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A composição está em crise?

Artistas discutem sinais de esgotamento criativo na música popular brasileira e especulam caminhos para sua renovação

TEXTO Clarissa Macau

01 de Junho de 2014

Imagem Karina Freitas

"Estou cozinhando uma canção, mas não quero mostrar a ninguém, talvez alguém me diga, mostre, iguais a essa eu já fiz cem”, canta o carioca, radicado no Recife, Matheus Mota, na composição Na cozinha, do seu disco de estreia, Desenho. O que será “cozinhar” uma canção nos dias de hoje? A junção dos ingredientes letra, melodia e acompanhamento atravessou décadas, enfrentando e se adaptando a diferentes tecnologias e conceitos. O formato sempre variou entre a música mais elaborada, a exemplo da bossa nova; os ritmos alternativos – entusiasmo das vanguardas, como o Tropicalismo; e as composições feitas em série, sob estilos melódicos como brega, axé, funk e tecnobrega, que, não raro, repetem temas como amor e sexo. Distinções à parte, a ancoragem de todas essas canções continua a mesma: a tradição oral.

A composição da canção popular traduz sentimentos de um tempo. “Os conteúdos criados pela linguagem da canção são necessários para atender às demandas de diversos setores sociais e culturais do país. O artesanato massificado das criações mais populares não difere substancialmente daquelas de prestígio, tanto que, às vezes, algumas obras migram de um universo para o outro”, reflete o pesquisador da música popular e criador do Grupo Rumo, músico Luiz Tatit. “A reinterpretação que Maria Bethânia fez de É o amor, de Zezé de Camargo e Luciano, por exemplo, serviu para expor a beleza intrínseca da melodia dessa canção que, na versão original, só passava os desprestigiados clamores sertanejos”, lembra.

A difusão da canção é dependente da tecnologia vigente. Surgiu com a possibilidade de ser gravada, adaptando-se aos novos recursos, primeiramente mecânicos, depois elétricos e, agora, eletrônicos. Apesar disso, Tatit acredita que a maneira de compor continua a mesma, “a melodia é um modo de dizer parecido com a entoação da fala cotidiana, que induz temas para a letra. Há uma gramática natural de fusão entre melodia e letra que qualquer cancionista domina bem, sem precisar ter consciência do que faz”.

Na atualidade, sob a premissa do faça-você-mesmo com o auxílio da internet, todos os músicos dispõem de condições de gravação e lançamento de música no mercado, “em vez da nova estética, procura-se o especial, aquilo que só um artista é capaz de fazer, mesmo que seja dentro de um gênero bastante difundido”, opina Tatit.

Considerado uma revelação junto à sua banda, a Filarmônica de Pasárgada, com os álbuns O hábito da força (2013) e Rádio lixão (2014), o carioca Marcelo Segreto resgata e experimenta ritmos brasileiros: da bossa nova ao funk carioca. “Alguns gostam de experimentar mais com a linguagem, propondo obras ‘ousadas’ esteticamente. Outros são mais conservadores. Mas todos podem ter obras de qualidade. A música não é melhor apenas porque ela traz novidades”, atesta Segreto.

Matheus Mota sempre tenta fugir dos esquemas convencionais de composição. Às vésperas de lançar seu segundo álbum, Almejão, jingles publicitários e trilhas de filmes foram incorporados ao seu modo de compor. Na sua obra, uma miscelânea de assuntos é descrita: a escola antiga que fechou ou relacionamentos amorosos sutilmente conturbados, entoados na voz brincalhona e extremamente oral de Matheus. “A melodia é o caminho para a letra. Mas nem sempre é coerente. Muitos gostam de escrever coisas alegres em melodias tristes e vice-versa. Essa contradição me interessa”, diz. Na composição Profissional, é possível observar isso. Com uma música animada, Matheus nos conta um caso de exploração no trabalho.

Parceiro de Mota no projeto Dois Sons (promovido pela revista Outros Críticos, em abril deste ano), com quem escreveu duas canções inéditas, Uma pessoa e Uh!, o pernambucano Juliano Holanda possui mais de 100 composições gravadas e dois álbuns solos, A arte de ser invisível e Para saber ser nuvem de cimento quando o céu for de concreto. Para ele, “uma boa letra deve dizer da música, deve ser complementar e, ao mesmo tempo, expandir a percepção dela”. O ato de criar é urgente: “Tem uma música de Caetano Veloso, chamada Noite de hotel, que canta ‘e nunca o ato mero de compor uma canção, pra mim, foi tão desesperadamente necessário’. Uma ideia reveladora. Compor é um ato necessário para se ser. É estar vivo”

ESGOTAMENTO
Há quem diga, como polemizou Chico Buarque numa entrevista à Folha de S.Paulo, em 2004, que a canção tem dias contados. “A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo, só aprimorou a qualidade da sua música. Por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa. Como a música lírica foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como conhecemos, seja um fenômeno do século 20.”


