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O mito do trabalho

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Maio de 2014

Colagem Karina Freitas

O comentário de Dostoiévski está em Recordações da casa dos mortos, um livro de memórias do período em que esteve preso na Sibéria. Condenado por atividades revolucionárias e ligações com um grupo literário russo – O Círculo Petrashevsky –, que fora banido pelo Tzar Nicolau I, o escritor recebeu indulto quando se encontrava em frente ao pelotão de fuzilamento. A pena de morte foi trocada por quatro anos de trabalhos forçados e seis de serviço militar na fronteira da Mongólia. O sofrimento do cárcere serviu para que aprofundasse suas investigações sobre a alma e a psique, e estudasse os tipos humanos que seriam reproduzidos em romances como Crime e castigo, Os irmãos Karamazov e Os possessos.

É quase certo que me escaparão detalhes das questões levantadas por Dostoiévski, como também é certo que acrescentarei pontos de vista que se tornaram meus, de tanto pensar sobre o assunto ao longo dos anos. Dizem que a memória histórica é capaz de narrar os fatos sem alterá-los – o que considero improvável –, e que a memória literária se apropria dos acontecimentos, reinventando-os de acordo com o gosto e a necessidade do narrador. Na Sibéria, os prisioneiros se encaminhavam a uma progressiva anulação da individualidade, até serem completamente destruídos com o passar dos anos. Num sistema carcerário semelhante ao do Brasil, ninguém se recuperava para um retorno à sociedade. Criminosos hediondos conviviam com homens simples, presos por motivos banais ou políticos.

Dostoiévski observou que, apesar de humilhações e castigos, isolamento e privações, muitos prisioneiros sobreviviam graças ao trabalho: ao que eram forçados a realizar e ao que faziam de maneira clandestina, durante a noite, nos pavilhões frios e insalubres em que tinham sido confinados. Mesmo com o desconforto e a carência de recursos materiais, burlavam a guarda e se dedicavam aos seus antigos misteres de artesãos livres. Na Casa dos Mortos, existiam gatunos, batedores de carteira, vagabundos, vigaristas, assassinos ocasionais, matadores de profissão e gente que não se sabia por que estava ali. Havia homens das mais variadas profissões – sapateiros, remendões, ferreiros, marceneiros, ourives, escribas –, que buscavam dar continuidade ao que faziam lá fora no mundo dos vivos, por necessidade econômica ou por outras necessidades. Mesmo quando consertavam ou erguiam as muralhas do presídio, alguns se empenhavam nas tarefas, buscando alcançar o melhor resultado. Dostoiévski sugere que a crença no trabalho e o esmero em realizá-lo bem mantinham esses homens vivos.

Quando decidiam castigar algum desses infelizes, levá-lo à doença, à morte ou ao suicídio, ocupavam seus dias com tarefas inúteis e absurdas. Mandavam, por exemplo, que carregasse água de um poço para outro e, no dia seguinte, repetisse a mesma tarefa, ao contrário. Assim, dias a fio. Igual ao Sísifo grego, condenado no Hades a rolar uma grande pedra até o topo de uma colina, que, quando atingia o ponto mais alto, rolava novamente para baixo. O esforço de carregar água se tornava a maior de todas as punições, pela falta absoluta de sentido. Os condenados enlouqueciam ou se matavam. Quando Albert Camus escreveu sobre o suicídio – um universo privado de ilusões ou de luzes –, chamou o ensaio de O mito de Sísifo.

Todos os heróis de Dostoiévski se questionam sobre o sentido da vida, escreve Camus. Nisto são modernos: não temem o ridículo. O que distingue a sensibilidade moderna da sensibilidade clássica é que esta se nutre de problemas morais e aquela de problemas metafísicos. Nos romances de Dostoiévski, a questão é colocada com tal intensidade, que só admite soluções extremas. A existência é enganosa ou é eterna. O trabalho que supostamente dá sentido à existência seria enganoso? Ou seria um castigo eterno, moral, como a maldição de Iahweh Deus?

“... Maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos. Com o suor do teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado”.

Segundo o relato da Casa dos Mortos, há uma lógica existencial que sustenta esses homens que erguem ou consertam muralhas e paliçadas, mesmo que para se encarcerarem dentro delas. Por mais doloroso que pareça, eles podem esmerar-se na lapidação de pedras, no preparo de argamassas, no corte de madeiras, e até esculpirem detalhes, enfeitando a prisão. Porém é inteiramente absurdo carregar água de um poço cheio para outro poço igualmente cheio. O trabalho careceria de uma justificativa lógica, que cada um pode engendrar de acordo com sua necessidade e crença. Sísifo poderia encontrar um sentido na sua condenação. Os monges tibetanos gastam os dias criando mandalas de areia, que desfazem logo após terminá-las. Creem na eternidade impregnando o ato de criação, e que o exercício de fazer os liberta. Por isso eles não se preocupam com a sobrevivência do que criam.

“Trabalho é liberdade”, escreveu Mira Alfassa, conhecida por A Mãe, mística do Ashram de Sri Aurobindo, em Auroville, na Índia. Em que consiste a liberdade do trabalho? Criar pode significar tornar-se igual a Deus, apoderar-se do conhecimento. Ou um modo de romper com a ordem aprisionadora do mundo, estabelecendo uma desordem, que é o estado embrionário de uma nova criação. Muitas pessoas costumam pôr no trabalho a mesma fé que têm na imortalidade. E, segundo Dostoiévski, a fé na imortalidade é necessária para o ser humano (que sem ela acaba por se matar) porque se trata do estado normal da humanidade. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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