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'Rozenbac': O protagonismo do compositor

Autor de canções desde a juventude, André Rosemberg firma parceria com o músico e produtor Bactéria em disco despretensioso e cheio de referências

TEXTO Marina Suassuna

01 de Agosto de 2014

Depois de ouvir uma música de André Rosemberg (esq.), Bactéria lhe propôs produzir o disco

Depois de ouvir uma música de André Rosemberg (esq.), Bactéria lhe propôs produzir o disco

Foto Otavio de Souza/Divulgação

"O meu trabalho principal não é de cantora. Eu canto porque são as músicas que eu faço e as letras que eu escrevo. Mas não é uma coisa que está de frente para mim. Acho estranho ser chamada de cantora.” Pensamentos como o de Karina Buhr refletem o caminho da música brasileira já trilhado por artistas de outras gerações, em que a voz nem sempre toma as rédeas de uma canção. Estabelecer uma comunicação por meio de uma letra, intenção melódica ou linguagem própria torna-se, muitas vezes, mais importante do que exibir uma voz pura, afinada e limpa. “Essa coisa de cantora ficou estigmatizada. ‘Vozes brasileiras’, que vozes?! São pessoas, não é apenas uma voz, tem ideias ali”, defendeu, em entrevista a um jornal da Bahia, a percussionista e compositora baiana, que morou boa parte da vida em Pernambuco e hoje está em São Paulo.

Karina se queixa de que o Brasil passou muito tempo com intérpretes que não faziam suas próprias músicas e, enquanto isso, havia muitos compositores que não eram divulgados, salve exceções. “As letras são muito importantes até para definir os ritmos, as quebradas, os tempos. Tudo é em cima das letras”, defende, sem desmerecer os demais processos de composição musical.

Para alegria de Karina, não tem sido difícil, nos dias de hoje, encontrar compositores que estão abrindo mão da posição de criadores invisíveis e colocando-se como protagonistas de suas próprias canções. André Rosemberg nos traz um testemunho disso. O jornalista, compositor e proprietário do Bar Central – reduto boêmio da cena cultural recifense, no Bairro de Santo Amaro –, lançou, em 2013, o projeto RozenBac, desenvolvido com o tecladista e produtor musical Bactéria, o Bac, um dos fundadores da Mundo Livre S/A, com passagem por projetos como Los Sebosos Postizos e Variant, e atualmente membro da banda de Otto.

Encartado nesta edição da Continente, o disco homônimo reúne 10 canções, oito delas compostas por Rosemberg, que, apesar de inexperiente como vocalista, sentiu-se à vontade para cantar todo o repertório. “Eu não me sinto um cantor, mas dá pra desenrolar, porque as músicas são minhas. Acredito que não é algo que vá desagradar tanto. Hoje em dia, acabou essa coisa do intérprete. As pessoas estão sendo levadas a cantar por outros motivos.”

Compositor desde a juventude, André Rosemberg teve a sua primeira experiência num estúdio em 2008, quando gravou o EP AmaDor - quatro sambas e um reggae à procura de intérpretes, sem tiragem comercial, apenas distribuído entre amigos. A ideia, como sugere o título do álbum, era procurar intérpretes que gravassem suas músicas. “O AmaDor cumpriu uma função. Não chegou ninguém para gravar, mas chegou Bactéria, que me procurou no Central, depois de escutar uma das faixas no programa de rádio de Roger de Renor, querendo produzir um trabalho comigo”, conta Rosemberg. “Sempre fiz música quando era jornalista, mas precisava de um parceiro. Bac vestiu a minha música, abraçou o projeto.”

A parceria deles resultou num projeto refinado, com letras poéticas e melodias elaboradas, compostas por Rosemberg no violão. Os arranjos “classudos”, segundo ele, contrastam com sua voz não profissional. É essa a ideia que envolve o ouvinte: um misto de informalidade e sofisticação, típico do som produzido em Pernambuco. “Nós abandonamos a formalidade que havia no AmaDor, em que predominavam arranjos mais clássicos. Mas sem desmerecer o EP. Afinal, foi ele que nos uniu. Mostrei a Rozen que suas letras poderiam caminhar de maneiras diferentes, sem perder a essência”, comentou o produtor Bactéria.

RozenBac foge de uma obra conceitual. Seu repertório abrange samba, reggae, pop, brega, tango, poema-canção. Parte desse sincretismo sonoro tem a mão de BiD, Buguinha Dub e Yuri Kalil que, a convite de Bactéria, participaram do processo de mixagem – tratamento estético pelo qual a música passa após a gravação. “Geralmente se coloca um mixador para dar uma unidade ao trabalho, mas neste disco foi o contrário, há uma falta de unidade consciente”, deixa claro o compositor.

