CONTINENTE A epígrafe do livro, retirada do romance As brasas, de Sándor Márai, fala justamente de uma espécie de “culpa do sobrevivente”, trata a superação da perda da pessoa amada como uma espécie de crime não prescrito na lei. Essa culpa do sobrevivente, se pensarmos em termos psicanalíticos, é também a melancolia que se reveste de culpa na hora de seguir adiante. Em que medida Mil rosas roubadas foi uma tentativa de compreender a melancolia e de prosseguir, de racionalizar a perda da pessoa amada?
SILVIANO SANTIAGO Não sei se o sobrevivente sente culpa. Para mim, melancolia não se confunde necessária e obrigatoriamente com culpa ou mágoa. O sobrevivente sente amor e melancolia, não há dúvida. Pense mais no par amor/melancolia que no par culpa/melancolia. A assassina é a Vida, não ele. O romance tem qualquer coisa do tom do Hino ao amor, cantado por Edith Piaf. Cito: “O céu azul sobre nós pode desabar,/ E a terra pode bem desmoronar,/ Pouco me importa./ Se você me ama”. Não consigo trabalhar o sentimento de culpa na ficção e até na vida. No meu caso, ele não é visceral, embora exista, é claro, e seja insidioso. Aliás, não me lembro de ter trabalhado o sentimento de culpa ou de mágoa, nem mesmo no romance Em liberdade. Mágoa, para mim, tem a ver com o ressentimento, de que fala Nietzsche em A genealogia da moral. O ressentimento (ou a mágoa) leva ao desprezo da vida pela constante negação. Está sempre a dizer não à vida que, no entanto, se lhe oferece sob a forma de alegria ou de dor. Sou mais Mário de Andrade. Meus personagens dizem um duplo sim à vida. A própria dor é uma felicidade – não se lembra do verso? Se há sentimento forte em Mil rosas roubadas, é o medo. Tomo-o no sentido de Clarice Lispector. Eis algumas frases dela que faço minhas pelas aspas: “Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo. O medo sempre me guiou para o que eu quero. E, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo que me tomou pelas mãos e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado”.
CONTINENTE Como sou um leitor dos seus ensaios sobre ficção, li o livro em vários momentos também como uma reflexão sobre a própria teoria literária. Fiquei pensando no que implica a palavra “biógrafo”. Seu livro deixa claro, em vários momentos, que, quando estamos biografando o outro, estamos também nos autobiografando. Você poderia falar um pouco sobre como enxerga a palavra “biógrafo”?
SILVIANO SANTIAGO O que distancia Mil rosas roubadas do gênero biografia/autobiografia é o fato de querer entrelaçar – pelo afeto e pela admiração – o narrador e o personagem. O narrador não é objetivo no desenho do perfil do protagonista (Zeca), como não será objetivo no próprio autorretrato (professor). Trata-se de uma autobiografia. Elevei a contradição entre a terceira e a primeira pessoa ao extremo. Como parceiros de vida, narrador (biógrafo) e personagem (biografado) se significam simultaneamente. Vali-me do romance A náusea, de Sartre, para chegar ao equilíbrio proposto pelo romance. Aproveitei o conflito interno do narrador sartriano, dividido entre relatar a biografia medíocre do Marquês de Rollebon ou sua própria vida, em diário íntimo. Comportando a biografia de Rollebon e o diário íntimo, A náusea nos ensina que um personagem de biografia pode não a merecer (e quantos no Brasil de hoje não a merecem), mas um personagem de romance, se não for rico, sedutor e complexo, morre na praia.
Ezequiel Neves e Cazuza. Foto: Divulgação
CONTINENTE Em determinado momento, você fala que o Ezequiel Neves dos anos 1980, aquele do Rock Brasil, não foi um homem que você conheceu/conviveu tanto, ainda que ele tenha convivido com você (você ressalta que nunca deixou de se mostrar a Ezequiel, sempre favorecendo o trabalho do futuro biógrafo). Fale um pouco dessa década, você “estranha” o Zeca do rock Brasil de alguma forma? Ou a época era mesmo para estranhamentos?
