmico, você remodela aquilo tudo, e ajuda se você tiver um quadro de diretores parceiros, que contribuam para isso.

LUCIANA VERAS Queria que Marcelo falasse um pouco da carreira como realizador, partindo de um filme que fala da trajetória de um fusca, que, durante décadas, foi um símbolo do Brasil, do consumo, até chegar ao Brasil S/A. Nesse filme você também fala um pouco desse boom, desse crescimento que o país experimentou nos últimos anos, e que, claro, desemboca no consumo, vêm à tona nas classes C, D e E, mas para dar uma redefinida nesses padrões de consumo, inclusive de consumo de cultura.


Na obra Brasil S/A, Marcelo Pedroso propõe um debate sobre o projeto desenvolvimenta do país. Foto: Ivo Lopes Araújo/Divulgação

MARCELO PEDROSO Sempre fui muito preocupado com a noção de Brasil mesmo, sabe? De entender mais o Brasil, implicado por esse debate. O que aconteceu no Brasil S/A, para mim, é símbolo e tem a ver com essa ideia de cinema pernambucano. Tem uma cena do filme em que uma bandeira é hasteada em uma grua de prédio. E, durante o roteiro, eu ficava muito em dúvida, se ia colocar uma bandeira de Pernambuco, uma bandeira do Brasil ou uma bandeira que não fosse de lugar nenhum. Durante algum tempo, eu estava mais inclinado a colocar a bandeira de Pernambuco, e acho que isso dá muito sentido ao filme, àquela imagem. Na reta final, mudei de ideia e decidi colocar uma bandeira do Brasil com uma intervenção nela. Mas eu fiquei pensando depois sobre o que representava esse gesto, e que eu acho que tem muito a ver com a ideia de cinema pernambucano. Nosso território, geograficamente delimitado, o Nordeste, sempre foi um lugar de produção de imagens por pessoas que vinham de fora para fazer aquelas imagens. A gente sempre foi esse Nordeste, certamente estigmatizado por pobreza, certa miserabilidade, região periférica, lugar de atraso, uma coisa mais arcaica e tal. O fato de ter escolhido botar uma bandeira do Brasil nessa grua, como se fosse um ponto culminante da cidade, um lugar de “chegamos e fincamos a bandeira”, como se fosse uma conquista espacial, significava para mim que esse lugar, que sempre foi um lugar periférico, estigmatizado por essas narrativas de pessoas que vinham de fora para falar daquele lugar como se ele fosse um apêndice do Brasil, poderia passar a figurar não mais como esse espaço necessariamente periférico. E é isso que o cinema pernambucano tem feito ao longo desses 10 ou 15 anos a que você se referiu: não é o Brasil falando do Nordeste como um lugar separado, a gente já está invertendo um pouco o lugar, por conseguir inscrever nacionalmente narrativas que dão conta do Nordeste, de Pernambuco, sempre um espaço subalterno, mas ocupando um lugar de protagonismo, sabe? Então, acho que o cinema pernambucano está operando essa virada. Tem também um arranjo produtivo que é algo muito próprio daqui – que tem em outros lugares também, mas que aqui a gente vivencia com muita intensidade. Quando faltava grana, e realmente houve uma época em que faltava, era preciso tirar leite de pedra para viabilizar um filme, as pessoas se engajavam de forma muito passional. Quer dizer, o que lhe movia a fazer o filme não era a grana que você ia ganhar para fazê-lo, porque muitas vezes era muito pequena, até hoje ainda é muito pequena, mas era um desejo de fazer o filme, um desejo de partilha e tal. Isso também é uma coisa muito forte, ainda hoje, no cinema pernambucano, quando está passando por um momento de profissionalização.

LUCIANA VERAS O cinema pernambucano recorrente, mesmo o mais veterano, é reverenciado nos festivais, sempre premiado, aclamado pelo público e pela crítica. No entanto, os filmes sempre chegam aqui com atraso. O filme de Renata vai estrear em janeiro (este mês), mas passou aqui em outubro de 2013. Ou seja, festivais versus exibição.

