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A Copa do Mundo na Era do Rádio

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Julho de 2014

Imagem Janio Santos

Meu pai foi o dono do primeiro rádio em Saboeiro, o sertão onde eu nasci. Um acontecimento histórico, merecia registro na câmara municipal da cidade. Para quê? Mesmo sendo um dos primeiros povoamentos do Ceará, território dos Inhamuns e passagem do Rio Jaguaribe – o maior rio seco do mundo, isso mesmo, um rio que só corre no período das chuvas –, Saboeiro significa bem pouco. Ostenta sem orgulho um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano, e até inventaram um blog para amenizar o esquecimento em que vive: Saboeiro existe. Há dois anos, eu visitei a cidade e posso jurar que existe mesmo. Alguns casarões centenários continuam de pé, mas tive notícia de que nada sobrou de uma casa do Visconde de Icó, no Monte do Carmo, com mais de 100 portas e janelas, e de que também ruiu a Casa do Monte Alverne, com pedestais de mármore e estátuas representando as quatro estações do ano. Os mármores foram trazidos de Carrara, na Itália, ao porto do Recife. A lenda dessa carga preciosa, atravessando léguas de terra em carros de bois, até chegar ao sertão dos Inhamuns, não sobreviveu. Creio que o rádio do meu pai é um dos responsáveis por esse esquecimento.

Tratava-se de um rádio Philips alimentado por bateria de carro, desses que hoje enfeitam bares e apartamentos. Meu pai comprou-o em 1950, cinco anos após o término da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo estabelecia novas fronteiras e as populações abandonavam o campo em busca das cidades. Não foi diferente no Brasil, nem no sertão dos Inhamuns. Na época, nossa geografia ainda era rural, com 80% das pessoas vivendo em sítios e fazendas. Hoje, as mais novas pesquisas apontam para um êxodo alarmante: apenas 15% continuam no campo. Em estados como o Rio de Janeiro, a zona rural nem existe mais. Ninguém se escandalize quando afirmo que o sertão virou periferia de cidade.

As vozes do mundo chegavam até nós, ao silêncio habitado pelo canto das juritis, seriemas e patativas. Desde a boca da noite se ligava o rádio para ouvir cantorias de violeiros, noticiários e novelas. As pessoas sentavam nas mesmas cadeiras de couro e em círculo, não para contar histórias ou relatar acontecimentos, como faziam antes. Caladas, sem compreender direito de onde vinham aquelas vozes estranhas, sem atinar com a mágica que as comprimia, humilhadas pela técnica, elas baixavam a cabeça e escutavam. Em todos os povos, há marcos de ruptura entre o tempo mítico e o tempo da ciência. Meu pai deu um tiro de misericórdia na sociedade arcaica de Saboeiro, com seu rádio histérico e falante, incompreensível para os que ainda usavam a prosódia seiscentista portuguesa. Foi um ingresso a fórceps na pós-modernidade. Homens e mulheres que sempre imaginaram os trovões serem produzidos por São Pedro, percutindo latas no céu, se deparavam com o progresso.

Escutamos a transmissão dos jogos da Copa de 1958 no rádio. Nesse tempo, morávamos no Crato. Lembro bem pouco da festa. Com certeza soltaram fogos, devo ter corrido para a rua, os raros proprietários de carros desfilaram pela cidade, o padre agradeceu a Deus a conquista do título, os homens repetiram os lances emocionantes das partidas, durante as conversas noturnas na Praça Siqueira Campos. Mamãe, que jamais assistira a uma partida de futebol, acendia velas para Nossa Senhora Aparecida e rezava, sem ouvir um lance da transmissão. Quando desenvolvi humor e capacidade de pensar, imaginava as brigas dos santos no céu católico, indecisos a que rogos atender. Os italianos levavam vantagem, a Itália era o país com mais santos canonizados e, de quebra, tinha um papa. E os brasileiros, que nem beatos possuíam? A não ser que se valessem do Beato Zé Lourenço ou do Padrinho Cícero de Juazeiro, mesmo excomungado.

Em 1962, eu ganhara a Aparecida de louça, presente de uma prima devota, na minha primeira comunhão. Antes de qualquer jogo, mamãe apanhava o terço para rezar e punha a santa a cavalo no rádio, entronizada, esmagando com os pés negros os rivais de campo. Vez por outra a padroeira escapava de cair no chão, quando o pai exaltado dava murros na mesinha do aparelho, por qualquer gol perdido. Heroica, com o currículo de quem foi pescada numa rede e sobreviveu a adversidades bem piores, a padroeira parecia cimentada na madeira do rádio, resistindo ao delírio da torcida. Lamentavelmente, a companheira mais fiel durante as partidas, que nós agarrávamos na vibração dos gols, pulando dentro de casa e saindo para o meio da rua com ela nas mãos, foi removida da tribuna de honra, o cocuruto do rádio Philips. A prima santarrona que me dera o presente, queixou-se à mamãe de que aquilo era um sacrilégio, uma profanação. Sempre amedrontada com o inferno, a partir desse dia mamãe só permitiu que a Aparecida assistisse aos jogos de longe, silenciosa e indiferente ao clamor fanático.

1970. Já existia televisão no Crato, algumas coloridas. Mesmo assim, ligavam o rádio, exilado num quartinho sem importância. Instalaram a máquina poderosa na sala de visitas, ocupando o lugar que pertencera ao rádio e ao Coração de Jesus. Os dois haviam se tornado decrépitos, frente ao invento miraculoso. Meu pai insistia em ouvir a transmissão do rádio, acostumara-se à velocidade das vozes, ao tom vibrante, só acreditava nelas. Corria do quarto para a sala, da sala para o quarto, via e ouvia, ouvia e via. O irmão mais velho não atendeu o desejo do pai: tirar o som da TV, deixar apenas as imagens e escutar o som do rádio. Voto vencido. O pai, nessa época, também perdera o seu poder. E Nossa Senhora Aparecida? Trancada num guarda-roupa de mamãe, em meio aos santos menores, cochilava indiferente ao jogo. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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