Dança, seja qual for
Décima-primeira edição de encontro nacional aposta em programação que inclui as categorias clássica, popular, de salão, étnica e contemporânea
TEXTO Christiane Galdino
01 de Agosto de 2014
'Frevo de casa', com bailarinas e músicos no palco, é marcado pela interação
Foto Ju Brainer/Divulgação
Os livros de história e de ficção nos mostram que dançar sempre foi uma das formas mais usadas para extravasar sentimentos. E, mesmo quando falamos da dança como uma linguagem artística, uma prática profissional, apesar de outros atributos estéticos e técnicos entrarem em cena, a essência “sensível” desse verbo continua dando o tom. Seja no palco, no salão, na rua, nas festas ou nas plateias, a maioria da população se relaciona com essa modalidade de arte. E, nesse contato, o movimento tenta traduzir ou expor os mais diversos sentimentos. Não importa o estilo ou o ritmo, as trilhas da dança nos levam às emoções, e estão sempre presentes no cotidiano das mais variadas sociedades. Apostando nessa multiplicidade, a Mostra Brasileira de Dança chega à sua 11ª edição com uma extensa programação, que inclui a clássica, popular, contemporânea, de rua, afro, árabe, de salão; além de suas intersecções, misturas e fusões.
No vocabulário de gestos e movimentos dessa linguagem artística, os objetos são bons aliados da dramaturgia. É o que acontece no solo O vestido, de Rosa Antuña (MG), no qual a roupa é o fio condutor da discussão levantada pela artista sobre as inquietações da sociedade contemporânea. “Um vestido que, literal ou metafórico, externa ou internamente, possa nos fazer voar!”, propõe. O espetáculo teve processo de criação inspirado nos livros de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas eAlice através do espelho; além de Ecce Homo, de Nietzsche, em estudos sobre Freud, e nos filmes A jovem rainha Vitória eElizabeth.
O diálogo com a literatura também foi o ponto de partida do solo Sobre mosaicos azuis, da pernambucana Januária Finizola, livremente inspirado nos livros do carioca Rodrigo de Souza Leão, falecido em 2009, que sofria de esquizofrenia. Januária lança reflexões sobre a linha tênue que separa a insanidade patológica e as loucuras “normais” do dia a dia, trazendo uma abordagem densa e leve ao mesmo tempo, “como é próprio do universo da loucura”.
No caso de Anticorpo, as memórias pessoais do processo de tratamento e cura de um câncer do próprio intérprete criador, Saulo Uchôa, serviram de roteiro para o espetáculo, no qual “veias, sangue e dor” são pretexto para a dança.
Em Na pista, Companhia Urbana de Dança se apropria dos movimentos de rua.
Foto: Renato Mangolin/Divulgação
ABRE-ALAS
A variedade de assuntos e de estilos foi pensada pelos organizadores da Mostra Brasileira de Dança, Paulo de Castro e Íris Macedo, para “atender a quem gosta de dança, seja qual for a dança”. Uma iniciativa que deixa ver uma preocupação maior da produção: a formação e ampliação do público.
“O que a gente tem visto nas apresentações de dança é uma grande segmentação. Na atualidade, os que fazem parte de um determinado estilo, como a de salão, por exemplo, alimentam-se dos seus próprios eventos, congressos e festivais específicos, ficando distantes dos demais gêneros e perdendo, com isso, as ricas possibilidades de troca e intercâmbio de experiências”, analisa Rogério Alves, artista formado nas danças de salão, que coordena a produção do evento.
Para aproximar as tribos e o público leigo, que também anda sumido, “escolhemos uma obra reconhecida internacionalmente, que tem uma grande aceitação, para atrair todos os públicos e, assim, ajudar a divulgar os demais trabalhos da programação”, explicou Iris Macedo. Ela se refere ao espetáculo de abertura da mostra, Aquarelas, da Cia. de Dança Carlinhos de Jesus, do Rio de Janeiro.
A ideia é que a companhia possa funcionar como um chamariz para os demais espetáculos, coreografias, seminários, exposições e exibições de vídeos da programação, que este ano conta com patrocínio dos Correios (Governo Federal), Funcultura (Governo do Estado de Pernambuco), programa O Boticário na Dança e Prefeitura do Recife.
Curadoria da mostra traz Cia. de Dança Carlinhos de Jesus
como elemento de atração do público.
Foto: Wagner Carvalho/Divulgação
Tendo o samba como abre-alas, com direito à presença de mestre-sala e porta-bandeira, as coreografias de Aquarelas passeiam pelas danças de salão brasileiras. No palco, o midiático Carlinhos de Jesus e mais 12 bailarinos apresentam chorinho, samba de roda e de gafieira, e tantas outras manifestações populares do dançar no Brasil, como a lambada, o forró e o frevo.
As tradições culturais brasileiras também guiam outros trabalhos da programação, só que com um viés mais conceitual. Elégùn – um corpo em trânsito, de Giorrdani de Souza (Kiran) e Jorge Kildery, que também é intérprete do solo, traz elementos do candomblé para suscitar questões sobre os conceitos de corporeidade e performatividade, e como é estar em cena em um estado alterado de consciência.
No projeto Frevo de casa, as bailarinas Flaira Ferro e Valéria Vicente, e os músicos Spok e Lucas dos Prazeres, propõem “um exercício de liberdade compartilhada, cujo percurso é guiado pela escuta, a vibração, o contágio e o desejo”. A participação do público é incorporada à performance do quarteto, diluindo as fronteiras entre artistas e plateia.
Na pista, da Companhia de Dança Urbana (RJ), também é uma aposta dos organizadores da Mostra em “atrair e contagiar” o público com o clima festivo e as coreografias que misturam técnicas do hip-hop a referências culturais do subúrbio carioca, de onde vêm os nove integrantes do elenco. Na trilha sonora, Michael Jackson, Jamiroquai, Tim Maia, David Bowie, Chaka Khan, Erik Satie e De La Soul.
Rosa Antuña realiza o solo O vestido, em que discute questões
da sociedade a partir da indumentária.
Foto: Marco Aurelio Prates/Divulgação
CADEIRANTES
Se, para a arte contemporânea, a liberdade é ingrediente imprescindível, na dança, isso se aplica também aos corpos, pois há muito tempo a ideia de um padrão corporal único caiu por terra.
Ampliando o sentido dessa liberdade, a Mostra Brasileira de Dança, incluiu nas suas ações formativas a Oficina de Iniciação à Dança em Cadeiras de Rodas, voltada não só para cadeirantes como também para pessoas sem deficiência. A professora Liliana Martins, diretora da Cia. Cadências (PE), diz que a ideia é “possibilitar que se conheça a dança em cadeira de rodas, incluindo teoria e prática básica da dança direcionada para um contexto social, cultural, artístico e esportivo”.
Nos palcos, a diversidade de corpos também está representada pela Companhia Gira Dança (RN), que dessa vez traz ao Recife o espetáculo Proibido elefantes, fazendo uma análise crítica sobre o olhar que ressalta os impedimentos, que duvida da capacidade do sujeito frente à adversidade. Composta por pessoas com corpos diferenciados (com e sem deficiência), a Gira Dança tem como proposta artística ampliar o universo da dança com uma linguagem própria, trabalhando as diferenças como potencial e não como limitação.
CHRISTIANE GALDINO, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural.