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Arquitetura: Desprestígio do projeto moderno

Edificações construídas no Recife nos anos 1950-1970, a partir dos pressupostos do movimento, foram destruídas ou estão mal preservadas, diminuídas na memória da cidade

TEXTO LUCIANA VERAS
FOTOS TIAGO LUBAMBO

01 de Maio de 2014

De 1955, projeto do Edifício Caetés, de Acácio Gil Borsoi, faz parte da paisagem do centro da cidade

De 1955, projeto do Edifício Caetés, de Acácio Gil Borsoi, faz parte da paisagem do centro da cidade

Foto Tiago Lubambo

Em 2009, o artista visual Jonathas de Andrade, alagoano radicado há uma década em Pernambuco, percebeu que uma casa no Bairro da Torre, abandonada e quase toda em ruínas, havia se tornado uma espécie de ponto de encontro da vizinhança. Não era uma construção qualquer, ele constatou; havia nela inconfundíveis traços do Modernismo, corrente arquitetônica que ditou o desenho urbano de boa parte do mundo no século 20 e que, no Recife, difundiu-se com maior força e escala nos anos 1950. Em Projeto de abertura de uma casa, como convém, obra integrante da exposição Ressaca tropical, Jonathas reproduziu em uma maquete a residência onde ele e os amigos chegaram a organizar um café da manhã para congregar os visitantes que lá iam em busca de algum azulejo ou outro suvenir. Acrescentou fotografias da casa destroçada e fez surgir uma obra de arte a partir do ocaso de uma arquitetura que existe no Recife, bem como em outras metrópoles brasileiras.

O cerne da questão, aquilo que capturou o olhar de Jonathas e que preocupa diversos pesquisadores e professores, é a condição em que tal patrimônio se encontra. Casas e edifícios modernistas já não existem mais ou foram adulterados por completo. “Na capital paulista, a paisagem do entorno das casas modernistas projetadas por Gregori Warchavchik está ameaçada pela construção de um edifício-torre”, alertou o escritor manauara Milton Hatoum, em artigo publicado em dezembro de 2013. “Na verdade, sentimos horror à memória urbana. Casas e edifícios históricos de municípios e capitais brasileiros foram e estão sendo desfigurados ou destruídos; somos impotentes diante da avidez de algumas construtoras, que demolem a arquitetura histórica e erguem torres de 40 andares”, lamentou o autor de Dois irmãos (2000), que é arquiteto de formação.


Edifício Santo Antônio tem fachada ventilada em concreto pré-fabricado e explora formas curvas em seu interior e na cobertura

“O problema é a noção de que o patrimônio moderno não é novo suficientemente para ser encarado como representante da contemporaneidade e não é antigo o bastante para ser preservado. Entre alguns setores que estudam e trabalham com a preservação do patrimônio cultural, isso persiste e leva ao reconhecimento e à salvaguarda só de algumas obras mais notáveis. Mas a cidade não precisa só da conservação dos marcos. É interessante a preservação de áreas que possuem uma certa unidade em um determinado período, tanto de um passado mais longínquo como também de uma época mais recente”, observa Luiz Amorim, professor do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco e filho do arquiteto português Delfim Amorim, um dos expoentes do modernismo arquitetônico no Brasil.


Edifício Santo Antônio

Luiz Amorim é autor de Obituário arquitetônico – Pernambuco modernista (2007), em que mapeia dezenas de construções “falecidas” e substituídas por exemplares de novas linguagens arquitetônicas. “Seria esse o ciclo vital da arquitetura, ou das cidades, como lugar por excelência da arquitetura em suas formas edilícias, urbanas e paisagísticas? Transmutar-se continuamente, para atender aos desejos dos homens? Se sim, por que lamentar os desaparecidos, se os nascituros abrigarão novos usos, novos sujeitos?”, indaga em Os sentidos da morte e da vida na arquitetura, um dos capítulos do livro, atualmente esgotado. A proteção da cultura arquitetônica, na visão de Amorim, permitiria que o Recife revelasse “as diversas temporalidades vividas, impregnadas na matéria própria da arquitetura”; tornar essa mesma cultura imortal é “criar elos no espaço no tempo, e é o elo moderno que agora precisa ser devidamente constituído”.



