Arquivo

Esperei duas horas pelo jantar

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Novembro de 2014

Imagem Hallina Beltrão

Esperei duas horas pelo jantar, mas quando acenderam os maçaricos para flambarem os peixes não suportei o cheiro de gás, senti náusea e me retirei ao jardim. Lá fora, o enjôo persistiu. Aprecio a culinária japonesa, o banquete era preparado por um mestre, mesmo assim decidi ir embora. Passo um ano lapidando um conto, porém minha relação com os alimentos é menos paciente. Entre sufocar num restaurante pelo prazer de degustar um sushi raro, ou comer arroz e ovo frito na cozinha de casa, escolho a segunda opção.

Comunico à família que irei caminhando. Protestos. Todos querem me levar, o filho mais velho oferece o carro. Do Poço até o apartamento em Casa Amarela é um pulo. Escapo à francesa. Respiro o ar cheirando a umidade e a jasmim laranja, do lado de fora. Um vigilante me cumprimenta no seu posto. Dobro a esquina e pego a 17 de agosto, escura àquela hora. O Recife é sempre escuro à noite. Caminho ligeiro. Ainda não alcancei a santidade de afirmar como o escritor grego Nikos Kakantzakis: nada espero e nada temo. Mesmo assim, sou um homem desassombrado. O rapaz vindo na minha direção e olhando fixamente para mim parece estranho. Seu aspecto não é o de um assaltante. Qual é o aspecto de um assaltante? Ele se veste igualzinho ao meu filho mais jovem e aos amigos dele. E daí, se o rapaz põe a mão no bolso da bermuda e segura algo sugestivo de uma arma? Pode ser apenas um canudo de papel. Agora estamos bem próximos, ele continua me olhando com insistência e sorri. Posso mudar de calçada, nunca fiz isso, não temo encarar ninguém. De repente ele avança em minha direção, toca meu ombro.

– Você é o escritor?

– Sou Ronaldo.

– Tenho uma pergunta a lhe fazer.

Caminho ligeiro; ele não larga os meus calcanhares.

– Faça.

– Quando um cara descobre que é escritor?

Falo tolices prontas, coisas decoradas para responder aos jornalistas. Quero livrar-me do rapazinho, algo familiar nele me incomoda e dá pena.

– Pra onde vai? – pergunto a queima roupa.

– Vou pra onde você for. Preciso que responda a pergunta.

Avisto a sorveteria Empório do Gelato, aberta. Entro nela.

– Toma sorvete de quê?

– O que você tomar.

Peço dois cremes com calda de frutas vermelhas, sentamos, rimos da situação. Digo mil besteiras enquanto engulo colheradas de sorvete. Ele retorna de um filme, viu “Deserto feliz”, de Paulo Caldas. Tem 18 anos, frequenta um colégio que prepara para o vestibular, pensa em fazer psicologia, lê bastante, assiste teatro e cinema. Presenteia os amigos recomendando filmes. Recebo a indicação de “Exuberante deserto”, a história de um garoto de 13 anos, que mora num Kibutz em Israel com a mãe mentalmente frágil. O diretor se chama Dror Shaul, ele esquece o nome, mas lembra o título original: “Adama Meshuga’at”. Escreve num pedaço de papel e me entrega. Deseja saber por que decidi ser médico e revela que o pai também é médico. Respondo que não tinha pais ricos e precisava escolher uma profissão que garantisse a sobrevivência.

– Passei dias escrevendo na companhia de um colega e depois tocamos fogo nos papeis – me conta.

Gogol fez o mesmo com o primeiro original de “Almas mortas” e com parte da segunda versão do romance. Lembro o pedido de Kafka ao amigo Max Brod: destruir seus escritos. Acho esses gestos narcísicos. Menciono e ele me revela detalhes do seu projeto “escrito para ser apagado”. Não vejo razão nesse niilismo, trata-se de uma experiência bem diferente dos monges tibetanos. Os budistas criam mandalas de areia colorida e depois as destroem para simbolizar a inconstância da vida.

Olho firme o meu interlocutor e me assusto. Fomos abduzidos para uma narrativa de Jorge Luis Borges, tudo isso já aconteceu em algum conto do argentino. Eu também acabo de escrever uma novela sobre um jovem de 18 anos com aspirações à literatura. Toda noite ele encontra um velho professor a quem faz perguntas, sem o menor interesse nas respostas. Começo a rir.

– Você é José, meu personagem, e eu sou o professor Antonio Garcilaso. Vocês dois sofrem da mesma arrogância. Minhas respostas não o interessam de verdade. Olho pra você e é como se me reencontrasse aos 18 anos. Nessa idade, acreditamos saber tudo.

Ele se assusta como se tivesse sido descoberto roubando.

– Tenho pena de quem você é, e de quem eu era na sua idade. Conheço a solidão, trata-se de um aprendizado custoso.

Faltam interlocutores ao jovem inquieto. Minha geração reconhecia valor nas pessoas mais velhas e não se envergonhava em procurá-las. Encontrei vários mestres durante minha formação e aprendi com eles. Há um culto exagerado ao poder e ao conhecimento dos jovens, uma idolatria à juventude. Não é comum um rapaz perguntar a um homem mais velho como ele se descobriu escritor. O mais comum é que ele se considere pronto e seja celebrado como tal.

***

Li os poemas e a prosa do jovem artista, publicados no seu blog. Descobri os apontamentos de uma boa escrita, necessitando muito trabalho. Falei sobre isso num e-mail e dei conselhos.

Ele me respondeu:

“É sempre verdade, muito trabalho. Mas que trabalho eu quero de fato? Falo das palavras, mas principalmente falo do trabalho, da humanidade criada nesse processo. Antes de proferir a primeira palavra, o ser humano usou a primeira ferramenta e trabalhou. Hoje, nesse ano, nessa vida, eu vou ter de descobrir com o que trabalhar; ou o que trabalhar. Estava ouvindo música quando de repente me toca: “Você é a resposta exata àquilo que perguntou.” Então, paradoxalmente, a pergunta é: O que foi que eu perguntei? Ou quem sou eu? Não tenho muitos conselhos a dar a você, eu só queria responder alguma coisa para poder continuar conversando.” 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

veja também

Iberê Camargo: Um gigante e sua solidão

'Boa sorte': Um conto do primeiro amor

Um olhar sobre a nossa belle époque gastronômica