Pra não dizer que não falei dos vaqueiros
TEXTO Ronaldo Correia de Brito
01 de Outubro de 2014
Imagem Karina Freitas
O pior na vida do vaqueiro é que as árvores foram plantadas no lugar errado
(Pedro Gonçalves, que sonhava ser vaqueiro).
Teimam e teimam esses homens na peleja rude, suarentos e terrosos. As camisas pregam nos corpos lanhados pelos espinhos e galhos de árvores – todas plantadas fora do lugar.
Teimam em ser como há séculos, mesmo quando parecem visagens de um tempo irreal, esquecido na memória. Parecem marcianos rubros de poeira e sol, o sol quente de um planeta sertanejo que sobrevive aqui e acolá em rasgos de terra e caatinga, o cenário onde os vaqueiros correm atrás dos bois, rindo escancarado da morte, a morte fêmea, de tocaia num galho de árvore.
Teimam em ser vaqueiros de gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro, bordados de finos arabescos, a armadura com que se protegem da lança dos paus, nas árvores que os espreitam, as árvores plantadas no lugar errado, a morte certa se a visão e o cavalo acesos não alertam o corpo: mãos, braços, pés, pernas, coxas, peito e cabeça dormentes de correr e lutar. Pra quê? Pra nada, diria o poeta Ascenso Ferreira.
Pra lutar e viver afirmaria outro poeta, pois sem a lida e o perigo, sem os bois correndo à frente deles e os cavalos disparados atrás, o que seriam esses homens? Nada.
Teimam em vestir os couros e correr atrás de bois rebeldes, tocar os rebanhos de gado, continuar vaqueiros mesmo quando o mundo à volta se transforma noutro, recusando a função que eles escolheram representar, o ofício que melhor sabem, arcaico como a própria história do homem.
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Não existe mais o sertão que o historiador Capistrano de Abreu desejou fosse estudado para que a história do Brasil não ficasse somente às margens do litoral; nem o sertão mítico das sagas do poeta cearense Gerardo Melo Mourão; nem o sertão que alguns escritores contemporâneos teimam em idealizar, criando uma épica enfeitada por brasões e ferros de marcar bois. Existem as cidades, novos comércios e indústrias, agricultura irrigada, o turismo, a moda que se exporta para o mundo e uma acelerada mobilidade social. E sobrevivendo à margem do progresso, um velho sertão de estradas poeirentas, casas em ruína, currais vazios, resquícios de bois e vaqueiros, cercas desfeitas, mato comendo os roçados. Um deserto de ausências no lugar do antigo fausto.
O ciclo do couro, quando nas fazendas mal cabiam os rebanhos de bois, carneiros e cabras, produziu poetas repentistas, narrativas míticas, heróis vaqueiros, santos penitentes e fanáticos religiosos. O modelo econômico de exploradores e explorados serviu de tema para o romance de Graciliano Ramos, filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e para a gesta dos poetas populares, que cantaram as dores e alegrias da vida sertaneja. O algodão trouxe prosperidade, indústria e promessa de que o Nordeste entraria numa nova era sintonizada com o restante do mundo. A praga do bicudo-do-algodoeiro, um besouro proveniente da América Central, pôs fim ao sonho de riqueza do ouro branco, cantado por Luiz Gonzaga. Sem poder retornar ao modelo pecuário já exaurido – os pastos esgotaram-se com a falta de manejo e as repetidas estiagens –, com a agricultura de subsistência falida por conta das secas, vulneráveis às informações que chegavam via rádio, televisão e meios de transporte, os habitantes das fazendas e pequenos sítios foram embora para o Norte, o Centro Oeste e o Sudeste, morar nos embrenhados de matas e florestas ou nas periferias das cidades. Esse fluxo migratório que se acentuou após a Segunda Guerra, mudando a paisagem humana do planeta – de rural em urbana –, foi sentido no nordeste brasileiro de forma dramática. O lendário homem sertanejo tornou-se um suburbano fragilizado, um personagem a mais nos romances e filmes.
O espaço geográfico que remetia à memória da Grécia, dos desertos de árabes e hebreus, da Península Ibérica moura e da Sicília, que possuía uma cultura própria e fechada nela mesma, com resquícios de Idade Média, tornou-se permeável e aberto à globalização. Universalizou-se. O passado mítico sobreviveu nas genealogias, em teses universitárias e na criação dos artistas. As cidades interioranas, pobres e feias, foram invadidas pela tecnologia. A nova geração sertaneja prefere jogos em rede a montar cavalos. Habita um sertão complexamente urbano, com excesso de motos, celulares e lixo plástico. Vive os anseios de consumo de qualquer sociedade capitalista – bens materiais, pornografia, drogas – em meio à pobreza crônica e à falta de educação. Sofre da neurose urbana e da necessidade de adequar o mundo arcaico que herdaram, ao mundo globalizado em que se viram inseridos de forma brutal, num curto intervalo de tempo. Em cinquenta anos, o Brasil deixou de ser um país rural e transformou-se numa nação predominantemente urbana.
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A visão das mais tradicionais casas sertanejas indo a baixo, dando lugar a rodovias asfaltadas, curou-me de toda ilusão de um tempo estagnado. Na noite escura, o barulho forte dos tratores e as luzes dos faróis me deixaram a impressão de estar noutro planeta. Mas não estava. O sertão continuava ali, diante dos meus olhos, a perder de vista, com o asfalto fedendo mais do que carniça. Por muito tempo chorei essa ferida. Depois, me distraí olhando os carros passarem. Lamentar o irremediável? O sertão de hoje é esse mesmo. Mire e veja. Ou como disse o poeta Fabião das Queimadas:
Já morreu, já se acabou,
Está fechada a questão.
RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.