Hoje, o único consenso sobre a contestação protagonizada pelas multidões é que ela tende a não esperar mais situações-limite para vir à tona. O que surgirá daí, do ponto de vista da renovação da prática democrática contemporânea e do chamado Estado de Direito, sempre invocado para alertar sobre os perigos da presença das massas no processo político?
De acordo com Alexander Martins Vianna, professor de História Moderna do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DHRI-UFRRJ), quando se fala em “multidão que protesta”, deve-se considerar que “multidão” não é partido ou sindicato, mas uma configuração social flutuante e provisória, com alvos e focos específicos, mas que podem mudar durante a própria performance de protesto, pois, uma vez na “multidão”, o comportamento de cada indivíduo se vê parte de outra energia social. Para o professor, como ator coletivo, a “multidão que protesta” não hierarquiza as falas e as performances, ao contrário de partidos e sindicatos, cada vez mais, atualmente, esvaziados de adesão social.
Nisso residem os problemas de compreensão sobre os protestos recentes no Brasil e no mundo, que partem da ideia de anonymous, na visão de Alexander Martins: “Sem partido não significa sem política, pois não se faz política apenas por meio dos partidos e sindicatos existentes e do sistema representativo instituído”.
Eventos, como a morte de John Kennedy, mobilizam grande afluxo de multidões. Foto: Reprodução
Por outro lado, argumenta o professor, não é possível abordar o fenômeno anonymous como único e nem esperar que haja uma rede mundial nessa direção. “Na verdade, algumas ideias, princípios e métodos são deslocados e aclimatados em função dos dilemas estruturais de cada país, ou região num país.” Os movimentos de protestos aparecem no contexto como um sintoma de crise na representação política. “Enquanto a crise de representatividade existir, considerando os meios atuais de comunicação de massa, observaremos novos fenômenos com a mesma natureza, ainda que mudem os referenciais estéticos e políticos extraparlamentares, extrapartidários ou antissistêmicos”, diz Martins Vianna.
CLASSE MÉDIA?
E, por falar em estética, para Barbara Szaniecki, mestre e doutora em Design e atualmente pesquisadora PNPD/Capes da Esdi/UERJ, observar os movimentos massivos do ponto de vista estético pode contribuir de um modo singular para a compreensão de fenômenos para os quais outras ferramentas teóricas não têm sido exitosas. “Não apenas para a análise do que vem sendo produzido do ponto de vista artístico, cultural e criativo, como também para a análise da multidão em sua composição social e em sua determinação ou decisão política”, diz Bárbara, autora do livro Estética da multidão (Civilização Brasileira, 2007).
Por exemplo, a respeito das manifestações de junho passado no Brasil, alguns analistas negam que tenham sido mobilizações populares e as consideram como típicas de classe média. “Como discernir? Nas passeatas, vemos modos de expressão tão diversificados, que parece impossível determinar algo a partir deles unicamente. Mas certamente uma análise mais sistemática de bandeiras, faixas, cartazes, camisetas, assim como atos performáticos no seio das manifestações, podem trazer elementos enriquecedores, porque seriam examinados em seus conteúdos e em suas formas: nas manifestações, as pessoas se exprimem por meios ditos eruditos, populares ou de massa, entre eles muitas apropriações que, ao serem analisadas, podem nos dar dicas importantes sobre seus sujeitos”, afirma Barbara Szaniecki. Sujeitos, aliás, poderíamos complementar, que empunham cartazes de cara limpa – prontos para se valerem do oceano de gente para se mostrar, e não mergulhar no anonimato.
Eventos culturais e festivais de grande porte, como o Woodstock, são catalisadores de massas de participantes. Foto: Reprodução
Ela aponta o caso da figura do Batman como ilustrativo. O personagem surgiu logo nas primeiras manifestações no Rio de Janeiro. Mais tarde, veio um Batman Pobre, e eles fizeram parceria, passando a aparecer juntos. “O uso da fantasia do personagem de quadrinhos – típico da cultura de massa americana –, sua posterior apropriação antropofágica por um ‘pobre’ (em seus termos), cuja capa é um saco de lixo preto, e o diálogo que iniciaram são um bom exemplo de como o ponto de vista estético pode contribuir para um melhor entendimento do fenômeno sociológico e político das ruas.”
O professor de História da UFRRJ ressalta a característica de que são fenômenos multifacetados – “e, talvez por isso mesmo, vejo-os com certo otimismo”, afirma. “Obrigam a ordem pública instituída a repensar seus paradigmas e responsabilidades sociais, éticas e políticas. Se a ordem pública der a resposta esperada, as razões de protesto cessam e teremos novos desafios diante de novos cenários mais qualitativos na relação entre representantes e representados”, acredita Alexander Martins Vianna.
O tom otimista é um antídoto para o alarmismo que beira o pânico, e também cerca um dos principais livros a respeito do assunto: Multidão – guerra e democracia na Era do Império, de Antonio Negri e Michael Hardt, publicado no Brasil em 2005. A obra já começa com uma apologia ao que os autores chamam de “projeto da multidão”. Segundo esse projeto, “o desejo de um mundo de liberdade e igualdade não apenas exige uma sociedade global democrática que seja aberta e inclusiva”, como dispõe dos meios para alcançá-la. Ao contrário da noção de povo, a multidão é múltipla, um conjunto de inúmeras diferenças singulares. É daí que vem sua força e potencialidade.
Reconhecer que ela tem várias faces é mais do que acatar a verdade de um clichê – pode significar sair do impasse imposto pelo fascínio das multidões. E descobrir o ponto de partida para a observação que está longe de conclusiva, sobre um fenômeno cujos efeitos na ordem política não irão se limitar a encontros de mascarados agendados pela internet. Até porque as massas e a rede se fundem cada vez mais.
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