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“Literatura, para mim, é ruptura”

Escritor mineiro Silviano Santiago fala sobre seu mais novo romance, 'Mil rosas roubadas', no qual rememora uma amizade marcante, além de comentar sua produção ficcional

TEXTO Schneider Carpeggiani

01 de Agosto de 2014

Silviano Santiago

Silviano Santiago

Foto Felipe Varanda/Folhapress

O que fazer quando se perde o biógrafo, a única pessoa capaz de registrar suas perdas e ganhos, sucessos e arrependimentos, enfim, sua trajetória? O que se perde quando se perde o biógrafo? São perguntas que o crítico literário e escritor mineiro Silviano Santiago se faz (e nos faz) ao longo de Mil rosas roubadas, biografia travestida de romance narrando a vida do jornalista, letrista e produtor do Barão Vermelho Ezequiel Neves (1935 - 2010), o Zeca.

Amigos desde a adolescência, Silviano acreditava que Ezequiel seria a única pessoa capaz de escrever sua biografia, a ponto de tê-lo “preparado” para o projeto ao longo das décadas. Com a sua morte, o autor lançou mão da escrita para lidar com o luto e acabou realizando uma das narrativas mais impactantes e originais da recente produção literária brasileira. O título Mil rosas roubadas faz referência ao sucesso Exagerado, parceria de Zeca com Cazuza. Nesta entrevista para a Continente, Silviano problematiza sobre o luto, sobre a escrita de ficção como teoria literária e faz um balanço da sua premiada obra ficcional.

CONTINENTE Mil rosas roubadas é memória, ficção, romance à clef e também um ensaio sobre a perda, como fez, por exemplo, Roland Barthes em Diário de luto. Quando você decidiu colocar na capa a classificação “romance”, a palavra, no lugar de aprisionar a obra num gênero, me pareceu abrir ainda mais os significados do livro, se pensarmos que um leitor nunca deve acreditar no que diz um escritor; afinal, escrever é, a princípio, ficcionalizar. Para começar, defina a necessidade de colocar a palavra “romance” na capa?
SILVIANO SANTIAGO Biografia é em si um gênero literário. Ganhou direito de cidadania no século 20, haja vista o belo ensaio de Virginia Woolf, A arte da biografia. Também a autobiografia é um gênero em si, descendente do diário íntimo. Ambas ganham mais sentido pela importância da pessoa real do que pela densidade atingida pela escrita. Já o romance é gênero tradicional e matreiro. Papa tudo. Gênero fora da lei, como dizem os teóricos anglo-saxões. Como o conhecemos, existe pelo menos desde Daniel Defoe. Passa por Gustave Flaubert, Machado de Assis e James Joyce e nos autoriza a dizer que ele usa os gêneros biografia e autobiografia como “suporte”. No romance, suporte é como a moldura que envolve uma tela. Repare: a tela/romance não se confunde com o suporte biografia/autobiografia. O estilo, os recursos retóricos, os efeitos estéticos buscados pelo romance etc., são outros e diferentes. O romance – ou a obra de arte − ludibria as categorias opostas e excludentes de realidade e de representação, de verdade e de mentira, para retirar o leitor atento de uma visão precária de estética e de ética. O real e a verdade “estão” na obra de arte enquanto tal. O romance é descendente da técnica da meia-tinta na pintura. Leonardo da Vinci lembra que, para desenhar em relevo, os pintores devem aplicar uma meia-tinta sobre a superfície de um papel de modo a localizar as sombras mais escuras e depois o lugar das luzes principais. O romance tem a ver com a tela renascentista. O romancista aplica a meia-tinta na folha em branco. Localiza melhor as sombras mais densas do tema e acentua o lugar inquietante em que pode jogar a luz reveladora. Compete ao leitor − e só a ele − afiançar, abonar, ou não, a verdade naquela ficção e a vida naquela mentira.


