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Duas cenas pastoris

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Junho de 2014

Imagem Karina Freitas

PRIMEIRA CENA
O rapaz que viaja à minha frente no trem não olha com bons olhos o senhor escrevendo numa caderneta. Veio de Potengi morar no Crato, hospedou-se na casa do sogro com a esposa e dois filhos, vai procurar trabalho em Juazeiro, na única profissão que aprendeu: a de vaqueiro. Não parece fácil. Boa parte dos rebanhos morreu em três anos de estiagem, agravando a decadência da agricultura e da pecuária. Se não encontrar emprego, volta a Potengi. Não, ele não bebe, em respeito aos pais da esposa, ambos evangélicos. Também não sai de casa à noite e não gosta de responder a perguntas. Nem o dinheiro da passagem de volta ele possui. Um real. O jeito será fazer o percurso a pé, 12 quilômetros. Nada pede ao escritor, a confissão de indigência fere seu orgulho. Recebe com dignidade os dois reais que o homem saca da carteira e, ao descer do vagão, não olha para trás.

As ranhuras nos vidros das janelas são propositais? Ninguém enxerga a plenitude da miséria em torno, o lixo descendo pelas encostas, restos de mato, poças d’água e riachos que no passado eram exuberantes, e agora são indefinidos como as pinturas de Monet velho e quase cego. Nos painéis das Ninféias, uma paisagem aquática com plantas, galhos, reflexos de árvores e nuvens. Aqui, as imagens da natureza destruída assombram o senhor de barba e cabelos grisalhos. Fez o mesmo percurso entre Juazeiro e Crato, há 46 anos. Um tempo grande, o bastante para ele também sofrer mudanças e cobrir-se com outras formas de lixo. Anota impressões no caderno e as frases lhe parecem falsas, vazias. Compara o lixo atirado pelos moradores nos barrancos aos rabiscos do caderno de notas.

Faz calor, os vagões do trem fechado não refrigeram bem. No passado, abriam-se as janelas. Escrever tornou-se um pesadelo. Quais os choques permanentes do escritor? A pergunta não é dele, Peter Brook formulou-a sobre o trabalho do ator, a propósito de Grotowski. O choque de se ver confrontado com desafios simples e irrefutáveis. O vaqueiro não se rende à miséria e luta por uma profissão em declínio, por seu lugar no mundo em ruínas. O choque de entrever suas próprias camuflagens, seus truques, seus clichês. O entulho das palavras no caderno de notas, as frases de efeito, o enfadonho exercício de criar a beleza sem verdade. O choque de sentir a imensidão dos seus recursos inexplorados. A cegueira não impediu que Monet pintasse as Ninféias, olhando mais para dentro do que para fora, alcançando a máxima depuração das cores. É possível a mesma experiência com as palavras? O choque de ser obrigado a se perguntar por que é um escritor. Por quê? Por quê? Por quê? O choque de ser obrigado a reconhecer que tais questões existem, que é hora de encará-las e querer encará-las. O choque de descobrir que escrever é uma arte à qual é necessário consagrar-se totalmente, de uma maneira monástica e absoluta. Felizmente, o trem chega ao destino. As pessoas descem vagarosas. O vaqueiro ficou duas estações atrás: duro, cruel contra si mesmo, exigindo um único papel no mundo, um modo de vida autêntico naquele lugar do planeta.

SEGUNDA CENA
É custoso enfiar o pé 43 na bota de borracha número 40. Mas é necessário para atravessar a lama e chegar ao Jardim. Dias de chuva continuada, riachos e grotas encharcaram a terra. A cada passo um atoleiro, o corpo se desequilibra, afunda, ameaça cair. “Você tem certeza de que dá para chegar?” “Chega fácil. Só hoje, fui e voltei duas vezes.” O lugar fica onde o Jardim se espalha, ganha profundidade e se presta ao banho. “A cheia veio nesse ponto?” “Choveu muito, graças a Deus.” O Jardim deságua no Carás, que deságua no Salgado, que deságua no Jaguaribe, e este no mar. É um dos rios da minha infância, onde eu nadava nos meses de férias. Tento alcançar o poço de d. Naninha Biliu, já que é impossível chegar ao remanso que pertenceu à minha avó.

As matas foram derrubadas e vendidas para as olarias. Cada 100 tijolos fabricados queimaram uma ingazeira, uma cajazeira, um angico. As casas se edificam sobre cemitérios de árvores. Erguem-se as paredes, abrem-se as janelas, o corpo se debruça num parapeito, o olhar busca lá fora, mas só enxerga o deserto. Não existem mais poços d’água cobertos de vegetação, parecendo cavernas. “Lembra que você gostava de se esconder neles?” “Lembro.” Agora as águas correm a céu aberto e, quando o sol bate, secam depressa. “O sol ficou mais quente, reparou?” “Reparei.” “E você quer tomar um banho pra matar a saudade?” “Não sei se a saudade se mata ou se ela mata a gente.” Meu filho Tomás me considera saudosista. Busco apenas compreender o presente.

Assis Gonçalves ri da conversa fiada, levanta a bermuda até as coxas, agora estamos os dois no meio da água, olhando a correnteza acima. “Ali é bom de mergulhar, não vai tomar banho?” “Não sei, dá trabalho tirar a roupa, descalçar as botas.” As águas passam ligeiras, lembro o rio de Heráclito. Há muito balseiro nas margens do Jardim, enganchado em arames, nas unhas de gato. Tudo o que não presta o rio foi deixando para trás. Assis Gonçalves me pergunta se a literatura serve para alguma coisa, ou se é apenas balseiro. Não quer ofender-me, é incapaz disso. Fala-me sobre o dia em que o genro pediu a mão de sua filha em casamento. Enquanto narra a história, enche d’água a concha das mãos e molha a cabeça, como se desejasse esfriá-la. Os gestos são precisos, teatrais, nenhuma energia se perde a cada movimento. Estamos cercados pelas águas. Meu avô morreu um pouco adiante e por bem pouco a enchente não carregou o seu corpo. Assis Gonçalves esfrega as nódoas dos braços, lava o rosto. Não perco nenhum dos seus gestos e gostaria de transformá-los em literatura. Como é difícil, constato. “Você não vai se banhar?”, insiste. “Não”, respondo. Quando era menino, passava o dia no rio. Nadar era o que eu mais sabia fazer. Agora, viciei-me em ver e pensar. Mas também sinto, sinto muito, bem mais do que quando me debatia com os braços e as pernas. Acho que a literatura é responsável por isso. Talvez. Para alguma coisa ela deve servir. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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