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Três realizadores na Trincheira

Há 10 anos, Leonardo Lacca, Marcelo Lordello e Tião criavam o próprio espaço para discutir e fazer cinema

TEXTO Priscilla Campos

01 de Março de 2014

Maria Luíza Tavares protagoniza 'Eles voltam', primeiro filme da Trincheira lançado nacionalmente

Maria Luíza Tavares protagoniza 'Eles voltam', primeiro filme da Trincheira lançado nacionalmente

Foto Divulgação

Numa noite de 1990, ia ao ar, nos Estados Unidos, o segundo episódio de Twin Peaks, série televisiva assinada por David Lynch e Mark Frost. Nele, o agente Dale Cooper, interpretado por Kyle MacLachlan, protagonizou uma das clássicas cenas lynchianas: enquanto tomava seu café em uma lanchonete e dialogava com a garçonete, o policial do FBI cunhou a frase: “This is a damn fine cup of coffee!”. Entre as abstrações de um processo criativo, está o momento primeiro de qualquer ideia: tudo o que aconteceu antes, pode, de alguma forma, ser o propulsor do que vem depois. A ligação ainda não reconhecida que determinada obra vai estabelecer, no futuro, para outras criações, traz consigo certa beleza às vezes esquecida.

Em 2003, na década posterior à maioria das produções dirigidas por Lynch, alguns jovens pernambucanos escolheram um apartamento no Bairro da Torre, zona norte do Recife, para realizar encontros em que os objetivos eram assistir a filmes, escrever e tomar café. Na lista: Estrada perdida, Cidade dos sonhos, Eraserhead, de Lynch, além de Adaptação e Quero ser John Malkovich, de Spike Jonze. Ali surgiam os primeiros contornos da Trincheira Filmes, produtora formada pelos cineastas Leonardo Lacca, Marcelo Lordello e Tião, que completa 10 anos no auge de sua produção cinematográfica e que trazia, ali no inconsciente, as influências do “maldito” Lynch.

Na iminência de lançar três longa-metragens, Permanência, Animal político e Seu Cavalcanti; um curta-metragem, Sem coração; um DVD com curtas e material exclusivo em comemoração ao aniversário; além da estreia comercial de Eles voltam, primeiro filme da produtora que entra em distribuição nacional; a Trincheira parece, enfim, consolidar-se como voz coletiva sólida no cenário do audiovisual pernambucano.

“É uma força mútua”, afirma Lordello sobre o cinema realizado pelo trio. Uma definição que se torna palpável quando os três estão juntos, apesar das piadas e brincadeiras – que só eles entendem e acham graça – entre si. “Eu acho que a produtora só sobrevive por uma questão de transformar isso em algo familiar, a gente não é só amigo. Para mim, a Trincheira é uma base segura. Acontece entre a gente um processo de contribuição artística e de conhecimento pessoal, íntimo, aprofundado, no sentido extra-filme. Talvez, uma vontade de estender essa condição nossa para o ‘fazer cinema’ entre amigos. É muito difícil, nem todos os filmes necessariamente vão ser feitos por todos juntos, mas a gente tem essa vontade de ficar confortável”, explica Lacca. “Isso tudo está relacionado com aquela pergunta ‘o que faz você sair de casa para fazer um filme?’ É muito esforço, você tem que se sentir bem”, conclui Tião.

A relação de amizade e cumplicidade parece, de fato, ser levada ao set. O paraguaio Pablo Lamar, diretor e engenheiro de som, trabalhou em Permanência e Animal político. Ele conta que sua experiência com uma equipe pequena fez com que o ambiente de filmagem fosse mais tranquilo. “Dessa forma, existe uma troca entre as pessoas. A Trincheira mantém esse clima de parceria, mesmo quando o tempo para a gravação é mais curto”, afirma.


Permanência foi um dos 10 longas escolhidos pelo programa Encontros com o Cinema Brasileiro, da Ancine. Foto: Marcela Wernicke/Divulgação

Porém, segundo Pablo, do ponto de vista estético, não existe uma homogeneidade entre as produções. Isso pode ser apontado como uma das qualidades do grupo. “Eu não consigo achar um denominador comum estético entre os filmes. Isso é muito bom, pois, quando tudo começa a ficar parecido, fica também esgotado. Acho que a produção atual de Pernambuco vem conseguindo se diferenciar entre si, embora exista um grito comum contra a verticalização indiscriminada da cidade, por exemplo, há também diferentes propostas estéticas e de temas. Na Trincheira, observo que um mesmo diretor tem filmes variados entre si, desde uma procura mais experimental até propostas mais convencionais. Esse tipo de liberdade é o que renova o cinema”, afirma Pablo.

Já o professor de Cinema e Televisão da Universidade Católica de Pernambuco, Cláudio Bezerra, observa certa unidade temática e de proposta estética no trabalho do trio. “Muro, Décimo segundo, Eles voltam são filmes que apostam na indeterminação, uma espécie de cinema de não ditos, ou ditos pelo silêncio, pelo cansaço, pela espera. A meu ver, são filmes que apresentam os impasses das relações humanas, sobretudo dos jovens, das dificuldades de eles se colocarem no mundo, de estabeleceram relações”, explica.