Matheus Mota (dir.), Juliano Holanda (centro) e Benjamin Taubkin (dir.). Fotos: Divulgação

Matheus Mota não vê essa ideia negativamente: “Não sei quanto tempo esse modelo sobreviverá. Tenho a impressão de que os moldes melódicos e harmônicos atuais estão se esgotando, se é que já não se esgotaram, e a gente não percebeu. A reprodução de estilos musicais de outras épocas sempre existiu, mas é justamente com a capacidade de copiar, cortar e colar ideias, como numa edição de vídeo, que se produz a música contemporânea”.

O musicólogo José Ramos Tinhorão sempre comenta, tanto em livros quanto em entrevistas, que essa espécie de colagem é antiga, são plágios não assumidos. Na reportagem João Gilberto? É um bom malandro, da revista Cult nº 159, Tinhorão afirmou, por exemplo, que o cantor Cartola teria composto a clássica As rosas não falam (1973) baseado na melodia do jazz La Rosita (1959), de Coleman Hawkins e Ben Wester. “Pode ser um plágio involuntário, mas que ele ouviu isso, não há a menor dúvida”, respondeu ao jornalista Daniel Silveira.

Em 1998, o músico e compositor Tom Zé imprimiu, no encarte de seu disco Com defeito de fabricação, o manifesto Estética do plágio, que denunciava a necessidade clara de criar canções com o já inventado. Assim redigiu, com sua ironia de costume: “Terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a Era do Plagicombinador, processando-se uma entropia acelerada”.

Para Matheus, o plágio faz parte da canção popular. “O plágio sempre existiu em toda a história da música, porque ela sempre se referenciou nela mesma. Tom Zé se refere a isso como uma influência, apropriação de ideias já existentes. Mas o negativo é quando percebemos a preguiça e falta de criatividade de alguns em buscar combinações novas, preferindo se apropriar descaradamente de linhas feitas, sem critério ou contexto. Eu sinto falta da curiosidade em buscar sons e desenvolver a escuta tanto do músico quanto do ouvinte”, reflete.

O roqueiro Jean Nicholas admite já ter feito apropriações musicais. Revela que algumas linhas de baixo da faixa O amor é a porta de entrada pras outras drogas, do seu recente álbum Jean Nicholas e a bueiragem (2013), provavelmente já devem ter sido usadas em canções do estilo disco dos anos 1970. “É um lance inconsciente. Eu não penso ‘vou pegar isso aqui de tal música’. Faço e, quando escuto, lembra algo já tocado”. E acrescenta: “Assim como tem autores originais, porém insuportáveis, existem plagiadores geniais. Não acredito em crise no mundo da música, o que acontece é que hoje não temos mais um filtro e isso dificulta achar algo que preste no meio do lixo”.

O pianista e compositor Benjamim Taubkin, com seus mais de 30 anos de carreira, acredita que a canção não morreu, mas está em apuros, ao sucumbir ao apelo exacerbado do comércio. “As boas canções não chegam às pessoas. O seu veículo principal, o rádio, está corrompido pelo jabá, aceitando produtos ruins. Até a década de 1980, a média de músicas na programação de uma emissora era de 500 a mil. Hoje, não passa de pouco mais de 50. Antes, com os meios de massa a favor de uma cultura – falo também da TV, com os festivais da Record em 1967 –, todo mundo discutia o surgimento de um Chico Buarque da vida, e a chegada, ora bem-vinda, ora não, da guitarra elétrica no Brasil. Agora, não há mais o debate vivo de formação de pensamento que a canção é capaz de fazer.”


"A experiência cancional está maior, porque não depende de gravadoras", afirma Luiz Tatit. Foto: Divulgação

Para Tatit, a “maioria silenciosa” – aquela desinteressada por apreciações críticas ou estéticas – necessita de obras que tratem de seus sentimentos, ou suas celebrações concentradas em refrões dançantes. “O lugar desse mundo pop sempre existirá. Sua faixa de atuação não se confunde com a do universo experimental ou mais elaborado dos compositores formadores de opinião”, acredita.

Na opinião de Taubkin, escutar música de qualidade se tornou difícil, “são nichos, oásis espalhados pela internet. Os que vão atrás de uma música mais burilada, atualmente, são os próprios artistas, e a grande massa fica com o que lhe é oferecido de primeira, ou seja, muito pouco”. Em 2013, ele participou da gravação da faixa Altas madrugadas, do Arte de ser invisível, primeiro disco solo de Juliano Holanda. Membro da Orquestra Contemporânea de Olinda e adepto de uma MPB eclética, Holanda coloca em xeque a relevância da mídia tradicional. “Nós não estamos nos mass media. Mas deveríamos estar?”

