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Os trabalhos e as horas

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Dezembro de 2014

Imagem Karina Freitas

Faz alguns dias que meu pai morreu. Há dois anos tinha sido diagnosticado um câncer em suas cordas vocais, uma lesão insignificante, mas o oncologista aconselhou que fosse irradiada. Como sequela das 35 sessões de radioterapia, ele ficou rouco e com dificuldade para deglutir. Fumante desde a adolescência, chegara à marca dos 40 cigarros diários. Quando o radiologista examinou a tomografia de pescoço e tórax, espantou-se que valorizassem a mancha vermelha na laringe e não dessem importância ao enfisema pulmonar. Meu pai sempre tapeou a morte. Até os 87 anos nunca sofreu doenças, dormia e comia bem. Cumpria rigorosa jornada de trabalho, só descansando no sábado à tarde. Aos domingos, fazia a feira e ia para a cozinha preparar o almoço da família. Sangrava, escaldava, depenava e tratava a galinha comprada viva; cortava, punha nos temperos e deixava cozinhando. Sentia orgulho de sua força e vitalidade. Humilhava os irmãos cheios de sintomas, enquanto ele vendia saúde.

Às vésperas de completar 90 anos, papai ainda tocava seu comércio. Os filhos o proibiram de dirigir, temendo a segurança dele e das pessoas. A radioterapia se revelara mais danosa do que curativa: o pescoço se tornou rígido, a laringe perdeu a sensibilidade, a glote ameaçava fechar. Comer exigia um enorme sacrifício, por conta da tosse e dos engasgos. Papai, que sempre se orgulhara de ser imune ao fumo, sentiu que os cigarros cobravam a conta. Surgiram os sintomas da doença pulmonar obstrutiva, porém ele nunca se queixava, nem faltava ao trabalho um único dia.

Eu o visitava com frequência e numa das viagens ao Crato ele me confessou: estou acabado. Não havia pesar na sua voz, nem lamúria, nem dor. Era uma constatação pragmática. Minhas irmãs faziam guerra para que deixasse de fumar. Do outro lado do front eu permitia que fumasse, pois não se pode tirar de um homem de 90 anos seu derradeiro prazer. Há bem pouco tempo ele perdera a esposa, com quem esteve casado durante 70 anos. Mamãe sofria de uma doença crônica, que a obrigou a viver dentro de uma unidade semi-intensiva, na própria casa transformada em hospital. Sempre me comoveu o silêncio de papai nesses três anos em que mamãe respirava graças a um aparelho e mal abria os olhos.

Numa das visitas, ele me chamou até o jardim. Percebi que desejava comunicar algo importante.

– Meu filho, vou lhe dizer uma coisa: eu não acredito em outro mundo. Pra mim, alma não existe. A gente finda quando morre. Não há mais nada além dessa vida. Morreu, pronto, acabou-se tudo.

Fiquei calado, com vontade de pedir um cigarro e propor fumarmos juntos. Ele saiu para um passeio na beira do canal, no lugar onde antigamente corria um rio, o Granjeiro, agora transformado em esgoto a céu aberto. Entristecia-me ver papai fumando escondido, achava humilhante, uma degradação.

Na penúltima vez em que fui ao seu encontro, achei-o cansado, eliminando muita secreção dos brônquios. Apresentara indícios de uma parada respiratória. Insisti que consultasse o cirurgião de cabeça e pescoço e fizesse uma nova laringoscopia. O exame mostrou a glote quase fechada. O médico propôs cirurgia ou traqueostomia. Ele recusou a cirurgia, falou que estava no fim, preparado para morrer. O jovem cirurgião expôs os riscos de um procedimento de urgência, caso a glote fechasse. Era uma sexta-feira e papai só pensava na feira do Crato, na segunda, quando o seu armazém tinha um pique de vendas.

– Fazemos na terça, fechou questão.

De volta a casa, quando tentou se alimentar, teve outra ameaça de parada respiratória. Acionamos o médico, foi realizado o procedimento de urgência, ocorreram complicações. Contrariando o que sempre desejara, papai acabou num leito de UTI, de onde saiu morto depois de sete dias.

Foi um curto sofrimento para quem sempre viveu bem. No sétimo dia, os filhos tomaram a decisão de levá-lo pra um quarto, onde poderia passar as últimas horas, junto à família. Os protocolos médicos da UTI contrariavam o pragmatismo do homem João Leandro. Para ele, um sertanejo, morrer era um costume que sabia ter toda gente. Mesmo sem o recurso da fala, por conta do traqueóstomo e do respirador, ele administrava seu comércio com gestos e garatujas mal escritas. Infelizmente, continuou na terapia intensiva. Em meio à agonia de morrer, brincava com as visitas, só perdendo a consciência quando o sedaram para minimizar o desconforto da dispneia.

A presença carinhosa dos filhos e netos não provocou suas lágrimas, pois nunca costumava chorar. Porém houve uma hora em que o homem firme cedeu ao pranto. Igualzinho ao relato de Heródoto, que serviu de mote ao ensaio de Walter Benjamim sobre a distensão. Quando conquistou Mênfis, o persa Cambises para humilhar o rei Psaménito mandou desfilar à frente dele sua filha vestida de escrava, na companhia de outras jovens da nobreza. Os pais caíram no pranto, mas Psaménito apenas baixou a cabeça. Depois Cambises ordenou que desfilasse um cortejo com dez mil jovens da mais alta casta, entre eles o filho do rei, todos com uma corda no pescoço e um freio à boca. Iam ser executados. O rei soube controlar os sentimentos e igualmente quando viu a filha, não chorou. Logo após passarem os jovens, Psaménito botou os olhos sobre um velho e andrajoso mendigo e reconheceu nele um dos seus comensais. Despojado de sua antiga riqueza, ele ia de porta em porta implorando um pouco de alimento. Diante da cena, o soberano não se conteve, chamou o homem pelo nome e caiu no pranto. Quando foi interrogado por que procedera dessa maneira, Psaménito falou: “As desgraças de minha família são muito grandes para que eu as possa chorar; mas a triste sorte de um amigo que, já na velhice, cai na indigência, merece minhas lágrimas sinceras”.

Papai chorou uma única vez, nos seus derradeiros dias. Foi quando entrou para visitá-lo um velho empregado, que passava o tempo com ele no armazém onde os dois trabalhavam. Papai já não conseguia falar e por isso eu não perguntei o motivo das suas lágrimas. Talvez ele se preocupasse com o futuro do estimado ajudante. Ou talvez se lembrasse com saudade dos trabalhos e das horas que viveram juntos. Amar o trabalho acima de todas as coisas era um mandamento para meu pai. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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