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Ervas: Para curar os males do corpo e da alma

Prática tradicional no Brasil, transmitida através de gerações, o uso das plantas medicinais se aplica de problemas comuns de saúde a questões metafísicas

TEXTO LUCIANA VERAS
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Agosto de 2014

Foto Roberta Guimarães

"Minha iniciação como babalaô na cidade de Keto, hoje na República do Benin, África Ocidental, em 1953, facilitou e oficializou minhas pesquisas, mesmo porque tomar conhecimento do uso das plantas para a preparação de receitas, remédios e ‘trabalhos’ tradicionais constituíram, para mim, não somente um direito, mas uma obrigação”, narra Pierre Verger (1902-1996) em Ewé - o uso das plantas na sociedade iorubá, livro que a Companhia das Letras e a Fundação Pierre Verger lançaram em 1995, hoje esgotado, contudo ainda uma referência no estudo e na constatação da importância das ervas e plantas nas práticas das religiões de matriz africana.

“As plantas eram-me entregues por meus confrades babalaôs acompanhadas de seus nomes iorubás e de frases curtas chamadas , as quais enunciam, em termos muitas vezes poéticos, suas qualidades”, complementa o fotógrafo e etnógrafo, que na África se fez Fatumbi (“renascido pelo Ifá”) e feiticeiro, e na Bahia, “o mestre de todos nós”, conforme descrição de Jorge Amado (1912-2001).

Em Ewé (pronuncia-se “euê”), Verger discorre, em português e iorubá, sobre 447 “receitas medicinais e mágicas” (para apressar/segurar a gravidez, para atrair amigos, livrar alguém de um processo na justiça ou incitar a ira de determinado orixá, entre outras). Seu relato mantém-se atual, pois a utilização de ervas e plantas medicinais é uma prática tradicional salvaguardada em todo o miscigenado Brasil. Transmitida através das gerações como um hábito ou mesmo uma superstição, traduz-se tanto no consumo cotidiano dos adeptos da medicina popular (quem nunca recorreu a um chá de capim-santo ou a um xarope de mastruz?) como nas cerimônias de fé ligadas às religiões de matriz africana ou ainda nos rituais de cura dos povos indígenas. Se, por exemplo, alguém cogita comprar arruda ou espada de São Jorge para espantar os maus agouros de um mês como agosto, está, às vezes sem saber, a repetir um comportamento ancestral.


Existência de árvore sagrada no Terreiro de Mãe Amara é motivo de celebração
para a yakekerê Maria Helena Sampaio e para o babalorixá Junior de Ajagunã

É o que a pesquisadora Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo, especialista em etnofarmacobotânica do Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro, da USP-PUC/SP, define como “saber acumulado”. “Como é que as pessoas sabem, por exemplo, que alecrim é bom? Porque dentro de suas casas cresceram ouvindo e vendo isso. Elas podem não mais cultivar o alecrim, mas saem de casa para comprar. A história das folhas no Brasil começa antes da chegada do português, com os índios e seus sistemas de crença e rituais de cura, e prossegue com a mescla entre os povos autóctones, os europeus e os negros. É bom lembrar que os portugueses já tinham acesso às especiarias asiáticas via Mediterrâneo, de modo que as trouxeram para cá ao chegar, da mesma forma que levaram plantas nossas para a África, antes mesmo da escravidão por aqui começar”, atesta.

Tal intercâmbio propiciou a ampliação da oferta de ervas e plantas e, séculos depois, um horizonte plural no contexto contemporâneo. Manjericão, lacre, alfavaca, colônia, hortelã miúda e graúda, artemísia, erva-lanceta e levante, entre outras, são folhas secas ou raízes que qualquer um pode adquirir e misturar ou usar como bem entender. José Carlos Pereira, o Zé do Mel, administra um box ao lado do Mercado de São José, no centro do Recife, há 37 anos; antes dele, seu pai, Antônio do Mel, vendia ervas e o adocicado néctar das abelhas que lhe deu um apelido transformado em sobrenome. Zé do Mel conta que aprendeu “lendo, ouvindo o pai e com os fregueses também” e hoje, embora a modéstia lhe impeça de se gabar, é apontado como “mestre” pelos vendedores do conjunto de barracas voltado à comercialização de ervas, plantas, essências e garrafadas. “Meu pai tinha contato com um caboclo e com ele aprendeu muito”, revela.

Ele acredita que a procura nunca vai acabar. “Quem acha que o povo vai parar de comprar erva e planta não sabe nada. Todo dia chega gente querendo uma planta para fazer remédio”, diz. Suas receitas campeãs de venda são as de limpeza. “Quer um banho para tirar o que não presta? Manjerioba, tipim, carrasco, arruda, pinhão-roxo, lacre e carrapateira. Quer o banho da sorte? Macassar, alecrim, manjericão, levante, malva-rosa, patchuli, bem-me-quer e botão-de-ouro. Quer um para chamar o amor? Levante, bem-me-quer e mil-homens”, engata. Josefa Alves, freguesa dele há uma década, sorri e requisita o seu quinhão para o zelo próprio. “Sou comerciante, quero fazer uma limpeza no lugar de trabalho para energizar”, comenta a paraibana, desde 1981 morando em Pernambuco.


