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William Burroughs: O malvado favorito da contracultura

Cem anos depois do seu nascimento, mito em torno do escritor – e de sua literatura delirante – mantém aparência transgressora na indústria cultural

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Fevereiro de 2014

William Burroughs

William Burroughs

Foto Reprodução

Ele andava com amigos radicalmente pacifistas, mas era um colecionador de armas. Experimentou drogas pesadas durante toda a vida adulta, transformando-as no centro de sua literatura delirante, mas vestia-se formalmente com ternos na cor cinza, colete, gravata e chapéu. Era tão discreto, pálido e opaco, que ficou conhecido como el hombre invisible. Homossexual assumido, foi casado duas vezes com mulheres. Experimentou outras culturas, percorreu selvas à procura de drogas, morou no Marrocos, viveu a boêmia e o submundo franceses dos anos 1950, mas passou os últimos 15 anos de vida no comportadíssimo interior do Kansas. Estas são apenas algumas das contradições aparentes do escritor William Burroughs (1914-1997), que, 100 anos após seu nascimento, é relembrado sempre como um ícone da contracultura (mais uma contradição em termos).

Burroughs tornou-se mais falado no Brasil apenas a partir de 1984, quando as editoras Brasiliense e L&PM criaram, tardiamente, uma onda de literatura beat no país. Foi então lançado o seu Cartas do Yage, um pequeno volume de sua correspondência com Allen Ginsberg sobre a procura pelo chá alucinógeno conhecido como ayahuasca, na América do Sul.

Mas o mito em torno do escritor já vinha se expandindo desde os anos 1950, nos Estados Unidos e na Europa. A permanência de seu nome até hoje talvez se deva ao fato de que, apesar de não ter feito o mínimo esforço para tal, Burroughs se aproximou de artistas contemporâneos como poucos nomes de sua geração. Suas experiências estéticas acabaram, de forma diluída e distorcida, influenciando grandes figuras da cultura pop. O título de um dos livros de Bill, por exemplo, deu origem ao nome da banda de rock inglesa Soft Machine. A utilização do processo de cut-up (recorte) na escrita foi utilizada pelo cantor David Bowie em alguns discos, e radicalizada com a chegada da cultura digital.

COM OS BEATS
Depois de décadas escrevendo, pintando, fotografando, gravando discos de poesia, por volta dos anos 1980, Bill Burroughs já era considerado o avô do movimento punk. Conseguiu popularidade a despeito de sua voz grave, sua aparência austera, e seus traços faciais longos e tristes que compunham uma face sorumbática e sinistra. Não que todo mundo tenha estômago para ler sobre os delírios estimulados pela morfina e sobre a perene caça homoerótica que domina sua prosa. Mas talvez por ser o nome mais barra-pesada de sua turma de escritores, sua imagem se adapte melhor aos tempos atuais.

A associação com os beats é inevitável, mas precisa ser esclarecida. Burroughs era oito anos mais velho que Jack Kerouac, e 12 mais velho que Allen Ginsberg. Isso já dificultaria a classificação deles numa mesma geração. No entanto, foi a partir do encontro dos três nos arredores da Universidade de Columbia, na Nova York do início dos anos 1940, que começou a se formar o grupo que viria a ser chamado debeatnik. Na época, já por volta dos 30 anos e com cara de cinquentão, ele parecia bem velho em relação aos boêmios encharcados de Blake, Rimbaud e Dostoiévski que frequentavam os cafés de Nova York. Apesar da amizade que os unia, eram muito grandes as diferenças na temática dos livros e na forma de ver o mundo. Burroughs mesmo disse numa entrevista, já nos anos 1980:

“Eu não sou um beat. Nunca fui. Tenho apenas grandes amigos no movimento. Na verdade, meus amigos mais íntimos o formaram. Mas se você analisar bem, somos escritores com estilos absolutamente diversos e temos vidas pessoais completamente diversas. Não me ofendo em ser considerado um beat, mas na verdade não sou”.

A ele não interessava a espiritualidade profunda de Kerouac, Ginsberg e Gary Snyder. Tampouco tinha o espírito aventureiro e pé na estrada dos três. Ele não dava importância à militância política de Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti. Do grupo, encontra-se alguma semelhança apenas com Gregory Corso, um pé no submundo do crime e uma sensibilidade mais aberta à vida marginal.

Enquanto Snyder bebia chá verde, Kerouac e Corso se afogavam na bebida alcoólica – e Ginsberg experimentava maconha e LSD – Bill Burroughs, sempre o mais radical, vivia às voltas com o vício de heroína e morfina. Apesar de todas as diferenças, acabaram juntos no mesmo ambiente contracultural que despontou para a atenção da mídia a partir de 1956, com a publicação do poema Uivo, de Allen Ginsberg, e de On the road – pé na estrada, de Jack Kerouac, em 1957.

