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“A música pop não é mais trilha sonora de nada”

O jornalista, compositor e produtor musical Nelson Motta chega aos 70 anos e faz um balanço da produção artística das últimas décadas, opina sobre música e fala da rotina de eterno bon vivant

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Novembro de 2014

Nelson Motta

Nelson Motta

Foto Daniela Dacorso/Divulgação

Mister Pop chegou aos 70 anos. Nelson Motta poderia ser descrito como o homem que mais se divertiu no Brasil no último meio século. Ele é um camaleão que sintetiza, numa só pessoa, os papéis de jornalista, compositor, homem de televisão, produtor musical, empresário da noite e romancista. Várias atividades embaladas num estilo jovial, que mistura a malemolência carioca, o jeito moleque de menino da praia, que viveu intensamente a contracultura, e o refinamento de alguém que tem passado a vida entre o que há de melhor no meio artístico.

Pois é esse eterno jovem que completa sete décadas dizendo que não tem “saudades da juventude”. Nelson nasceu em São Paulo, em 1944, mas mudou-se com a família para o Rio de Janeiro quando tinha seis anos. Ainda na adolescência, conviveu de perto com a turma da bossa nova, no final dos anos 1950, período sobre o qual escreveu no livro de memórias Noites tropicais: “Estudava um pouco de filosofia e história, lia Hemingway e Camus, via filme franceses e italianos, ouvia cool jazz e bossa nova maciçamente e pensava em música e mulheres o dia inteiro”. Nos anos 1960, participou como compositor dos festivais de música. Na década de 1970, foi produtor de discos, e entrou na onda da discoteca, abrindo casas noturnas lendárias como a Dancing Days e a Noites Cariocas. Depois, foi executivo de gravadoras e descobridor de talentos como Marisa Monte. Nas últimas três décadas, intensificou sua atuação na televisão, no jornalismo e enveredou pela literatura.

Motta é autor de sucessos populares em parceria com Lulu Santos (Como uma onda), Rita Lee (Perigosa) e Guilherme Arantes (Coisas do Brasil), entre muitos outros nomes. Tem escrito livros como Vale tudo, o som e a fúria de Tim Maia e A primavera do dragão, sobre os anos de juventude de Glauber Rocha.

Para comemorar o aniversário, o Canal Brasil leva ao ar a série Nelson 70, oito programas que mostram as parcerias musicais de Motta. E a gravadora Som Livre lança um CD com regravações recentes de seus grandes sucessos. Nesta entrevista à Continente, ele faz um balanço da produção artística das últimas décadas, opina sobre a música atual e fala da sua rotina de eterno bon vivant tropical.

CONTINENTE É possível chegar aos 70 anos de idade ainda aberto e curioso em relação às manifestações da cultura pop, muitas delas produzidas por garotos com pouco mais de 20 anos? Ou a idade deixa a gente blasé?
NELSON MOTTA Considero chegar aos 70, inteiro, com boa saúde, um grande privilégio. Depois, eu não me sinto velho. Só de vez em quando (risos). Não tenho saudades da minha juventude, que vivi intensamente, nem inveja dos jovens de hoje, porque são jovens. Tenho filhas, netos de 18 e de 13 anos, gosto de conviver com a juventude, me diverti muito na adolescência de minhas três filhas, aprendi bastante, quero viver a maturidade com qualidade de vida e atividade permanente. Em minha vida, já ouvi o crème de la crème da música popular do século 20, pop, rock, MPB, ópera, bossa nova, soul, gospel. E também vi muita coisa boa ao vivo, bem de perto, João Gilberto, Rolling Stones, Elis Regina, Chet Baker, Miles Davis. Você não fica blasé, é o seu padrão de exigência e de excelência que aumenta. Não tenho mais tempo de ficar horas ouvindo um monte de porcaria em busca de uma pérola, como fiz muitas vezes. Mas continuo gostando de novidades, quando alguém que respeito me dá uma sugestão interessante, não tenho medo de ouvir. Por exemplo, agora estou encantado com o fado que está rolando em Portugal, intérpretes maravilhosas como Cuca Roseta, Ana Moura, Carminho, Cristina Branco. Mas continuo com horror a barulheiras experimentais, noise, vanguardas atonais e também à “música de músico”, geralmente chata, longa e complicada.


