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Coleção que remonta às brincadeiras de infância

Arquiteto Carlos Augusto Lira apresenta parte do seu acervo de arte popular em exposição composta de objetos religiosos, utilitários e eróticos

TEXTO Mariana Oliveira

01 de Julho de 2014

Carlos Augusto Lira

Carlos Augusto Lira

Foto Emiliano Dantas

Numa tarde de sexta-feira, no início de junho, o arquiteto Carlos Augusto Lira abriu seu galpão, no Bairro do Cordeiro, para apresentar à Continente parte de sua coleção, garimpada há mais de 40 anos, que está sendo apresentada ao público, desde o último dia 18, na exposição A lírica de Carlos Augusto Lira, em cartaz até 27 de julho, no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe). Ao entrarmos, ele adiantou-se: “Achei que o espaço comportaria mais peças, mas me enganei. Ainda tenho muita coisa na minha casa e no meu escritório”.

Sua satisfação em exibir parte de sua coleção se anuncia no primeiro passo dentro do galpão: “Está vendo essas sereias aqui? Vão ser levadas lá para o Museu do Estado de Pernambuco”. Logo, iniciamos um espécie de tour pelos corredores, num momento de apresentação da coleção. Há de tudo um pouco: uma área dedicada a peças utilitárias, outra, a brinquedos populares, artigos indígenas. Há ainda objetos reunidos em função de sua origem: Alagoas, Maranhão, Minas Gerais, África. A cada peça, uma história para contar, uma lembrança do momento da aquisição, das características e da vida do artista em questão. Ele não esconde a paixão e a ligação sentimental que tem com esse universo.

O espaço ainda está em fase de estruturação, pois só começou a receber o acervo em novembro do ano passado. Antes disso, as peças estavam armazenadas em contêiners. “Como não tinha mais espaço físico para guardá-las, tive que fazer uso deles. Mas essa nunca foi uma solução ideal. Eu mesmo me esquecia daquilo que estava guardado há tanto tempo, sem falar que algumas obras terminaram sendo danificadas. Tive que restaurá-las”, explica o colecionador, justificando a necessidade de encontrar um lugar para sua coleção.

Durante nossa conversa, seu telefone tocou várias vezes. Algumas ligações eram de “olheiros” conhecidos, entrando em contato para lhe oferecer uma peça. “Muita gente já me conhece e sabe daquilo que posso gostar. No universo da arte popular, já se tornou recorrente afirmar ‘Só quem vai gostar disso é Carlos Augusto Lira’”, explica o arquiteto, cuja última peça adquirida foi uma escultura do pernambucano João do Gado, em abril, através da ligação de um desses conhecidos. A obra está na mostra.

Sua vasta coleção só passou a ser catalogada em 2011 e segue em processo, agora, com boa parte alocada no galpão. Essa organização é fundamental para dar segmento aos projetos do arquiteto, que, além da exposição e do catálogo bilíngue (português e inglês), concebido pela designer Gisela Abad, com textos curatoriais da museóloga e antropóloga Ciema Melo –, já tem um livro aprovado pela Lei Rouanet (em fase de capitação) sobre o seu acervo de arte popular brasileira. Carlos Augusto também pretende viabilizar a criação de um instituto que possa expor permanentemente a coleção.


Peças de João Alagoas, Zé do Chalé (Sergipe) e Manoel da Marinheira (Juazeiros do Norte). Fotos: Paula Villocq/Divulgação

REFERÊNCIAS
Sua aproximação com a arte popular se deu ainda cedo. Na infância, não havia os brinquedos tecnológicos de hoje, e ele, que era um temporão, terminava entrando nas brincadeiras de suas irmãs mais velhas, com os utensílios de barro. Anos depois, já arquiteto, um de seus clientes lhe presenteou com um jogo de feijoada utilitário, produzido por artesãos de Tracunhaém. Encantado, decidiu rumar para o município a fim de comprar mais artigos. Começava, assim, seu interesse pela área, ampliado com a leitura do clássico Reinado da Lua – escultores populares do Nordeste, de Sílvia Coimbra, Flávia Martins e Maria Letícia Duarte; e com o início do trabalho junto a Janete Costa, em 1966, arquiteta que se diferenciou ao valorizar a arte popular nas ambientações que produzia.