GAROTO MEIO-OESTE
William Seward Burrrougs nasceu em 5 de fevereiro de 1914, em Saint Louis, no Missouri, no meio-oeste americano. Seus pais eram da classe média e dinheiro nunca foi um problema. O avô paterno havia sido o inventor da máquina registradora da marca Burroughs, que dominou os pegue e pague do mundo até a difusão dos computadores e scanners, adotados pelos caixas. O jovem Bill saiu de casa aos 18 anos para estudar inglês em Harvard. Lá fez também pós-graduação em Antropologia. Depois, em Viena, na Áustria, iniciou um curso de Medicina.

Abandonou tudo em 1942, passou a vaguear por Nova York em busca de aventuras sexuais e drogas. Viciou-se em heroína e o uso de drogas passaria a ser parte central de sua vida até o fim, sem arrependimentos. Em 1944, começou a viver com Joan Vollmer. O casal aparece no relato de On the road, morando em Nova Orleans. No livro de Kerouac, Burroughs é chamado Old Bull Lee.

Em 1951, numa brincadeira com armas na Cidade do México, o escritor acabou assassinando Joan com um tiro na testa. Para escapar da prisão, viveu anos transitando entre o México, a América Central, os Estados Unidos e o Marrocos. “A morte de Joan”, escreveria depois, “colocou-me em contato com o espírito maligno, que me forçou a uma longa luta na qual eu não tenho escolha a não ser tentar fugir através da escrita”.

Um dos períodos mais movimentados de sua vida foram os anos que passou em Tânger, no Marrocos. Muitos escritores e intelectuais norte-americanos costumavam passar temporadas na cidade em busca da vida barata, das drogas fáceis e de sexo. “A misoginia da estrutura social (do Marrocos) também exercia um grande apelo sobre a desconfiança nata e o medo de Burroughs em relação às mulheres”, escreveu sobre o período o biógrafo Ted Morgan, no livro Literary outlaw. Sob os efeitos do haxixe e de um derivado de ópio de fabricação alemã, chamado Eukodol, ele começou a rabiscar, freneticamente, textos aos quais ele se referia como “rotinas” e que comporiam uma obra chamada Interzone. Depois, esses textos foram desmembrados e reutilizados em vários trabalhos.


Hal Chase, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs se conheceram na década de 1940, em Nova York. Foto: Reprodução

CUT-UPS EM PARIS
No final dos 1950, sempre vivendo da mesada enviada pelos pais, Burroughs morou em Paris durante algum tempo, no infame Beat Hotel, um lugar mixuruca na rive gauche, próximo ao Quartier Latin, que era ponto de parada de boêmios e intelectuais sem dinheiro que queriam fugir dos repressivos anos do pós-guerra norte-americano. Foi no ambiente miserável do hotel em Paris que ele e Brion Gysin, pintor e artista performático inglês, desenvolveram o método de cut-up.

O escritor paulista Antonio Bivar, que acompanhou de perto a trajetória dos beatniks, define o cut-up no livro Alma beat da seguinte maneira: “É um método experimental de escrever. Um artista que trabalha com cut-up simplesmente recorta teipes ou páginas de narrativa convencional e joga com a justaposição de frases, sentenças, palavras em uma nova ordem que funciona de modo subversivo sobre a linguagem original, permitindo ao leitor a ocasional leitura do futuro”. Era o equivalente, na literatura, ao processo de colagem nas artes plásticas, de inspiração dadaísta.

Estava ali, nos anos 1950, a base teórica para a prática do mash-up em outras formas de arte, a mistura levada a cabo pela turma do hip hop dos anos 80, que gerou a cultura dos DJs atuais e intensificou-se com o vale-tudo do mundo digital, no qual tudo se copia e se mistura.

O livro mais celebrado de Burroughs, Almoço nu, foi fruto desses experimentos. A princípio, os textos eram cartas escritas para amigos descrevendo alucinações com morfina e heroína, aventuras homossexuais e delírios variados. Nas dezenas de episódios desconexos, há uma enumeração caótica de alucinações, frutos dos delírios causados pelas drogas. Na própria introdução, está escrito que, ao leitor, não adianta tentar seguir um enredo. Pode-se começar a leitura de qualquer parte.

Apesar de não ser uma obra de ficção científica, muitos consideram que Almoço nu, a seu modo, antecipa fenômenos recentes como lipoaspiração, doenças como a Aids e a pandemia do crack. Os textos, escritos em Tânger, foram, ao longo dos anos, sendo retrabalhados, misturados, embaralhados, até chegarem a ser impressos em 1959, pela Olympia Press, uma editora parisiense alternativa que publicava em inglês.

O título vinha de uma prosaica observação de Kerouac que, certa vez, ao ver os restos de ossos de um almoço sobre um prato, exclamou: “This is a naked lunch” (Isto é um almoço nu). A estrutura caótica do texto não o impediu de se tornar um clássico que vem sendo reeditado com muitas mudanças, trechos inéditos, sobras, enfim, qualquer resto de loucura escrita ou delírio vale para acrescentar algumas páginas ao manuscrito original.