Silviano Santiado (esq.) e Ezequiel Neves (dir.). Foto: Divulgação

CONTINENTE A epígrafe do livro, retirada do romance As brasas, de Sándor Márai, fala justamente de uma espécie de “culpa do sobrevivente”, trata a superação da perda da pessoa amada como uma espécie de crime não prescrito na lei. Essa culpa do sobrevivente, se pensarmos em termos psicanalíticos, é também a melancolia que se reveste de culpa na hora de seguir adiante. Em que medida Mil rosas roubadas foi uma tentativa de compreender a melancolia e de prosseguir, de racionalizar a perda da pessoa amada?
SILVIANO SANTIAGO Não sei se o sobrevivente sente culpa. Para mim, melancolia não se confunde necessária e obrigatoriamente com culpa ou mágoa. O sobrevivente sente amor e melancolia, não há dúvida. Pense mais no par amor/melancolia que no par culpa/melancolia. A assassina é a Vida, não ele. O romance tem qualquer coisa do tom do Hino ao amor, cantado por Edith Piaf. Cito: “O céu azul sobre nós pode desabar,/ E a terra pode bem desmoronar,/ Pouco me importa./ Se você me ama”. Não consigo trabalhar o sentimento de culpa na ficção e até na vida. No meu caso, ele não é visceral, embora exista, é claro, e seja insidioso. Aliás, não me lembro de ter trabalhado o sentimento de culpa ou de mágoa, nem mesmo no romance Em liberdade. Mágoa, para mim, tem a ver com o ressentimento, de que fala Nietzsche em A genealogia da moral. O ressentimento (ou a mágoa) leva ao desprezo da vida pela constante negação. Está sempre a dizer não à vida que, no entanto, se lhe oferece sob a forma de alegria ou de dor. Sou mais Mário de Andrade. Meus personagens dizem um duplo sim à vida. A própria dor é uma felicidade – não se lembra do verso? Se há sentimento forte em Mil rosas roubadas, é o medo. Tomo-o no sentido de Clarice Lispector. Eis algumas frases dela que faço minhas pelas aspas: “Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo. O medo sempre me guiou para o que eu quero. E, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo que me tomou pelas mãos e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado”.

CONTINENTE Como sou um leitor dos seus ensaios sobre ficção, li o livro em vários momentos também como uma reflexão sobre a própria teoria literária. Fiquei pensando no que implica a palavra “biógrafo”. Seu livro deixa claro, em vários momentos, que, quando estamos biografando o outro, estamos também nos autobiografando. Você poderia falar um pouco sobre como enxerga a palavra “biógrafo”?
SILVIANO SANTIAGO O que distancia Mil rosas roubadas do gênero biografia/autobiografia é o fato de querer entrelaçar – pelo afeto e pela admiração – o narrador e o personagem. O narrador não é objetivo no desenho do perfil do protagonista (Zeca), como não será objetivo no próprio autorretrato (professor). Trata-se de uma autobiografia. Elevei a contradição entre a terceira e a primeira pessoa ao extremo. Como parceiros de vida, narrador (biógrafo) e personagem (biografado) se significam simultaneamente. Vali-me do romance A náusea, de Sartre, para chegar ao equilíbrio proposto pelo romance. Aproveitei o conflito interno do narrador sartriano, dividido entre relatar a biografia medíocre do Marquês de Rollebon ou sua própria vida, em diário íntimo. Comportando a biografia de Rollebon e o diário íntimo, A náusea nos ensina que um personagem de biografia pode não a merecer (e quantos no Brasil de hoje não a merecem), mas um personagem de romance, se não for rico, sedutor e complexo, morre na praia.