ANGELA PRYSTHON Eu penso justamente na necessidade de a gente fazer um outro caminho para a classe cinematográfica, de tentar investir em projetos de distribuição e exibição. Fiquei pensando no projeto do filme Rio Doce/CDU, da Adelina Pontual, que foi muito interessante. Ela foi construindo um circuito do próprio trajeto do ônibus com exibições de filme. Então acho que a gente precisa pensar nisso, que a ideia de público não é só o público pagante, e investir em projetos que incentivem mais isso. Porque parece que acaba aí. Você consegue o dinheiro para financiar a produção do filme, e não é só isso.

CAMILO CAVALCANTE Eu tenho um programa chamado Cinema voltante, lá do Sertão. A gente vai para a quarta edição agora, passando nos pequenos municípios com projetor, caixa, instalações e com curtas-metragens bacanas, como Muro. O projeto é financiado pelo Funcultura, então a gente chega lá com a divulgação, programação, a exibição e só quer o apoio da prefeitura para divulgar. Levamos até o texto para o carro de som, cartaz e tudo, e pedimos para que eles liberem seus alunos e cedam um espaço para nós montarmos nosso equipamento. E o que é que acontece? O resultado depende muito do envolvimento da prefeitura, obviamente, mas a gente já teve sessões com 900 pessoas, 600 pessoas, então há, sim, um interesse. E por mais que as pessoas estranhem, a gente sempre faz debate depois das sessões, discutindo os temas, os filmes. Aos poucos, para as pessoas que não estão acostumadas com aquela estética de documentário, ficção, animação, pode fazer o cara que nunca viu um filme com aquele tipo de narrativa descobrir um novo mundo, uma nova possibilidade de televisão. Pode até torná-lo crítico em relação ao que ele assiste na televisão. E tem muitos projetos, nesse sentido, circulando os interiores por aí.


Marcelo Pedroso

ANGELA PRYSTHON Mas eu acho também que a gente precisa de uma educação audiovisual, que valorize o cinema brasileiro, que valorize o cinema americano etc. Uma das coisas que faltam nessa cadeia produtiva é esse momento de como divulgar esses filmes. E é uma briga muito feia, muito difícil com publicidade, com as distribuidoras. Por exemplo, podia-se pensar em projetos de ter uma disciplina sobre audiovisual, que envolva o cinema brasileiro.

RENATA PINHEIRO A gente pode colaborar com essas mudanças, mas é uma coisa que tem que vir de cima, do governo. O que eu quero dizer é o seguinte: isso também reflete o que somos e que tipo de sociedade nós somos. A gente vive num capitalismo selvagem no Brasil. Tem uma diferença de classes sociais muito grande. Nessa coisa do consumo e dessa segregação cada vez mais forte, a grande população acha caro ir a um cinema ou se intimida demais de ir a um shopping.

CAMILO CAVALCANTE Ia ser uma ideia muito boa – como meu produtor estava conversando – de fazer cinemas universitários, porque o universitário é o público que vai ver o cinema brasileiro. Fazer sessões baratas, a preços acessíveis, dentro das universidades. Outra coisa são os próprios cineclubes, mesmo, que ganharam uma força de uns anos pra cá. Praticamente, toda região do país tem cineclubes e é uma forma muito interessante para difundir os filmes. Existe um problema do público de cinema, que vai às salas dos shoppings assistir à televisão no cinema. Basta olhar as bilheterias dos filmes nacionais e internacionais e ver quem está dando dinheiro.

MARCELO PEDROSO Eu acho que a gente já resolveu o problema em termos de produção com as políticas que foram desenvolvidas nos últimos 10 anos para viabilizar a produção. A grande questão é como a gente vai se unir, da mesma forma como a gente se uniu para pressionar pela produção, em favor de um projeto para viabilizar essa distribuição. Essa ideia das escolas é sensacional. Existem algumas iniciativas. Por exemplo, Cristovam Buarque tem um projeto aprovado, já, que institui a obrigatoriedade de passar filmes brasileiros nas escolas uma vez por mês ou uma vez a cada 15 dias, não sei exatamente, mas os filmes têm que ser exibidos. Então, isso é uma coisa que abre um debate muito amplo. Primeiro, a gente tem que ter cuidado para não transformar o cinema no que são os livros, que são uma coisa que você é obrigado a ler.