Hortelã (foto), babosa e pinhão-roxo estão entre as mais requisitadas do receituário popular

Uma dezena de metros adiante, no box 470, intitulado Dona Vera Ervas Medicinais, carqueja, espinheira santa, louro e boldo, folhas desidratadas vendidas em sacos, ladeiam jucá, sucupira e pau-ferro, pedaços de cascas de árvores. Quer se livrar de males no fígado, diabetes, gastrite, azia ou acalentar aquela vontade de emagrecer? Eis o lugar. “Há quanto tempo a senhora vende ervas aqui?”, a primeira pergunta. “Há uns 20 anos e tarará”, brinca ela. São 24 temporadas no comércio, o que lhe dá expertise para afirmar: “As mais procuradas são aquelas que servem para curar qualquer tipo inflamação, como aroeira e caju roxo”. Ela não se aventura a calcular a quantidade de produtos que oferece (“minha Nossa Senhora, são muitos”), mas enquanto atende uma freguesa interessada em comprar uma muda de arruda e outra de manjericão, uma senhora mais velha pede à filha que vá separando as plantas. “Não demore, que hoje é dia de benzer o pessoal”, adverte.

A presença de uma benzedeira emula um corriqueiro procedimento indígena. “O ato de benzer e a própria figura da benzedeira são uma herança dos índios”, explica o antropólogo Renato Athias, professor do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (Nepe). Ele trabalha com populações indígenas desde 1972, com ênfase no sertão pernambucano (os Pankararu, por exemplo) e na região amazônica do Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia, em que lida com os Hupd’äh e os Tukano. “Para nós, para a botânica e para a fitoterapia, a planta tem seu poder através do princípio ativo. É evidente que grande parte das plantas que os índios descobriram, a exemplo do quinino, comprovam que sua experiência científica, não só nas tribos do Brasil mas nas das Américas, foi vital para o desenvolvimento da fitoterapia. No entanto, para eles, a essência da cura está nas palavras encantadas, que são um conhecimento mítico dentro das práticas xamânicas e mágicas”, acrescenta o professor.

PALAVRAS ENCANTADAS

É a mesma lógica do , as encantações assimiladas por Pierre Verger. “À primeira vista, é difícil perceber nas receitas qual é a parte mágica (que mais respeitosamente deveremos chamar de axé, poder), e quais as virtudes testáveis experimentalmente dessas plantas”, escreve em Ewé. “Nas religiões de matriz africana, as folhas são sagradas, mas os rituais também têm a cantiga, a louvação, entoadas geralmente em iorubá. Embora a erva seja o princípio de tudo. É como diz aquela frase kosi ewé kosi orisà: sem folhas não tem orixá”, partilha Maria Helena Sampaio, yakekerê do Ilê Obá Aganjú Okoloyá, o Terreiro de Mãe Amara, localizado em Dois Unidos, na zona norte da capital pernambucana.


Babosa

Yakekerê é “mãe pequena”; sua mãe, Amara, é a ialorixá do terreiro de tradição nagô e doutrina matriarcal. Nele, em qualquer ocasião, as folhas se fazem componentes essenciais. “Elas trazem a essência do seu orixá para perto de você, seja num momento de purificação, como o amassi, que é o banho de limpeza, seja numa cerimônia de iniciação”, complementa Maria Helena. Folhas de algodão, colônia, corama branca, macassar e manjericão são rotina na casa, que assim presta sua reverência a Ossain (ou Ossanhê), o orixá das folhas. “Ele é o grande sacerdote das ervas, é quem, com ajuda dos ventos de Iansã, distribui o axé das plantas”, ensina Junior de Ajagunã, o babalorixá do terreiro e pai de santo da Roça Oxaguiã Oxum Ipondá. Em Mãe Amara, ele e Maria Helena celebram a existência de um iroco, árvore sagrada considerada uma “divindade”. Há também um pé de dendê, crucial para os ritos de limpeza e preparação das comidas dos orixás.

Disso os dois podem falar; de outros procedimentos, nos quais também se inserem o ímpeto de Ossain e suas folhas, que incluem sacrifício de ervas, eles silenciam. Como a maioria dos povos indígenas, calam-se quando sentem que determinado costume é sagrado demais para ser tornado público.