Edifício Santo Antônio

O que torna a arquitetura moderna especial? “Nos preceitos construtivos, as novas formulações de maneira de construir e, especialmente, a revolução da técnica do concreto armado. Como o esqueleto estrutural poderia ser aparente, a fachada tendia a ser mais livre, mais vazada, com mais abertura. Quando essa visão ficou instituída, estabeleceu-se um campo enorme para o desenvolvimento da arquitetura, com novas possibilidades. O vidro passou a ser desejado, pois permitia muita luz dentro. Aqui, com o clima tropical, houve a ideia de criar varandas grandes para separar o vidro do chão, com um brise-soleil ou um cobogó, por exemplo”, pontua Marco Antônio Borsoi, filho de Acácio Gil Borsoi, sinônimo de arquitetura moderna no Brasil e principalmente no Nordeste, que perseguia uma integração espontânea entre o edifício, seus habitantes e seus arredores. Ao lado de Amorim, foi um dos responsáveis pela criação de um léxico arquitetônico que disseminava a nova ordem modernista preconizada, no Brasil, por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

INFLUÊNCIA MUNDIAL
“Oscar Niemeyer e Lúcio Costa influenciaram a arquitetura contemporânea do mundo inteiro”, resume o arquiteto Wandenkolk Tinoco, mais de cinco décadas de profissão, aluno de Delfim Amorim e Acácio Gil Borsoi na Escola de Belas Artes e, depois, ele mesmo professor da UFPE por 30 anos. “Niemeyer explorava, de forma magistral, a submissão do concreto armado. Com suas linhas poéticas, sinuosas e sensuais, criou uma arquitetura que era uma poesia. Mas Borsoi e Amorim também eram mestres. Borsoi tinha uma capacidade de articular os espaços e de dar fluidez a cada ambiente de uma casa. Sua arquitetura era uma sinfonia. Já Amorim se destacava pela composição volumétrica da sua obra e ainda era um excelente construtor, que entendia da construção como ninguém”, acrescenta Tinoco, que é enfático ao aludir à importância do movimento ao qual até hoje se filia.


No Edifício Bragança, vidro é elemento recorrente por permitir
melhor iluminação natural

“Não é e nunca foi modismo, e, sim, uma necessidade funcional. A qualidade da arquitetura está diretamente ligada às dificuldades de enfrentá-la. Os obstáculos do terreno, da topografia, da vegetação são inspiradores do espaço arquitetônico e o modernismo acompanhou a evolução dos materiais e da tecnologia e mudou a fisionomia da arquitetura. Hoje, ela é moderna para ser contemporânea”, defende.

Ele define seu estilo como “nordestinismo”, ou seja, a aplicação das diretrizes modernistas em respeito ao clima, aos costumes e às tradições do povo nordestino, de modo a propiciar o conforto ambiental em um clima tropical. Não por acaso, o Edifício Villa Mariana, no Parnamirim, projeto seu de 1976, hoje um Imóvel Especial de Preservação (IEP), na classificação da Prefeitura do Recife, é um perfeito exemplar do “edifício-quintal”. “A ideia era trazer para dentro da casa um pouco da natureza, levar os jardins ou mesmo os quintais para os edifícios, propondo uma arquitetura de vanguarda que buscasse o conforto e o abrigo do homem, não a ostentação. Ao contrário do ecletismo, que era uma falta de estilo, ou mesmo do que se convencionou chamar de pós-modernismo, para mim, uma falta de competência arquitetônica, o modernismo tinha personalidade e adaptabilidade”, comenta Tinoco.


O Villa Mariana é um perfeito exemplar do “edifício-quintal”,
que pretende trazer para dentro de casa o contato com a natureza

É essa personalidade que sobressai, até hoje, nas construções de Luiz Nunes (o primeiro modernista em Pernambuco, contemporâneo de Lúcio Costa no Rio de Janeiro), como no prédio onde hoje funciona o Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, seção Pernambuco, no Derby, datado de 1935; na obra de Amorim e Borsoi, cujos edifícios erigidos, de 1950 até hoje, definem a paisagem urbana recifense, a exemplo do Caetés (1955), Pirapama (1956), Acaiaca (1957), Santo Antônio (1960) e Barão de Rio Branco (1969); e no que sobrou dos projetos de Mario Russo, um italiano que durante sete anos atuou na capital pernambucana, onde fez o plano urbanístico do campus da UFPE, outros prédios na cidade universitária e várias residências.