ADRIANA DÓRIA MATOS Mas sabe o que é? Isso fez com que muitos pernambucanos lessem Raimundo Carreiro, João Cabral de Melo Neto, Gilvan Lemos, Ariano Suassuna…


O filme Amor, plástico e barulho, de Renata Pinheiro, teve um orçamento enxuto. Foram gastos 600 mil para filmar, totalizando R$ 1,2 milhão com o lançamento. Foto: Antônio Melcop/Divulgação

MARCELO PEDROSO Mas eu não falo só de filme ou de literatura. Acho que a pedagogia tem que levar em conta o prazer. Se a pedagogia levar e empurrar, vai traumatizar e aí nunca mais. Eu acho que o mais legal era que, mais que uma disciplina, um filme que você tem que ver, você tivesse cineclubes operantes nas escolas. Porque o cineclube é um catalisador de acontecimentos, muito mais que um professor que vai lá e bota o filme. O cineclube envolve uma mobilização… A gente não pode pensar numa educação estética através de filmes apenas em função da necessidade de escoar os filmes lá, porque a gente não tem público etc. Essa formação está ligada a uma formação na sociedade contemporânea, a uma educação audiovisual presente em tudo, porque o audiovisual está em tudo: na televisão, no seu celular, no computador. Você está bombardeado por imagem e precisa ter alguma ferramenta para decodificar essas imagens. E quanto a isso do vir de cima, tem que passar pela requalificação da televisão. Enquanto a Rede Globo continuar… Enquanto a referência de dramaturgia do povo brasileiro for a telenovela, ele vai continuar indo ao cinema querendo ver telenovela. Se ele não tiver uma possibilidade de fruir uma dimensão estética diferente daquilo, então só vai, claro, gostar daquilo.

JOÃO VIEIRA JR. Eu acho que a próxima batalha, muito necessária aos cineastas e aos produtores de conteúdos para televisão, é a do conteúdo qualificado, que foi uma conquista para a TV por assinatura. Que agora seja direcionada à TV aberta. Porque, no caso da Globo, ela transmite e ela produz. Tem controle total sobre o conteúdo.

MARCELO PEDROSO Renata, uma coisa que você falou no começo, que me chama também a atenção, quando se começa a refletir sobre cinema pernambucano, é que a gente observa as questões estéticas, as singularidades, a diversidade e tal, mas eu acho que tem uma coisa que é comum, que une até as gerações, que é uma origem da classe média. Todos os realizadores vêm da classe média, são pessoas com nível universitário… fico tentando especificar qual seria o nosso lugar. E, por último, é um grupo formado majoritariamente por homens. E você é mulher e coloca o feminino em pauta.

ANGELA PRYSTHON Eu queria dizer que essa origem da classe média não é só do cinema pernambucano, é do cinema brasileiro, Marcelo. Fiquei lembrando um texto de Paulo Emílio Salles Gomes, da década de 1970, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, que ainda é muito preciso com relação a essa ideia de falar do cinema como um cinema que é feito sobre o povo.


Renata Pinheiro

ADRIANA DÓRIA MATOS Com relação a essa história de classe, na verdade, quem produz cultura maciçamente no Brasil são pessoas oriundas da classe média. Se você vir o próprio jornalismo… Quem faz jornalismo? Cinema? Literatura?

JOÃO VIEIRA JR. Tem a ver com o acesso aos bens culturais.

CAMILO CAVALCANTE Na música nem tanto, talvez.

ANGELA PRYSTHON Acho que é uma coisa tradicional da própria história da música, mas acho que tem mudado um pouco. Mas, no cinema, ainda não mudou.


Rodada com R$ 18 milhões, O homem das multidões é uma produção da REC, codirigida por Marcelo Gomes e Caio Guimarães e lançada em 2014. Foto: Antônio Melcop/Divulgação

MARCELO PEDROSO Eu fiquei pensando o seguinte: além de se perguntar sobre a natureza do cinema pernambucano, a gente tem que se perguntar porque a gente insiste tanto em se perguntar sobre o cinema pernambucano. E acho que aí tem uma coisa, que é toda uma tradição discursiva de construção simbólica de Pernambuco, do Nordeste, desse lugar tal que a gente precisa reiterar e isso chegou ao cinema pernambucano também, que a gente vem daqui.