A primeira experiência mais consistente de Burroughs com a escrita havia sido feita em parceria com o próprio Kerouac, um livrinho que ficou inédito até 2005 e se chama E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques (Companhia das Letras). Mas sua carreira literária começou propriamente em 1953 com a publicação de Junky (que originalmente se chamava Junky: confissões de um irrecuperável viciado em drogas). Em seguida, escreveu textos que viriam a ser o autobiográfico Queer, somente publicado em 1985.

Depois de Almoço nu, sucesso de vendas estimulado pelas tentativas de censura nos Estados Unidos e em outros países sob a alegação de obscenidade, veio uma fase intermediária de sua carreira com livros como The soft machine, (1961), The ticket that exploded (1962) e Nova Express (1963).

DELÍRIOS, PARANOIA
A partir dos anos 1970, sua obra foi cada vez mais marchando para a paranoia, tratando de vírus, doenças macabras, alucinações políticas, transtornos generalizados. É o caso da trilogia composta pelos romancesCities of the red night, The place of dead roads The western lands, já no anos 1980.

Em 1987, Bill disse à revista Rolling Stone que temia uma tomada do poder mundial pelos fascistas, que usariam como desculpa o combate ao tráfico de drogas. Afirmou acreditar nos efeitos da dança da chuva realizada pelos índios norte-americanos, falava sobre mutação da espécie e vida no espaço.

Fiel ao seu interesse por pseudociências, práticas alternativas e esoterismo, ele teve também uma controversa passagem pela Igreja da Cientologia. Afirmava que a filosofia e as técnicas do grupo o ajudavam a lidar com os efeitos das drogas, mas expressava ressalvas quanto à sua forma de organização.

Em outra entrevista, à revista Gay Sunshine, falou sobre a possibilidade de revolução (que nunca foi muito o seu campo de interesse) e se mostrou cético em relação ao uso de armas tradicionais. Disse que “as únicas armas válidas hoje em dia para uma revolução são as armas biológicas e químicas, gases, germes e micróbios”. Mais uma vez, de uma forma ou de outra, antecipava as preocupações do século 21.

A literatura produzida por William Burroughs não teve tantos críticos porque, em geral, quem não transita no universo retratado pelos livros é afastado da leitura logo pelas capas (desenhos de seringas penetrando cérebros, reproduções de raios X, pílulas, armas), pelos títulos escabrosos (como O gato por dentro, por exemplo) ou, ainda, pelo conteúdo caótico e aparentemente desconexo. Entre aqueles que, a despeito de tudo, se aventuraram na obra e não gostaram está o escritor inglês Anthony Burgess, famoso pelo seu Laranja mecânica. Burgess disse certa vez que Bill “chateava seus leitores com episódios repetitivos de fantasias envolvendo pederastia e estrangulações sexuais desprovidas de qualquer visão de mundo”.

PERVERSO
Em 1977, o escritor decidiu voltar de suas viagens aos EUA e passou a circular com figuras como Andy Warhol, Susan Sontag, Lou Reed e Patti Smith. Em 1979 estava novamente viciado em drogas. Fez diversas colaborações em trabalhos de artistas mais jovens como Nick Cave, Tom Waits, Laurie Anderson, R.E.M. Sua imagem foi usada em um vídeo do U2. Os escritores cyberpunk o citavam como influência central. É como se a presença de Burroughs, já velho, num disco ou outra qualquer obra de arte, fosse um selo de contestação necessário para dar algum estofo ao trabalho. Já em 1959, com a fama repentina após o sucesso inicial dos primeiros livros beat, Bill havia escrito à mãe dizendo, por brincadeira, que temia, depois da morte do mago Aleister Crowley, passar a ser chamado de “o homem vivo mais perverso” do mundo.

O poema Thanksgiving Day - Nov 28, 1986 (Dia de Ação de Graças, 28 de novembro de 1986) é o ápice de sua crítica social irônica, quando o escritor diz em alguns dos versos: “Obrigado pelo continente para saquear e envenenar/ obrigado pela KKK// obrigado por uma nação de fura-greves/ obrigado pela última e maior traição do último e maior dos sonhos humanos”. Num curta-metragem feito por Gus Van Sant, em 1986, são tocantes a música e as imagens do século 20 em preto e branco sobrepostas à figura soturna do escritor lendo o poema.

Burroughs deixou uma obra numerosa, por alguns considerada repetitiva: 18 livros classificados como romances ou novelas, seis volumes de contos, quatro de ensaios, e cinco livros que reúnem entrevistas e sua correspondência. Além de inúmeras colaborações em discos e aparições curtas em filmes. Nos últimos anos de vida, ele ainda publicou livros e participou de exposições retrospectivas em Londres e Nova York. Morreu em 1997, em Lawrence, no Kansas, lugar que serviu de cenário para o apocalíptico filme O dia seguinte (1985) e para outras obras de ficção científica. 

MARCELO ABREU, jornalista e autor de livros-reportagem, como De Londres a Katmandu.

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