SILVIANO SANTIAGO Mesmo vidas gêmeas se desenrolam diferentemente. Graças a Deus. Há que ceder lugar ao outro, para que ele possa organizar a vida segundo seu desejo. Eis o conflito dramático do romance: o professor, racional, o artista, enlouquecido. Nada odeio mais que a ideia de cárcere privado, presente em novelas de Aguinaldo Silva. O Zeca do rock – associado em geral ao Barão Vermelho e a Cazuza − se tornou uma figura menor na tela midiática porque não tinha o corpo exposto no palco, exigência maior da sociedade do espetáculo, associada à sociedade de consumo. Ele era figura de bastidor. Não era celebridade. Tentei mostrá-lo como figura inteligente, puro corpo de ator que se pensa a si e à arte para enfrentar a vida. Fracassa no projeto solitário, apesar de ser um jovem e audacioso intelectual, responsável por mudanças extraordinárias no comportamento provinciano. Vira “garimpeiro” (esta é a metáfora privilegiada em todo o romance). Ele garimpa e faz florescer no palco do rock Brasil o corpo do outro, corpo este que ainda vivia atravancado pela família pequeno-burguesa e pela sociedade repressiva. Nos bastidores, Zeca se exercitava como mero fantoche (veja filmes e peças já feitas), uma espécie de porra-louca a dizer – por interposto sorriso zombeteiro – que tudo aquilo era perfeitamente descartável. Mas não é disso que o pessoal do rock gosta? Não é desse Zeca que eu gosto. Um direito, como qualquer outro.
CONTINENTE Seus livros de ficção parecem quebrar as expectativas e romper com os títulos anteriores. Uma obra como o seu romance Stella Manhattan ainda hoje causa estranhamento. Por sinal, você pensa em reeditar esse livro, já que ele toca em questões ainda tão fortes, como a radiografia de personagens à deriva em cidades “doentes”?
SILVIANO SANTIAGO Literatura para mim é ruptura. Vida, fragmentos. Isso, por um lado; pelo outro, assinei contrato com uma agente literária (primeira vez na vida). Vamos ver se consigo tocar o barco da vida & obra de maneira mais ordeira. O Stella Manhattan, que retrata os anos 1960, casa com o romance Uma história de família, que retrata os anos 1980, que se casa com o Keith Jarrett, que retrata os anos 1990. Os três livros guerreiros encontram finalmente repouso em Mil rosas roubadas. As rupturas formais e sentimentais não são gratuitas. Elas intensificam as emoções prevalentes em cada década na comunidade gay. Stella é o prazer pelo prazer, sem camisinha. Uma história de família fala da chegada da maldita doença. Keith Jarrett tenta apreender, pelo jazz, o mood fúnebre que cerca a perda das vidas amigas. E Mil rosas roubadas acaba por soar como hino ao amor. Meus romances, ainda que muito trabalhados, são ancorados no tempo que tentam apreender e apresentam ao leitor painéis da história. É a história do gay que vive de rupturas, fragmentada sua personalidade.
CONTINENTE Você comentou que estava trabalhando num projeto para a Cosac Naify, que você mesmo considera insólito – Ismael Nery e Murilo Mendes na década de 1920. Em que consiste esse projeto?
SILVIANO SANTIAGO Trata-se do posfácio para o primeiro livro de Murilo Mendes, Poemas (1930). Tentei surpreender Murilo e seu amigo, o pintor Ismael Nery, às voltas com a arte e a conversão. E também com a Itália – não a de Marinetti e do Futurismo – mas a Itália franciscana. Encontrei na biblioteca de Murilo um livro de um convertido dinamarquês, publicado em 1922 e lido por Ismael e Murilo nos anos 1920. Está todo sublinhado por um e pelo outro. Li as páginas, os parágrafos e as frases sublinhadas, tentando extrair deles o ideário religioso/político/estético dos dois.
SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista, doutor em Teoria da Literatura e editor do jornal Pernambuco.