Cuca Roseta. Foto: Divulgação

CONTINENTE Como foi a experiência de fazer o programa Sábado Som nos anos 1970? Por que o programa, que marcou a juventude de tanta gente, não durou mais tempo?
NELSON MOTTA Foi uma aventura maravilhosa. Foi o primeiro programa de clips de rock no Brasil, a primeira vez que viram The Who, Pink Floyd, Black Sabbath, no país. A geração de Lulu Santos, Cazuza e Renato Russo sempre me falou que não perdia o programa. Nem me lembro, porque só durou uns dois anos, acho que fui fazer outra coisa, pela minha carreira se vê que não gosto de fazer a mesma coisa muito tempo (risos).

CONTINENTE Você acha que a ditadura militar brasileira serviu, paradoxalmente, de estímulo para a criatividade musical da geração de Chico, Caetano e Milton ou você acredita na tese que afirma que, na música, a idade mais produtiva vai até os 30 anos e por isso eles produziram mais e melhor no período?
NELSON MOTTA Concordo, em geral, porque há muitas exceções, que a grande fase produtiva de compositores é dos 20 aos 40. Mas outros ficam ainda melhores na maturidade, quando produzem menos, mas melhor. Agora, acho que creditar aos horrores da ditadura a inspiração para essa geração extraordinária é chamá-la de masoquista. Precisava sofrer para produzir tão bem? É melhor perguntar o que teria feito se tivesse liberdade e tecnologia como os seus colegas americanos da época.

CONTINENTE Há vários autores que consideram os anos 1960 e 1970, em várias partes do mundo, como a era de ouro da música pop e do rock. Você concorda com a opinião de que, a partir dos anos 1980, nada de muito substancial ocorreu?
NELSON MOTTA Nos anos 1960 e 1970, a música pop foi a trilha sonora das transformações da sociedade. Depois, foi perdendo importância cultural, tornando-se uma commodity como soja ou feijão, está em toda parte, de todas as formas, não é mais trilha sonora de nada – porque faz parte de tudo. Além disso, a produção musical dos últimos 50 anos agora foi digitalizada e está à disposição de todos – mostrando como é difícil produzir novidades depois de tanta qualidade que já foi criada.

CONTINENTE Certa vez, você mencionou a expectativa de um “futuro radiante” que havia nos anos 1970 entre os opositores do regime militar no Brasil. Atualmente, ainda é possível ter esperanças de melhorias em um cenário cultural onde tudo parece já ter sido feito?
NELSON MOTTA A gente achava que, acabando a ditadura, tudo se resolveria. Minha geração teve, durante muito tempo, a crença de que o Brasil, por ser um país novo, sem o peso da história, poderia criar uma nova civilização, diferente da europeia, estagnada pela história, e dos Estados Unidos, dominados pelo mercantilismo. Seríamos uma “civilização atlântica”, generosa, tolerante, como uma terceira via, o melhor de dois mundos (risos). Só rindo mesmo. O Brasil é um dos países mais violentos e conservadores do mundo e mistura algumas das piores coisas do socialismo e do capitalismo. Qualquer plebiscito vai dar maioria esmagadora a favor da pena de morte, contra o aborto, a liberação da maconha e qualquer forma de avanço de comportamento. Mas a cultura brasileira se mostra muito vigorosa, ocupando espaços no mundo. A cultura, em liberdade, melhorou, tanto em quantidade como em qualidade.

CONTINENTE Com o avanço da internet, acha que o papel exercido pelo crítico/colunista no jornalismo impresso, que você personifica tão bem, tende a diminuir de importância?
NELSON MOTTA Acho que o que interessa é o conteúdo, o que você diz, como você diz – sempre haverá um bom veículo para ele. O que sai no jornal ou na televisão é ampliado e multiplicado pela internet, mas também é copiado, roubado, deturpado. Mas, paciência, é o preço desse avanço.