Os três convidados acrescentaram bastante ao álbum em termos de linguagem, cada um com suas respectivas bagagens. Quem acompanha os trabalhos de Chico Science & Nação Zumbi, Seu Jorge e Arnaldo Antunes, certamente conhece BiD e faz ideia da contribuição que é a sua assinatura enquanto produtor. Não à toa, ele é considerado um dos “cavaleiros das sombras” da música brasileira. Segundo Rosemberg, ele proporcionou ao disco um som mais aberto, pop, para tocar no rádio, explícito em faixas como Teu nome, Você e Esse samba.


Bactéria e Rosemberg somente convidaram os músicos para tocar durante o processo de gravação. Foto: Otavio de Souza/Divulgação

Já Yuri Kalil trouxe timbres menos convencionais para as faixas A solidão e sua porta e Adam, fruto de sua experiência com nomes como Cidadão Instigado, Thiago Pethit e a própria Karina Buhr. Enquanto Buguinha carimbou sua marca com dubs e efeitos em músicas como Keep fighting e Musa. “Cada uma tem uma sonoridade. Deu para sentir a mão da galera, isso é mágico. Um mixador não é só um mixador, é mais um para somar”, comenta Bactéria que, ao lado dos técnicos de som Djalma Rodrigues e Bruno Freire, do estúdio Casona, também assinou parte da mixagem sob o codinome de Dom Casebre.

Quem também contribuiu com o disco foi a atriz Hermila Guedes, revelando-se uma intérprete e tanto. A voz envolvente da atriz pega o ouvinte de surpresa, logo na primeira faixa, Esse samba, em que ela faz duo com Rozen. O convite partiu do compositor que, ao saber da vocação da amiga, enviou-lhe algumas músicas para que escolhesse. “Eu gosto de cantar, mas só uso essa pequena aptidão no teatro junto com meu grupo do Recife, o Coletivo Angu de Teatro. Foi uma surpresa muito boa, principalmente porque não sabia que André compunha, muito menos que cantava. Adorei a experiência e principalmente o resultado”, diz a atriz.

POETAS
Além de Hermila, outras vozes femininas entraram no disco, entre elas a de Joana Pena, neta de Carlos Pena Filho, de quem Rosemberg musicou o poema A solidão e sua porta. A escolha por musicar o poeta pernambucano se deu durante a montagem do repertório. “O poema de Carlos Pena já estava perto de mim há muito tempo, entre meus escritos, papéis e rascunhos”, explica. Como se não bastasse, outro poeta pernambucano lhe serviu de estímulo. Manuel Bandeira, cujas obras completas acompanharam Rosemberg em vários mochilões pelo mundo, foi a fonte de inspiração da música Éter, composta em parceria com Bactéria.

“Minhas músicas são todas cheias de referências”, diz o compositor. Quem escutar a faixa Teu nome, facilmente lembrará de Gal Costa recitando “E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar, não precisa sobrenome, pois é o amor que faz o homem”, em Meu nome é Gal, escrita por Roberto e Erasmo Carlos. Assim como Esse samba faz alusão direta a Canto de Ossanha, de Vinícius de Moraes e Baden Powell.

“Apesar de terem sido feitas em épocas diferentes, inconscientemente, minhas músicas estão sempre falando das mesmas coisas: tempo, poesia, amor e desamor. Mesmo estando em primeira pessoa, eu ficcionalizo as letras, procuro falar de sentimentos mais amplos, não foco só o meu ego”, explica o compositor.

A despretensão com que André Rosemberg e Bactéria conceberam o projeto, sem convocar uma banda e ensaiar antes das gravações, somando-se à ausência de um conceito pré-estabelecido para o trabalho, torna o trabalho singular, fiel ao fluxo natural dos acontecimentos. O que arriscaram deu certo. A começar pelos músicos, que foram sendo chamados no decorrer das gravações. Sem falar dos integrantes do estúdio Casona – Cristiano Bivar (bateria), Djalma Rodrigues (violão e guitarras) e Bruno Freire (técnico de som) – que se dispuseram a executar algumas canções. Beto do Bandolim (bandolim), Marcos Axé e Malê (percussões), Hugo Carranca (bateria), Jô do Vale (piano rhodes), Parrô Melo (clarinete), Alberto Guimarães (violão de sete cordas) e Artur Dosa (guitarra) foram alguns dos convidados. “Foi um trabalho colaborativo, graças à abertura que dávamos a todos que chamamos para gravar”, contou Rosemberg.

Se considerarmos que os verdadeiros criadores são os compositores, RozenBac faz jus a tal princípio, uma vez que nos permite ter acesso direto à voz do compositor e, de quebra, aos que o ajudaram a se expressar. A influência de Bactéria como produtor também é notável: “Minha preocupação foi fazer um disco sem apelação musical. Tem que ter algo de orgânico, senão fica pasteurizado, artificial”, resume. 

MARINA SUASSUNA, jornalista.

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