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Juazeiro do Norte não é Rouen

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Abril de 2014

Imagem Karina Freitas

A Catedral de Saint Pierre, em Poitiers, na França, é escura e fria como quase todas as igrejas góticas. Os vitrais não dão conta da iluminação, sobretudo nos dias chuvosos de inverno. Ao entrar nela, sentimos desalento e uma pequenez esmagadora. Olhamos para cima e mal conseguimos enxergar os detalhes das torres elevadas. Esse olhar ao alto nos torna menores. Nem a consciência de que tudo foi construído com o propósito de ressaltar a insignificância do homem, diante da grandeza de Deus, nos conforta. Vivemos a paradoxal sensação de claustrofobia em meio ao grandioso.

A Notre-Dame de Rouen me encanta bem mais do que a Notre-Dame de Paris. Certa desordem arquitetônica por causa dos vários projetos de construção e reforma, ruínas testemunhando os bombardeios da Segunda Guerra e o conhecimento de que o artista Claude-Monet gastou dias pintando-a, essas pequenas bagatelas humanizam a catedral, expõem a fragilidade de Deus. Nunca visitei a Notre-Dame de Chartres, onde a Madona segue o primitivo modelo da deusa egípcia Ísis amamentando seu filho Horus, testemunhando que a devoção à Virgem Maria nasceu de cultos bem anteriores ao cristianismo. Segundo Joseph Campbell, os padres adotaram a imagem de Ísis e de outras divindades femininas pagãs, alegando que aquelas formas, meras formas mitológicas no passado, agora eram verdadeiras e encarnavam no nosso Salvador.

A prerrogativa de que ao entrar e sair de um templo renascemos espiritualmente parece não fazer mais sentido nas igrejas transformadas em locais de visitação turística, ao invés de adoração. Nas cidades medievais, a catedral se elevava acima de todos os prédios; nas cidades modernas, os edifícios mais altos são os dos centros financeiros. Desprovidas da função para o qual foram edificadas, as velhas igrejas ainda guardam uma referência espiritual ao silêncio. Talvez elas tenham se tornado incompatíveis com o homem moderno por conta desse silêncio que remete ao desconhecido e ao absoluto, uma experiência que hoje poucos desejam, preferindo o ruído e a exposição contínua da imagem, num anseio perverso à imortalidade.

Em Poitiers, que mantém de pé um batistério românico e muros de uma antiga arena, escutei os sinos da catedral tentando ouvir uma música em contínuo, soando por trás do badalar. Na Igreja de Saint-Ouen, em Rouen, assistimos a um concerto de órgão e trompete. Compreendi por que o órgão é o mais perfeito instrumento para preencher os vazios das torres e abóbadas, utilizando o revérbero da acústica e criando uma polifonia que, ao fim, é uma consagração do silêncio.

A cultura gótica é estranha à minha formação. Fui criado no catolicismo popular do Cariri cearense, com influências da mitologia de Juazeiro do Norte. A doutrina romeira prega que as três pessoas da Santíssima Trindade são o Padre Cícero, a Mãe das Dores e o Divino Espírito Santo. Sempre achei iluminada essa contaminação de paganismo na herança judaico-cristã, que estabelece o Pai, o Filho e o Espírito Santo como trindade maior. Se considerarmos a simbologia da pomba como representação do feminino, mesmo assim teremos, pela teologia clássica, a prevalência da força masculina. Os romeiros de Juazeiro entronizaram uma deusa mãe, Nossa Senhora das Dores, no meio da trindade, banindo a figura do pai e seu patriarcado. As sete dores de Maria são todas referentes ao seu filho Jesus, por isso ela se representa com sete punhais trespassando o peito. É a mesma mãe sofredora Ísis, dos egípcios, e a Deméter, dos gregos.

As igrejas de Juazeiro do Norte estão sempre lotadas de fiéis, na maioria gente pobre e simples, oriunda principalmente das cidades do Nordeste. Ali não se encontra o silêncio que eleva ao transcendente desconhecido. A relação do romeiro com o divino se faz na ordem do milagre, no pagamento de uma promessa em troca da graça alcançada. Buscam-se a proteção e a atuação do poder superior, pagando-se um preço para isso: usar roupa preta todos os dias 20 do mês – data em que morreu o Padrinho –, dar esmolas, acender velas e soltar fogos, deixar no salão de ex-votos a representação do sofrimento que afligia o suplicante – braços e pernas de madeira ou cera, fotos de partes do corpo mutiladas ou acometidas de moléstia etc. –, andar descalço e não tomar banho, usar o hábito franciscano, assistir a missas...

Embora em Juazeiro do Norte as igrejas ainda ocupem espaços significativos, atraindo mais gente do que o shopping center, esses templos de romaria não me lembram lugares sagrados, nem me convidam à experiência transcendente. Mesmo que sejam comovedores os cantos dos romeiros e o sofrimento pela perda do santo que os guiava (Mas como ficamos agora/ como o gado sem pastor?/ como os filhinhos sem pai da raminha que murchou), a emoção que sinto na Matriz do Juazeiro é bem diversa da que experimento ao entrar numa catedral gótica de quase mil anos. Sei que tudo se passa pela relação com o silêncio. Bach criou a maior parte de sua obra para ser executada em igrejas descomunais, onde Deus pairava no alto, distante, quase inacessível, para além do primeiro som, como o grande silêncio, ou o proibido, ou o absoluto transcendente. Em meio ao barulho ensurdecedor e temperaturas superiores aos 40 graus nas igrejas de Juazeiro, os romeiros apelam a um padre santo, bem próximo deles, ao alcance de suas mãos sujas e pobres.

Padrinho Ciço Romão
Disse lá e disse cá
Se consolem meus filhinhos
Que eu vou e torno a voltar. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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