CONTINENTE Você disse que não usa Facebook e chamou as redes sociais de “esgotosfera”. Acha que elas podem ser uma moda passageira ou caminhamos mesmo em direção à cultura da chamada “turba eletrônica”, em que tudo é discutido de forma instantânea com argumentos destemperados?
NELSON MOTTA Bem, agora até eu tenho Facebook (risos). Para oferecer ao público meu trabalho de compositor, jornalista e escritor, não para ficar de papos e chats e postando fotos de meu cotidiano. O que chamo de “esgotosfera” são os blogs políticos, geralmente patrocinados com dinheiro público, que fazem política partidária e estimulam a intolerância, o ódio e a estupidez. Às vezes, faço uma expedição “antropológica” a esses ambientes insalubres, fico com vergonha do que escrevem ali. Agora, claro que as redes vão se transformar, acredito que se tornarão ainda mais específicas. Mas a selva digital será cada vez mais perigosa, com novos bichos e armadilhas, onde o ser humano pode expressar o seu melhor e seu pior.


Foto: Divulgação

CONTINENTE O que acha da volta dos discos de vinil, redescobertos até por alguns jovens? Você curte as capas e defende a superioridade sonora dos LPs?
NELSON MOTTA Tenho uns cinco mil discos de vinil, mas ouço pouco. Aliás, tenho ouvido pouca música em geral, mas principalmente ouço no laptop ou no iPod, quando caminho de manhã pelo calçadão de Ipanema. Até concordo que o som de um vinil novo, num bom equipamento, é insuperável, e, claro, as capas são maravilhosas. Mas não me ligo muito nessas coisas. Ouço mais música online, não me incomodo com o som comprimido do MP3, me ligo mais nas ideias musicais.

CONTINENTE Acostumado a atingir milhões de pessoas com suas letras de música em todo o país, como tem sido a experiência de ver seus livros publicados atingirem um público – apesar de muito grande para a literatura – bem mais restrito?
NELSON MOTTA Ah, eu não ligo, são linguagens diferentes, com respostas diferentes. Quando a biografia do Tim Maia vende 200 mil cópias, depois é lida de mão em mão por milhares de caronas, eu fico feliz com isso, sempre peço para lerem e passarem adiante. Para mim, o mais importante não é vender mais livros, é ser mais lido. Acho que o livro permanece mais dentro das pessoas, porque cada pessoa é parceira dele, não há duas leituras iguais, então é muito pessoal, é o “seu” livro. As músicas são mais fugazes.

CONTINENTE Como é seu processo de composição? Funciona também sob encomenda?
NELSON MOTTA Cada música é uma história e um momento diferente. Algumas foram feitas em uma hora, outras em vários meses, umas, sóbrio, outras, doidão, umas deram mais trabalho, outras menos. Mas a inspiração inicial é sempre a mesma: na sonoridade que o músico cantarola, quando me mostra a melodia, começo a procurar palavras que se encaixem naqueles sons e ritmos, e depois desenvolvo. Quanto às encomendas, sem problemas, serão entregues: umas melhores, outras piores, sou profissa.

CONTINENTE Qual a figura mais marcante que você teve a oportunidade de conviver no meio musical nesses últimos 50 anos?
NELSON MOTTA João Gilberto. Pelo privilégio de desfrutar não só de sua música genial, mas de sua inteligência, seu humor e sua visão crítica. Um mestre de vida e arte.

CONTINENTE E no meio jornalístico?
NELSON MOTTA São três: Samuel Wainer, que me levou para escrever uma coluna diária sobre juventude no Última Hora, quando eu tinha 22 anos. Depois, Evandro Carlos de Andrade, que me levou para ser colunista de O Globo, em 1973, e foi um grande mestre, um exemplo de inteligência e integridade. E Paulo Francis, querido amigo, com quem fiz um divertido mestrado em comentarista internacional em Nova York, nos anos 1990, ao seu lado, na bancada do Manhattan Connection.


Tim Maia. Foto: Divulgação

CONTINENTE Tendo vivenciado os tempos do Cine Paissandu, no Rio, e convivido de perto com a turma do Cinema Novo, você ainda acompanha o cinema brasileiro? O que acha da produção atual?
NELSON MOTTA Foi um privilégio morar nessa época exatamente na Rua Paissandu, a poucos passos do cinema, aonde ia todas as semanas, em que cada novo filme de Buñuel, Visconti, Fellini, Bergman, Antonioni, Pasolini, Godard era um acontecimento cultural, que provocava discussões que começavam nos bares próximos ao cinema e duravam a semana inteira – até uma nova estreia de um filme do cinema novo ou danouvelle vague. Não acompanho tudo do cinema brasileiro, mas há filmes que refletem crescimento de quantidade, qualidade e diversidade como Tropa de elite, Central do BrasilCidade baixaMeu nome não é Johnny, e muitos outros, inclusive comédias divertidas como O casamento de Romeu e Julieta, Cilada, e De pernas pro ar.