Uma dessas casas, na Avenida 17 de Agosto, nº 675, em Casa Forte, é emblemática. Erguida para abrigar a família de um médico, permaneceu inalterada até 1997, quando, adquirida por um banco, sofreu um processo que corrompeu e, por fim, aniquilou sua essência. “Embora fosse uma arquitetura mais dura do que a de Luiz Nunes, por exemplo, Mário Russo trazia para a escala residencial uma modernidade ímpar. Ainda criança, eu já achava essa casa impactante, diferente das outras. O que me leva a constatar que, na maioria das cidades onde se tem um patrimônio de valor, os arquitetos estão trabalhando muito mais em ‘re’ – requalificar, recuperar, reconstruir – em cima do patrimônio já construído do que em edificar propriamente. No Recife, a questão não é ter que conservar o moderno contra o contemporâneo, mas da repercussão da implantação do contemporâneo na agressão às cidades”, analisa Sônia Marques, professora da UFPE e atual coordenadora brasileira do Docomomo (Documentação e Conservação do Movimento Moderno), comitê internacional voltado para a preservação e salvaguarda do patrimônio moderno.


Em Nostalgia, sentimento de classe, o artista Jonathas Andrade discute a degradação do patrimônio moderno

Para Roberto Montezuma, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco – CAU/PE, a modernidade já é um patrimônio e, como tal, deve ser resguardada, não apenas por sua riqueza formal, mas também pelo peso simbólico. “O edifício moderno precisa ser respeitado. O novo tem que entrar em um colóquio com o que já existe. Afinal, a cidade é como um palimpsesto, feita de vários tempos. O valor da arquitetura moderna é o valor social do edifício no tempo. Independentemente do próprio estilo ou da maneira de ser do edifício, aquilo carrega um valor social. A preservação do patrimônio não é só pela dimensão artística, mas também por essa dimensão. Macular essas experiências é uma insensibilidade. Essas experiências resistentes registraram um momento histórico e carregam a força da história econômica, ambiental e artística dos homens”, acredita.

Ele cita como melancólico exemplo a casa que Borsoi construiu para viver com a família, no Bairro de Boa Viagem. “A casa dialogava com a vizinha e com a esquina de forma tão profunda, que deixava de ser uma peça individual para ser uma peça de valor urbano. Na hora em que transcende o valor, incorpora um tecido urbano, como uma peça importante dele, que é a própria cidade. Para transformar numa lanchonete, cometeram um crime: esfaquearam e destruíram a casa. Deixou de ser um elemento dessa costura e passou a ser coisa banal, um edifício qualquer”, lastima. Desenhado em 1954 e concluído em 1957, o número 4.270 da Avenida Conselheiro Aguiar foi propriedade da família até 1968. “Ela foi comprada por um senhor que entendia o valor da casa e foi o primeiro a se interessar quando meu pai quis vendê-la”, recorda Marco Antonio Borsoi. Quando o proprietário morreu, os herdeiros optaram por alugar o imóvel. A metamorfose completa ocorreu em 2007; tamanha foi a desfiguração, que nela já não se enxergam quaisquer resquícios do projeto original.


No projeto de 1967 do Edifício Mirage, Acácio Gil Borsoi utilizou geometrias marcadas
por escalonamentos e pelo uso de ângulos obtusos

Em Nostalgia, sentimento de classe, de 2013, mais uma vez Jonathas de Andrade assinala a degradação de um patrimônio que lhe é caro. Ao reproduzir, em 345 peças coloridas em fibra de vidro, um painel existente em um conjunto de casas modernistas localizado na Avenida Rosa e Silva, zona norte do Recife, ele cria um diálogo entre a obra, que sugere outra representação da memória, e um texto disposto na parede adjacente. Nos escritos sobre temas como arquitetura, história, vida em sociedade e civilização, algumas palavras são substitutídas por peças oriundas do painel – subtraindo, propositalmente, um e outro do seu sentido original.

“Talvez, para algumas casas como essas, a melhor maneira de protegê-las fosse esquecê-las. Mas a ideia de nostalgia se reporta a um passado como perfeito, sem reconhecer que o hoje é muito potente com todas as suas contradições. Não adianta sonhar com o Recife da década de 1950. É preciso pensar num tombamento possível, dentro da nossa condição latino-americana de precariedade, nessa condição tropical. O que não pode é a cidade descartar coisas que são da sua alma, da sua porosidade social, sob o risco de ficar enclausurada, triste, menos saborosa e mais rude”, pontua o artista. 

Leia também:
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Práxis: O papel do cidadão
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