LUCIANA VERAS Então tem a ver com a nossa megalomania?

MARCELO PEDROSO Não, é o contrário, tem a ver com uma certa síndrome de marginalidade.

RENATA PINHEIRO E o Recife foi, durante muito tempo, a capital do Nordeste, a mais cosmopolita.


João Vieira Jr.

ANGELA PRYSTHON Por isso que, de certo modo, pode não ser tão produtivo ficar falando nisso. Acho que o próprio fato de haver um boom nacional em relação ao cinema pernambucano, sobretudo no que diz respeito aos festivais e à crítica, na verdade, traz uma responsabilidade muito maior para vocês e para nós também. Porque a discussão, toda a polêmica que surgiu em relação ao curso de cinema, em outubro, diz respeito a isso, a uma maior responsabilidade na formação de profissionais. Há uma cobrança maior. Vocês vão ser muito mais cobrados.

CAMILO CAVALCANTE Começar a encaixotar as coisas é muito complicado. O que está acontecendo agora são pessoas fazendo filmes, com estrutura para fazê-los. Que pensam diferente, que vivem na mesma cidade, sob a mesma luz, sob o mesmo sol, sob os mesmos problemas e sob a mesma alegria, também, que o pernambucano também é um povo muito interessante, que é capaz de rir da sua própria tragédia. São poucos os povos que têm essa capacidade de ver o mundo se acabando, o sangue escorrendo, e as pessoas bebendo e rindo. Acho que a definição que Marcelo Gomes dá, que é um pernambucano que faz cinema, é isso. Daqui a pouco, um pernambucano pode estar fazendo um filme no Irã, na Alemanha, no quinto dos infernos.

JOÃO VIEIRA JR. Está certíssimo. Agora veja que coisa linda. São três diretores aqui: Renata, com Amor, plástico e barulho, saindo dos festivais para ser lançado em janeiro; Camilo, com o premiado A história da eternidade, que é um belo filme; e tem o Brasil S/A, de Pedroso, também para ser lançado. O que eu acho bacana é observar a construção das suas trajetórias. Somente nessa mesa, há três diretores com filmes para serem lançados, fortes, potentes, muito diferentes entre si, e todos propõem reflexões que são importantes para nossa contemporaneidade e para nosso modelo de produção.

MARCELO PEDROSO E tem uma galera nova que está começando a fazer os filmes na faculdade, ou fora dela... Quer dizer, o que eles vão fazer? Qual desejo que os move? 

Mediação:

ADRIANA DÓRIA MATOS, Editora-chefe da revista Continente, professora do curso de Jornalismo da Unicap, mestre em Teoria da Literatura (UFPE), com estudo comparativo entre as crônicas de João do Rio e Fernando Bonassi.

LUCIANA VERAS, Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco, com especialização em Estudos Cinematográficos pela Universidade Católica de Pernambuco, e repórter especial da revista Continente.

Convidados:

ANGELA PRYSTHON, Professora do curso de Cinema e da pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE, com foco na convergência entre cinema e estudos culturais.

CAMILO CAVALCANTE, Roteirista, produtor e realizador, entre outros, dos curtas O velho, o mar e o lago (2000), Rapsódia para um homem comum (2005), Ave-Maria ou a mãe dos sertanejos (2009) e do longa A história da eternidade (2014).

JOÃO VIEIRA JR., Sócio da REC Produtores Associados, membro do Conselho Consultivo do Audiovisual/PE e produtor de O homem das multidões (2013), Tatuagem (2013), Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009) e Cinema, aspirinas e urubus (2005).

MARCELO PEDROSO, Cofundador da Símio Filmes, roteirista, montador e diretor, entre outros, dos curtas Aeroporto (2010) e Câmara escura (2012) e dos longas KFZ-1348 (2008), Pacific (2009) e Brasil S/A (2014).

RENATA PINHEIRO, Diretora de arte de Feliz natal (2008), de Selton Mello, e Baixio das bestas (2006), de Claudio Assis, e realizadora, entre outros, do curta Superbarroco (2009) e do longa Amor, plástico e barulho (2013).

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