CONTINENTE Qual sua opinião sobre o atual modelo de produção cultural apoiado nos editais de incentivo com verbas públicas, que muitas vezes destina dinheiro a obras de pouquíssimo interesse para o conjunto da população ou, por outro lado, financia produtos culturais que já seriam, por si só, viáveis comercialmente?
NELSON MOTTA Ah, é muito complexo e chato de discutir. Mas necessário. É claro que não é bom transferir para o marketing de empresas a decisão de viabilizar, ou não, um projeto, pela subjetividade, falta de critérios culturais, ambiente favorável a lobbies e negociatas. É quase tão ruim como deixar nas mãos do Estado, pelas mesmas razões. A maior produtora do cinema brasileiro é a Petrobras, que, como se sabe, teve várias diretorias aparelhadas politicamente que atuavam como uma quadrilha. Além dos eleitos pelo marketing das empresas, por critérios comerciais, projetos artísticos que, às vezes, atingem poucas centenas de espectadores nos cinemas, ou nem isso; nos teatros ou shows, conseguem financiamentos públicos através de editais e patrocínios. A maioria é de porcarias irrelevantes. É preciso encontrar um equilíbrio entre o estímulo à indústria cultural e a produção artística individual, sem paternalismo e sem partidarismo. Mas dinheiro de impostos do cidadão não é para patrocinar aventuras individuais e projetos egocêntricos que se dizem artísticos.

CONTINENTE A velha pergunta: quais os cinco discos, cinco livros e cinco filmes de todos os tempos que levaria para uma ilha deserta?
NELSON MOTTA Os discos seriam: Amoroso, de João Gilberto, Kind of blues, de Miles Davis, Chet Baker sings, de Chet Baker, The best of Maria Callas, de Maria Callas, Tim Maia Disco Club, de Tim Maia. Os livros: Tia Julia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa,Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Marquez, O sol também se levanta, de Ernest Hemingway, Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado e Os Maias, de Eça de Queiroz. Os filmes seriam Amarcord, de Fellini, Terra em transe, de Glauber Rocha, Pulp fiction, de Quentin Tarantino, Jules e Jim, de François Truffaut, e O grande Lebowsky, de Joel e Ethan Coen.

CONTINENTE Depois do programa Nelson 70 no Canal Brasil e do CD celebrando as parcerias, tem algum novo projeto em vista?
NELSON MOTTA Estou trabalhando em novas músicas com a Marisa Monte e escrevendo o musical de teatro Aquela noite em 67 (título provisório) com a Patricia Andrade. São várias histórias que se cruzam e se resolvem na noite da final do Festival de 1967, que vai ser reproduzida igualzinho como foi, com seu cenário, suas 12 finalistas e seus intérpretes, Chico, Gil, Caetano, Edu Lobo, Elis Regina. A diferença é que a vencedora de cada noite será escolhida pelo público que vai votar pelos seus celulares. Vai ser a primeira vez que os teatros vão pedir para ligar os celulares (risos).

CONTINENTE Como criador de discotecas que marcaram época, você acredita que a vida noturna entrou mesmo em decadência no Brasil ou é a idade que faz a pessoa ficar mais seletiva e achar que não vale a pena sair de casa com frequência?
NELSON MOTTA Durmo por volta das 23 horas e acordo às 7. Não sou a pessoa mais indicada para falar de vida noturna, talvez porque, até os meus 40, quando fui dono de cinco casas noturnas, ia dormir às 7 da manhã (risos). Hoje, seleciono bastante minhas saídas noturnas. Claro, quando vou sair, tenho que, antes, dar uma dormida de umas duas horas e tomar um banho antes de partir para a náite. Mas isso é raro. Gosto, cada vez mais, das manhãs e menos da noite, que é boa para namorar ou dormir. 

MARCELO ABREU, jornalista e autor de livros como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder - Um repórter brasileiro na Coreia do Norte.

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