Ambos sabiam que andavam num terreno livre. “Não defino linhas de fronteira entre a música popular e a erudita. Inclusive Chopin, Villa-Lobos, estão cheios de temas populares dentro da música erudita. Essa divisão é falsa, não leva a nada”, declarou Jobim. Villa-Lobos, aliás, autor tanto de choros e valsas quanto de obras orquestrais, talvez tenha sido a maior referência do pianista. Piazzolla parecia concordar sobre essa “falsa divisão”: dizia que a “lógica interna” do seu trabalho embasava-se na música de concerto, apesar de ter as raízes no tango. “Tanto os músicos de tango como os eruditos me odeiam”, afirmava. Ele compôs Las cuatro estaciones porteñas, inspirado em Vivaldi, mas as fez em separado, sem querer montar uma suíte em quatro movimentos. Além disso, chegou a elaborar peças estritamente “eruditas”, bem como Jobim. Essas, contudo, não alcançaram a mesma expressão que as composições “populares” deles.
Ao falecer, em dezembro de 1994, compositor havia deixado obras fundamentais para a música brasileira. Foto: Reprodução
Jobim contestou Paulo Francis, quando o jornalista disse que bossa nova era “50% jazz”, porém nunca negou que a música americana também o formou. Como atesta até um título de canção, houve influência do jazz, sim, na gestação da bossa nova. Parcerias com músicos dos EUA, por sinal, de igual modo marcam Jobim e Piazzolla. Os dois dividiram álbuns com saxofonistas expoentes do jazz: Stan Getz, no caso de Jobim, e o já citado Gerry Mulligan, no de Piazzolla. O primeiro encontro resultou em Getz/Gilberto, disco lançado há 50 anos e que, com João Gilberto ao violão e nos vocais, traz a versão mais envolvente de Corcovado. Já Summit contém a arrebatadora Años de soledad.
Eles podiam, ainda, trabalhar ou não com palavras. Jobim era mais cancionista, mas compôs vários temas instrumentais. Três, de forte inspiração villa-lobiana e debussyana, estão no disco Urubu, de 1976. Piazzolla, nesse quesito, era mais de criar temas: fez sucesso comBalada para un loco (“Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao…”), parceria com o poeta Horacio Ferrer, e, com As ilhas, que compôs com o brasileiro Geraldo Carneiro, e foi gravado por Ney Matogrosso.
Aproximam-se de novo, entretanto, nos ataques que sofreram em seus países. Com suas aberturas ao que de bom se produzia nos EUA e na Europa, Jobim e Piazzolla, claro, foram acusados de “desnacionalizar” seus gêneros. O pesquisador José Ramos Tinhorão e o escritor recentemente falecido Ariano Suassuna, para citar dois críticos notórios, tacharam Jobim de “americanizado”, quando o que ele fez foi modernizar a MPB, não americanizá-la (como escreveu Daniel Piza, “no Brasil, quando se olha o fundo das opiniões, o que se encontra é o raso da ideologia”). Na Argentina, puristas igualmente desprezaram Piazzolla, por verem em seu trabalho, em que tinham vez até instrumentos como vibrafone e guitarra elétrica, um abandono da tradição do tango.
Quem tem ideia do que fala, todavia, sabe que ambos os músicos conjugaram o nacional ao internacional, num diálogo saudável e frutífero. Olhavam para dentro e para fora, atitude rara na cultura latino-americana, tão polarizada. E, desse jeito, renovaram e enriqueceram a música de seus países – a bossa nova que Jobim ajudou a criar, por exemplo, é samba, mas mais complexo, com harmonias intrincadas e outra divisão rítmica. Tal incompreensão nacional colaborou para que Jobim e Piazzolla tivessem maior sucesso no exterior. O argentino era particularmente admirado na Europa e América Latina. Jobim, por sua vez, embora sempre tocasse aqui, não se conformava em ser mais reconhecido em Nova York do que numa cidade brasileira.
TRILHAS
Outro traço comum a eles é a composição de trilhas sonoras memoráveis. Jobim criou, entre outras, a do filme Gabriela (1983), de Bruno Barreto, adaptação do romance de Jorge Amado, na qual consta o Tema de Gabriela, e fez a canção-tema de Eu te amo (1981), de Arnaldo Jabor, belamente letrada por Chico Buarque (“Na bagunça do teu coração/ Meu sangue errou de veia e se perdeu”). Elaborou ainda as músicas da minissérie global O tempo e o vento, adaptação da obra de Erico Veríssimo, exibida em 1985, entre as quais a não menos belaPassarim. No mesmo ano, Piazzolla desenvolveu a trilha ora agressiva, ora romântica de Tangos, o exílio de Gardel, filme de Fernando Solanas sobre um grupo de artistas portenhos exilados em Paris durante a ditadura militar argentina (1976-83). As cenas iniciais, de muito apuro visual, mostram um casal a dançar Duo de amor em pontes sobre o Sena. Mas familiares também motivaram os dois: Jobim fezÂngela para Ana Lontra, sua segunda mulher, e Samba de Maria Luiza para a filha caçula; Piazzolla compôs a triste e linda Adiós Nonino, de longe sua melodia mais conhecida, após saber da morte do pai. Por fim, ligam-nos os fatos de terem, depois de tudo, se tornado grandes mestres, com raros a ainda torcer-lhes o nariz, e de suas obras representarem suas nações para o mundo.
Só faltou uma parceria. Treze anos antes do encontro na Globo, Piazzolla, numa entrevista em que se revelou fascinado pela MPB, disse que gostaria de trabalhar com Jobim: “Não me importa que ele seja brasileiro, como a ele não deve importar que eu seja argentino. A única coisa que deve importar é que a gente faça boa música”. Não passou de um desejo, mas a justificativa permanece. Professor do curso de música popular da UFBA e baixista da Banda Base, de música instrumental, Ivan Bastos parece tê-la em mente: uniu os estilos dos dois criadores num tema chamado Antonio e Astor. “Sem racionalizar muito, achei, à medida que fui compondo, que havia algo denuevo tango na parte A da música, a qual me remetia a Piazzolla. A parte B é mais bossa nova, mais Jobim”, conta. Já executada pela Orquestra Sinfônica da Bahia, Antonio e Astor evidencia o diálogo travado pelas obras e vidas dos geniais Jobim e Piazzolla.
Apreciador de música, outro artista genial, Machado de Assis, no conto Trio em lá menor, apresenta a personagem Maria Regina, pianista amadora dividida entre dois pretendentes que vê como complementares. Uma noite, ela sonha que morre e sua alma voa até “uma bela estrela dupla”, que se parte em duas. A moça, a voar de um pedaço para outro, ouve então uma voz dizer que aquela era sua pena: oscilar para sempre entre dois astros, “ao som desta velha sonata do absoluto”. Pois optar entre Jobim e Piazzolla também parece tarefa ingrata – a audição de um enriquece a do outro. Melhor ficar com ambos. Isso, porém, não seria uma “pena”, mas uma fonte de prazer estético. Eterna.
LUCAS COLOMBO, jornalista, professor de Jornalismo Cultural, editor e colunista do site Mínimo Múltiplo.