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Maria Carmen (Recife, 18/3/30-20/6/14)

TEXTO José Cláudio

01 de Agosto de 2014

De um caderno de Maria Carmen, 28 x 34 cm, 2010

De um caderno de Maria Carmen, 28 x 34 cm, 2010

Imagem Reprodução

No Dicionário das Artes Plásticas no Brasil de Roberto Pontual, Civilização Brasileira, 1969, tem “Maria Carmem” com m no fim mas seu filho Jorginho escreve com n; e data de nascimento “1935” mas ela era de 1930: “Ela gostava de negar a idade” (Jorginho). Pontual começa seu verbete dizendo: “Desenhista e escultora. De 1959 a 1961 estudou escultura com Humberto Cozzo, no Rio de Janeiro, voltando em seguida a fixar-se no Recife, onde, em 1962, fez curso de desenho com Abelardo da Hora, José Cláudio da Silva e Wellington Virgulino”.

Fazia pouco tempo, voltara da minha “viagem de Ali Babá”, a dos indivíduos naquela época que pobre não viajava a não ser de pau-de-arara, para aventurar a vida no sul-maravilha: por “viagem de Ali Babá” entenda-se a do pé-rapado que por alguma circunstância tinha ido à Europa e ficava falando nisso para o resto da vida, como vivo fazendo. Miguel Arraes, prefeito do Recife, fizera, por inspiração de Abelardo da Hora, a galeriazinha da beira do rio, projeto de Marcos Domingues. Ficava a meia altura entre o nível da água do Capibaribe e o da rua, ali onde tem hoje, se já não quebraram, a estátua de Capiba. Entrada pela Rua do Sol. Uma gracinha de galeria, aconchegante, sempre movimentada tanto pela afluência do público como pela sequência de boas exposições. No coração do Recife. Mas durou pouco, destruída por uma cheia que a deixou submersa. Eu ia muito lá, até fiz uma ou duas exposições e um dia apareceu Maria Carmen insistindo para eu ir a seu apartamento do outro lado do rio, em cima do Cinema São Luiz. Foi assim que a conheci.

Fui. Começo de noite. O marido chegou para jantar, para minha surpresa Toinho, ex-colega do Colégio Marista: muito vermelho e agitado, apesar de moreno mas de raça branca, cabelo bom, meio baixotinho, não tanto quanto Maria Carmen. Agora depois do enterro de Maria Carmen perguntei se era vivo e Jorginho disse que morrera. Do coração. Engraçado, eu sempre previra que ele ia morrer do coração, apesar de não tê-lo visto nunca mais depois de menino. Tinham dois filhos: Vera (1952-92), muito lindinha, que morreu de um aneurisma, deixando um filho, Teo; e Jorge (1953), com duas filhas nascidas nos Estados Unidos e lá vivendo até hoje como o pai, Larissa e Juliana.

Lembro que Toinho chegou, pediu o jantar, e reclamou que o arroz estava molhado. Maria era de família abastada, dona da TSAP, Tecelagem de Seda e Algodão de Pernambuco, e da Usina N. S. do Carmo. Quando se divorciaram ele ficou com o posto de gasolina da frente do aeroporto. “A maior besteira que o meu pai fez na vida foi vender aquele posto de gasolina, com um terreno enorme.”

“Jorginho foi bem sucedido nos Estados Unidos”, me disse Maria Digna, da mesma família, Pessoa de Queiroz. Ela me ligou depois do enterro, dizendo que eu fosse lá no Museu do Estado, de que é diretora, falar com ela, mas desmarcou. Eu ia sugerir-lhe que fizesse no Museu uma exposição de Maria Carmen enquanto as obras ainda estão aqui: eu me senti muito honrado quando, levado a sua casinha em Olinda por Jorginho, subindo ao mezanino onde ficava o pequeno quarto de dormir, vi na parede da cabeceira da cama quatro retratos dela pintados por mim, os únicos naquela parede. A casa estava toda forrada dos seus quadros, alguns até grandes, um com uma braça de largura.

Pelo que vi quando ela me levou a seu apartamento (1962), era ainda uma artista nos começos, sem muita coisa para mostrar. Tanto que dessa visita só lembro de duas coisas: de Toinho e de uma coleção absolutamente original de esculturas feitas de chicletes, de um chiclete, daqueles miudinhos, que vinham dois numa caixinha amarela, figuras de corpo inteiro, cada uma feita de um chiclete, com menos de um centímetro e, acredite se quiser, cabeça, tronco e membros, tendo-se ainda ideia, na cabeça menor que uma cabeça de fósforo, de nariz, boca e até os olhos, furados com uma agulha, suponho. O que se poderia chamar, no caso de Maria Carmen, e com alguma propriedade, de “loucura”, porque, “já era dada pela família como louca”, diz Jorginho. Mas de fato esse foi o caminho da cura, pois ao ver tais figurinhas, seu médico, Dr. Aloísio Marques, encaminhou-a ao escultor Humberto Cozzo, levada por “Tia Mocinha” (Jorginho) irmã da mãe de Maria Carmen, Dna. Carmita.

Maria Carmen me disse que o mundo real não existia para ela, o inconsciente prevalecendo de forma absoluta. Ela via monstros saírem de debaixo de mesas e de portas, o que a deixava apavorada, e não via mais nada nem ninguém. A primeira vez que se deu conta da existência do mundo real foi quando sentiu a picada de uma injeção, ficando ansiosa por tomar mais injeções. Então começou a botar pedrinhas dentro do sapato para sentir alguma dor física. Foi aí que começou a fazer essas figurinhas de chiclete.

Essas figurinhas, quando eu as vi, estavam guardadas numa caixa de fósforos das pequenas, 5x3,5cm, com talco, para não colarem umas nas outras, umas quinze ou mais. Maria morreu sem saber o fim dessas suas primeiras esculturas, que tiveram um fim também original. Da caixinha de fósforos, passaram para uma cantoneira, um armariozinho de canto de parede com a porta de vidro, onde Jorginho encontrou-as e, chicletes, foram devidamente mascados. “A princípio eram duros mas logo amoleciam” (Jorginho).

Ela foi minha aluna de desenho no MCP, Movimento de Cultura Popular, ela e Delano, outro grande artista. Fui botado lá por Abelardo da Hora. Nessa época eu era muito influenciado pelo desenhista paulista Arnaldo Pedroso d’Horta que, passando uns dias em minha casa, conheceu Maria Carmen, e foi o grande abridor de caminhos para ela no mundo das artes em São Paulo, no auge das Bienais,

Maria Carmen nunca abandonou esse seu mundo interior, inferno (o escritor Gastão de Holanda chamou de “sua civitas diaboli”) ou paraíso. Nas suas pinturas e desenhos, o real continuou devorado pela sua imaginação. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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