Ezequiel Neves e Cazuza. Foto: Divulgação

CONTINENTE Em determinado momento, você fala que o Ezequiel Neves dos anos 1980, aquele do Rock Brasil, não foi um homem que você conheceu/conviveu tanto, ainda que ele tenha convivido com você (você ressalta que nunca deixou de se mostrar a Ezequiel, sempre favorecendo o trabalho do futuro biógrafo). Fale um pouco dessa década, você “estranha” o Zeca do rock Brasil de alguma forma? Ou a época era mesmo para estranhamentos?
SILVIANO SANTIAGO Mesmo vidas gêmeas se desenrolam diferentemente. Graças a Deus. Há que ceder lugar ao outro, para que ele possa organizar a vida segundo seu desejo. Eis o conflito dramático do romance: o professor, racional, o artista, enlouquecido. Nada odeio mais que a ideia de cárcere privado, presente em novelas de Aguinaldo Silva. O Zeca do rock – associado em geral ao Barão Vermelho e a Cazuza − se tornou uma figura menor na tela midiática porque não tinha o corpo exposto no palco, exigência maior da sociedade do espetáculo, associada à sociedade de consumo. Ele era figura de bastidor. Não era celebridade. Tentei mostrá-lo como figura inteligente, puro corpo de ator que se pensa a si e à arte para enfrentar a vida. Fracassa no projeto solitário, apesar de ser um jovem e audacioso intelectual, responsável por mudanças extraordinárias no comportamento provinciano. Vira “garimpeiro” (esta é a metáfora privilegiada em todo o romance). Ele garimpa e faz florescer no palco do rock Brasil o corpo do outro, corpo este que ainda vivia atravancado pela família pequeno-burguesa e pela sociedade repressiva. Nos bastidores, Zeca se exercitava como mero fantoche (veja filmes e peças já feitas), uma espécie de porra-louca a dizer – por interposto sorriso zombeteiro – que tudo aquilo era perfeitamente descartável. Mas não é disso que o pessoal do rock gosta? Não é desse Zeca que eu gosto. Um direito, como qualquer outro.

CONTINENTE Seus livros de ficção parecem quebrar as expectativas e romper com os títulos anteriores. Uma obra como o seu romance Stella Manhattan ainda hoje causa estranhamento. Por sinal, você pensa em reeditar esse livro, já que ele toca em questões ainda tão fortes, como a radiografia de personagens à deriva em cidades “doentes”?
SILVIANO SANTIAGO Literatura para mim é ruptura. Vida, fragmentos. Isso, por um lado; pelo outro, assinei contrato com uma agente literária (primeira vez na vida). Vamos ver se consigo tocar o barco da vida & obra de maneira mais ordeira. O Stella Manhattan, que retrata os anos 1960, casa com o romance Uma história de família, que retrata os anos 1980, que se casa com o Keith Jarrett, que retrata os anos 1990. Os três livros guerreiros encontram finalmente repouso em Mil rosas roubadas. As rupturas formais e sentimentais não são gratuitas. Elas intensificam as emoções prevalentes em cada década na comunidade gay. Stella é o prazer pelo prazer, sem camisinha. Uma história de família fala da chegada da maldita doença. Keith Jarrett tenta apreender, pelo jazz, o mood fúnebre que cerca a perda das vidas amigas. E Mil rosas roubadas acaba por soar como hino ao amor. Meus romances, ainda que muito trabalhados, são ancorados no tempo que tentam apreender e apresentam ao leitor painéis da história. É a história do gay que vive de rupturas, fragmentada sua personalidade.

CONTINENTE Você comentou que estava trabalhando num projeto para a Cosac Naify, que você mesmo considera insólito – Ismael Nery e Murilo Mendes na década de 1920. Em que consiste esse projeto?
SILVIANO SANTIAGO Trata-se do posfácio para o primeiro livro de Murilo Mendes, Poemas (1930). Tentei surpreender Murilo e seu amigo, o pintor Ismael Nery, às voltas com a arte e a conversão. E também com a Itália – não a de Marinetti e do Futurismo – mas a Itália franciscana. Encontrei na biblioteca de Murilo um livro de um convertido dinamarquês, publicado em 1922 e lido por Ismael e Murilo nos anos 1920. Está todo sublinhado por um e pelo outro. Li as páginas, os parágrafos e as frases sublinhadas, tentando extrair deles o ideário religioso/político/estético dos dois. 

SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista, doutor em Teoria da Literatura e editor do jornal Pernambuco.

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