Holanda rebate a ideia da morte do gênero. “Qualquer um que tenha interesse razoável pelo que está acontecendo atualmente na música brasileira percebe que, ao contrário, há uma grande valorização. Há boas canções surgindo o tempo todo. Mas, às vezes, parece que perdemos a capacidade de nos emocionar. O resultado disso é que quase tudo tem se resumido a refrão e ritmo, por uma despreocupação com o significado das coisas. Não são mais necessárias grandes ideias e arranjos elaborados, tudo vai ser consumido e descartado.”

Luiz Tatit atesta que a existência dos produtos de massa não significa o fim da diversidade musical. “Hoje, a experiência cancional é maior, porque não depende de gravadoras, nem de uma instância soberana de veiculação como o rádio. A relação dos novos compositores é diretamente com a internet e as redes sociais.”

Silvia Tape lançou seu primeiro EP virtualmente, e sempre alimenta com novas composições sua rede social de música no Soundcloud. Ela costuma tocar em bares de São Paulo, dividindo a assinatura da produção de seu trabalho com o músico Pipo Pegoraro. “Observar os recursos possíveis para criar no computador, por exemplo, abre um cenário de músicas produzidas com formas e timbres diferentes do que se propunha antigamente, além de variadas intenções. Isso pode tanto enriquecer uma canção quanto torná-la vazia”, opina Tape. Para ela, “se as pessoas estão alienadas, existem canções para elas, se amam ou querem protestar, também; a canção acompanha a humanidade”.

DA PERIFERIA
“Quando surgem tecnologias ou discussões na sociedade, isso fará parte do processo criativo do compositor”, diz Marcelo Segreto, da banda Filarmônica de Pasárgada. “O que me inspira é criar uma canção que tenha embate com a realidade, não importando o tema. Pode ser o amor, a vida na cidade, uma situação engraçada, crítica social. Nosso desejo é que nossas canções estabeleçam comunicação com o ouvinte, para a música se tornar viva.”

Influenciado pela música erudita contemporânea, Segreto faz comparação entre esse estilo e ritmos mais populares, como o rock’n’roll e o funk: “Ambas trabalham com sonoridades parecidas, abandonando as tonalidades, a harmonia de acordes, para trabalhar com os timbres e as texturas”.

O axé, o funk, o tecnobrega e o pagode são mais rítmicos, oriundos das periferias das cidades brasileiras. Sobre eles, o cantor Tom Zé observou, no documentário Palavra encantada: “Antigamente, a canção era consumida pelo auditivo e cognitivo, hoje é consumida por partes do corpo. Como aparece uma canção que não toca na alma, mas na carne?”.

O pianista Taubkin se preocupa com a “invasão” dessas músicas como carro-chefe do gosto popular. “As pessoas estão perdendo o ouvido, quase não reconhecem quando alguém está desafinado. Tem baterista que toca sem ritmo, guitarrista com acorde errado e vocalista desafinado, e a máquina de gravação conserta tudo! Se não fosse importante consertar esses detalhes, não precisava acertar o ritmo, nem acertar a afinação. Estão aniquilando a ideia de criação e radicalizando o conceito de produto. Um tecnobrega está há milhões de quilômetros longe da qualidade de um samba de Cartola.”

Mas, seja qual for a origem de uma canção, sempre há a chance do nascimento de uma obra de arte. É o que defende Luiz Tatit. “De repente, ainda é possível o surgimento de uma canção admirável no campo da produção em série, ao povão. Caso de músicas como Dia de domingo, de Michael Sullivan e Paulo Massadas, interpretada por Tim Maia e Gal Costa, e É o amor, dos sertanejos Zezé de Camargo e Luciano. Lembremos: quase todo o repertório de Lupicínio Rodrigues, compositor de uma música chamada ‘de piranha’, considerado cafona nos anos 1950, hoje é cult.”

Perguntado sobre o futuro da canção, Juliano Holanda diz ser problemático, na arte, pensar em algo como “antigo” e “novo”, pois são conceitos cambiáveis. “Como tudo volta, talvez estejamos em breve ouvindo trupes indígenas. A música feita hoje tem essa coisa tribal. Ao longo da história, alguns horizontes foram alargados. Muito dos experimentos da música erudita mais contemporânea foram assimilados no meio popular, e vice-versa. Vem tudo em degradê, com raros casos de ruptura total. As canções estão aí, as pessoas é que precisam acordar e ser acordadas do seu transe e pular o muro. E, aos compositores, cabe a responsabilidade de permanecer na estrada.” 

CLARISSA MACAU, jornalista.

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