“Para o sacerdote, o silêncio aumenta-lhe o poder de cura. Faz crescer a simbiose entre ele e as folhas. Não falar no segredo potencializa sua magia e na mesma proporção o desejo de obtê-la. As plantas medicinais presentes em um terreiro estão impregnadas de sacralidade”, pontua o antropólogo e babalorixá Júlio Braga, do terreiro Axé Loyá, de Salvador (BA). Ao falar no seminário Folhas sagradas, ocorrido em julho na Fundação Joaquim Nabuco, ele questionou se, fora das cerimônias religiosas e do ambiente sagrado dos terreiros, as plantas permaneciam eficazes. “A medicina popular tradicional e mesmo os remédios de senso comum comprovam a propriedade terapêutica das plantas e minerais”, ele mesmo respondeu.


Pinhão-roxo

FITOTERAPIA
Daí o nascimento, há mais de três milênios, da fitoterapia (do grego phyton, vegetal, e terapia, tratamento), a ciência de extrair das plantas medicinais as substâncias de onde surgem xaropes, tinturas, pomadas, chás e cápsulas. Foi a forma que o homem encontrou para democratizar o acesso a tais propriedades curativas. “Qualquer pessoa pode plantar capim-santo e dele fazer chá. Mas a fitoterapia possibilita que possamos ter o xarope de espinho-de-cigano, broncodilatador que atua contra a asma”, argumenta o farmacêutico Raimundo Fontinele, responsável técnico pelo Laboratório de Fitoterapia do Instituto Agronômico de Pernambuco – IPA, órgão ligado à Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária de Pernambuco.

O laboratório produz cerca de 5 mil medicamentos/mês, distribuídos a uma rede de consumidores previamente cadastrados (atualmente, estuda-se uma maneira de ampliar o alcance, e assim possibilitar a comercialização direta). “Temos nove tipos de xaropes, cinco tinturas, três pomadas, três cápsulas e 15 tipos de chá”, enumera Fontinele. Chambá, hortelã graúda, vick/poejo e alho-do-mato são alguns dos xaropes, todos expectorantes; cavalinho, anador, quebra-pedra, transagem, cidreira e endro estão entre os chás, que amainam febres, dores de cabeça, gases, problemas estomacais e outras afecções digestivas; entre as pomadas, o confrei, cicatrizante e anti-inflamatório, é destaque; nas tinturas, rapo-de-raposa é indicada para fungos da pele; já entre as cápsulas, a hortelã miúda, antiparasitária, estomáquica e digestiva, é a mais cobiçada.

Interessante perceber que, embora a tecnologia aja para transformar 1/2kg de mastruz, 1 litro de álcool a 70%, 8kg de açúcar mascavo e 4,3l de água em um medicamento, o processo é artesanal. É preciso alguém para homogeneizar o que se tornará um xarope; para secar e triturar as folhas até que o pó do confrei vire o componente ideal para a pomada; ou mesmo para coletar na horta mantida na sede do laboratório, na qual se esconde, entre plantas mais viçosas, a vedete acanthospermum hispidum, o espinho-de-cigano.


Nos logradouros, há "mestres" da medicina popular que comercializam as ervas

Tido como melhor combatente da asma, o espinho-de-cigano pode ser facilmente confundido com a acanthospermum australe. “Quando recebemos das unidades do IPA no interior exemplares de acanthospermum, encaminhamos ao herbário para identificação”, situa o farmacêutico. “Nosso trabalho é nos certificar de que sigam para o laboratório apenas os exemplares da hispidum”, aponta a engenheira agrônoma Rita Pereira, curadora do herbário Dárdano de Andrade Lima, do IPA, o mais antigo da região Nordeste, com 90 mil exsicatas (exemplares de vegetais).

Um frasco de xarope de espinho-de-cigano é a concretude do poder balsâmico das plantas. Sua obtenção não engloba as encantações a que Pierre Verger aludiu em Ewé - o uso das plantas na sociedade iorubá, no entanto, de um certo modo, espelha o reconhecimento do homem ante a força vegetal. “O livro dele é um repositório de saber tradicional inestimável e uma colaboração das mais importantes ao campo da etnobotânica das religiões afro-brasileiras, área que tem recebido certa atenção, mas que continua pouco investigada”, opina Luís Nicolau Parés, professor de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e especialista na obra de Verger e na história das populações afro-brasileiras.

“Os saberes litúrgicos e terapêuticos das folhas, preservados nas práticas religiosas tradicionais africanas e afro-brasileiras, são valorizados pela sua potencial eficácia medicinal e pela contribuição a um discurso ecológico de defesa da natureza, além de uma relação de troca harmoniosa com o meio ambiente”, evidencia Parés, a quem o “devagar na elaboração e a demora na difusão pública” do livro (resultado de 40 anos de pesquisas) demonstra o apreço do autor e seu respeito à ancestralidade. “É uma expressão do valor que Verger conferia a esse tipo de saber e conhecimento, pois, na cultura do candomblé, aquele que é mais velho ou mais importante vem sempre no último lugar”, vaticina. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.
ROBERTA GUIMARÃES, fotógrafa.

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