Apesar do início oficial do coletivo ter acontecido com o curta-metragem Ventilador, parceria entre Leonardo e Tião, exibido no Cine-PE em 2004, é em Einsenstein, com direção e roteiro conjunto entre Lacca, Tião e o designer Raul Luna, que o método de criação e as referências do grupo se distinguiram. “A gente sempre falou que Eisenstein era nossa faculdade, é impressionante a importância dele na nossa formação, não só a técnica, mas como tudo estava lá: de quem a gente é até hoje”, reflete Tião. Depois de quase três anos escrevendo, filmando e montando o curta, eles organizaram uma cabine de imprensa no Cinema da Fundação. “A gente queria que ele fosse visto e analisado”, conta.

Para Raul, era uma forma completamente livre de fazer cinema. “Mesmo realizando vídeos e ideias mais experimentais, sempre foi muito claro que a Trincheira é o lugar do cinema, o lugar da narrativa mais robusta e mais clássica até. Tentávamos trabalhar a metalinguagem, como botar o filme dentro do filme e problematizar a questão do cinema, como em Einsenstein. Acho que esse tipo de proposta, que vem também do cinema de subversão, continua até hoje.”

Para a professora do PPGCOM da Universidade Federal de Pernambuco, Angela Prysthon, os filmes da Trincheira estão relacionados de maneira muito forte com o gênero da poética do banal. “As obras condizem com uma tendência geral do cinema contemporâneo – cinema do fluxo, do minimalismo expressivo. Acho que eles (principalmente Lordello e Lacca) vêm adensando as preocupações com os detalhes do cotidiano, com os tempos estendidos e alongados do real e com as minúcias das pessoas comuns”, explica.

De acordo com Prysthon, as produções do grupo aparecem, junto com outros filmes da ‘nova safra’ do estado, como uma espécie de reação ao barroquismo e ao excesso da geração Baile Perfumado. “Os filmes da Trincheira são importantes dentro desse movimento de adesão ao cinema mundial contemporâneo que aconteceu aqui em Pernambuco. Eles romperam não somente com certos tiques do cinema regionalista, mas também consolidaram a nossa ‘indústria cinematográfica’ – que alguns chamam de “cinema de garagem” – um cinema artesanal, reflexivo, que outros dizem ser pós-industrial”, pontua.

Em contraponto a essa afirmação, Lordello pondera: “A gente não se considera uma reação. É tudo natural. Era uma época diferente, eles tinham outro tipo de vínculo com a cultura regional. Temos outra forma de existir, um jeito mais ‘ameno’”. Para Lacca, existe uma diferença importante na maneira de filmar. Ele lembra também da presença, antes temida, do digital. “A geração anterior negou isso, talvez eles vissem o vídeo como uma ameaça. Acompanhamos essa transição (de película para projeção digital). Acho que nós somos um pouco mais bem resolvidos com as possibilidades de filmar”, observa. “Na verdade, eles lutaram muito para fazer filmes e era tudo muito caro. Os filmes também soavam isso, essa luta, era como uma celebração”, aponta Tião.

O diálogo presente entre a geração dos anos 1980 e produtoras como Trincheira, Simío e Cinemascópio parece não se estender aos mais jovens. “Eu ainda não vejo surgindo uma geração nova. É como se estivéssemos sem um equivalente para dialogar no momento, porque o fluxo de ideias está indo para outros meios, não para o cinema.” afirma Lacca. “Acho que o pessoal, às vezes, não espera o momento ideal e sai fazendo qualquer coisa. A gente era doido por cinema e artes em geral, estava sempre produzindo, criando um elo, encontrando apoio um no outro. E quebrando a cara também, trabalhando muito para entender o quanto é difícil”, completa Lordello.

No que diz respeito à sua produção recente, a Trincheira está trabalhando em três filmes. Dirigido e escrito por Leonardo Lacca, Permanência foi um dos 10 longa-metragens escolhidos pelo programa Encontros com o cinema brasileiro, organizado pela Ancine e direcionado para a seleção oficial e a Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes 2014. O filme, projeto que teve como “manifestação precoce”, segundo Lacca, o curta Décimo segundo, conta a história de um fotógrafo pernambucano que vai expor seu trabalho em São Paulo e reencontra um amor antigo.

Filmada na capital paulista, e com um elenco de caras novas para os espectadores pernambucanos, a produção mostra-se leve e sóbria diante da temática política e analítica preponderante nos filmes feitos no estado. Ainda no primeiro semestre, Lacca deve lançar também Seu Cavalcanti, ficção-documentário que relata a vida de seu avô.

Outra estreia aguardada para os próximos meses é a de Animal político. Assinado por Tião, o filme narra a vida de uma vaca – vivida, de fato, por um mamífero quadrúpede – que passa por conflitos pessoais e sai em busca de uma jornada espiritual. Questionado sobre a sua vertente nonsense e chocante, do ponto de vista imagético, presente também em Muro, Tião afirma que, para ele, o seu cinema é, antes de tudo, intervenção e lugar de encontro para várias ideias. 

PRISCILLA CAMPOS, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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