Nesse período, envolveu-se num projeto em Teresina (PI) e passou um tempo por lá, tendo contato direto com artistas populares piauienses – a exemplo de Desinho e Expedito – e iniciando sua coleção de ex-votos, no Cruzeiro da Avenida Frei Serafim. Carlos Augusto conta que o local é um importante ponto de pagamento de promessas da cidade e que lá eram deixados diversos ex-votos: “Os primeiros de minha coleção, eu peguei ali”, confessa. Depois, rumou para Minas Gerais, onde também encontrou exemplares ímpares para sua coleção. Nessas andanças, fez amizades e, com elas, surgiram os “garimpeiros” que hoje lhe telefonam a qualquer hora para apresentar e indicar aquisições.

O arquiteto tem um olhar apurado e criterioso para diferenciar o artesanato da mera produção serial, padronizada, escolhendo peças que possuem cunho artístico. Essa paixão ele leva para os seus projetos arquitetônicos – assim como já fez Janete Costa –, inserindo elementos da arte popular em harmonia com peças modernas e contemporâneas. “Sei que muitos colegas de profissão não gostam e não utilizam elementos da cultura popular em seus trabalhos. Acho que uma peça de arte popular pode ser muito mais sofisticada e elegante que uma de arte contemporânea”, compara.

Porém, ele não nega que o preconceito com a área vem diminuindo. Quando iniciou a formação do seu acervo, a situação desses artistas era bem mais difícil, a maioria vivia precariamente. Com o passar dos anos, mais pessoas começaram a valorizar essa produção, fazendo com que os artistas lograssem melhor qualidade de vida. “Alguns deles são considerados mestres, patrimônios vivos, e recebem uma ajuda do governo. Isso é importante”, destaca.

O sucesso de eventos como a Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte) – que este ano acontece entre 2 e 12 de julho, e tem como tema o mamulengo – também ajuda a destacar e valorizar os trabalhos de artistas populares. Há oito anos, Carlos Augusto Lira é curador do Salão da Arte Popular que ocorre dentro da Feira, além de cuidar do projeto cenográfico e do leiaute do evento, junto com a equipe de profissionais de seu escritório. Segundo ele, apesar de todos esses avanços, muitos mestres precisam dedicar-se a um produção mais comercial que lhes garanta o sustento, pois a venda das peças artísticas nem sempre é fácil.


Peças de Zé Caboclo, Zé Rodrigues, Manoel Eudócio, Zé Pituca e Mestre Cunha estão no acervo do arquiteto. Foto: Paula Villocq/Divulgação

A MOSTRA
A exposição A lírica de Carlos Augusto Lira é uma oportunidade de conhecer uma substancial coleção de arte popular do Brasil. “Usualmente, empresto peças minhas para exposições, mas essa é a primeira vez que mostro parte do conjunto de minhas obras”, diz o colecionador, que foi o próprio curador da mostra, composta por pouco mais de duas mil obras de arte popular e objetos utilitários. O foco são peças feitas por artistas de todos os estados do Nordeste, com ênfase na produção cultural pernambucana. Os jardins do Mepe estão tomados por esculturas de grandes proporções, representando bichos e figuras antropomorfas, e bancos talhados em madeira com iluminação especial. A área aberta abriga também as ações de reciclagem e grafitagem.

No andar térreo do anexo do museu foi montado um cruzeiro (do século 19), ladeado por 1.500 ex-votos, uma coleção de imagens de São Sebastião e outra de oratórios. Há ainda um espaço dedicado à arte sacra popular do Piauí e de Pernambuco. Num contraponto a esse espaço mais religioso, o arquiteto ambientou peças de arte popular erótica. “Fiquei na dúvida, se deveria expor aquelas mais pesadas. Mas todo mundo me disse que eu expusesse”, afirma.

No andar de cima, o trajeto é dividido por estados, do Maranhão à Bahia. Há peças de Véio (Sergipe), Antônio de Dedé e Fernando da Ilha do Ferro (Alagoas), Cornélio (Piauí), Tota (Paraíba), Manoel Graciano (Ceará), Aurelino e Louco (Bahia). A área dedicada a Pernambuco reúne nomes clássicos, como os de Vitalino, Nhô Cabloco, Galdino, Antônia Leão, Severina Batista, Benedito, Bajado, Nuca, Família Vieira, Ana das Carrancas, Manuel Eudócio, além dos mestres atuais, como Cunha, José Abias, Roberto Vital, José Bezerra e Luis Benício.

Nas paredes do Mepe, foram dispostas frases do arquiteto comentando sua coleção. Numa delas, ele se pergunta sobre seu maior prazer. E responde: “Mostrar. Dividir com os outros essa beleza que eu acumulei e constatar que outras pessoas também admiram os homens e mulheres que estão por detrás de cada uma dessas peças. Esses objetos não são coisas: são prolongamentos dos artífices, pelomenos eu penso assim”. 

MARIANA OLIVEIRA, editora-assistente da revista Continente.

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