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Será que em Marte é assim?

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Fevereiro de 2014

Imagem Karina Freitas

Numa tarde em que adormeci sobre rochedos, lá em Taquaritinga do Norte, tive a sensação de levitar. Foi a única vez na minha vida. Em alturas, o oxigênio escasseia e, caso você possua a imaginação fértil, pode até ser abduzido por uma nave espacial. Não alcancei esse delírio. Bastava-me o despenhadeiro sob os pés, a Serra da Borborema ao longe e as extensões infinitas de um cariri, lembrando as estepes do Quênia. Nunca estive na África para fazer comparações, mas habituei-me a visitá-la em filmes, livros e fotografias.

Por um milagre geológico, a Serra da Taquara divide o clima da região. O brejo é frio, possui nascentes d’água e um resto de mata. O cariri é quente, seco e plano. Lembra o Sertão. A cobertura vegetal também muda nas duas paisagens. Algum Deus arbitrário, igual ao que preferiu Abel a Caim, deu as primícias da terra ao pequeno brejo, milagrosamente plantado no agreste fértil.

Nesse mundo fora das cidades, um resto de silêncio também nos deixa suspensos. Passarinhos cantam, o sol se põe ligeiro, a quentura da tarde sobe pelas pedras, a flor do café cheira e embriaga. Alguém do meu lado pede que eu escute os coelhos do mato, quando anoitece, mas eu nunca chego a ouvi-los, as ouças viciadas em buzinas e aceleradores.

Às vezes, em pleno dia, o tempo se fecha de repente, com nuvens escuras prometendo chuva. A luz se refaz em nova beleza e eu penso que nenhum iluminador conseguiria uma mudança de plano em tempo tão ligeiro. Tudo isso convida à levitação.

Caíram umas poucas chuvas em Taquaritinga do Norte, no final de dezembro. O bastante para o cafezal cobrir-se de flores brancas, perfumadas como as das laranjeiras. Antes das grandes estiagens, que mataram quase todos os pés de café, a serra ficava parecendo coberta de neve. Agora, avistamos umas pequenas áreas floridas, aqui e acolá, quase sempre nos lugares de sombra, como se tivesse nevado arbitrariamente.

Dizem que a primeira semente arábica típica a chegar ao Brasil foi plantada em Taquaritinga. As condições da serra eram semelhantes às da Colômbia. Brejo de altitude, chuvas durante sete meses do ano, clima frio com neblina frequente, verão ameno, sombra de bananeiras, ingazeiras e cajueiros tornando a maturação do café mais lenta, o que garante o gosto doce e achocolatado do fruto.

Antigamente, chovia tanto, que o primeiro juiz da comarca enviado para o exercício do cargo ficou um tempão na vila de Vertentes, pois não conseguia subir a serra por conta da chuva e da lama. É o que contam as pessoas velhas e eu acredito. A cidade tornou-se cafeeira. Os pequenos proprietários botaram abaixo as árvores nativas, pés de cedro, murici, pau-d’arco, copaíba, burra-leiteira, freijó, juremaçu, angico, baraúna, pereiro, louro, barriguda, jucá, ubaia, canafístula, umburana e mais um bom meio cento de outras espécies. Improvisavam carvoarias e queimavam as árvores. Os recursos pareciam inesgotáveis, o céu generoso, a prosperidade garantida.

Porém o céu tornou-se carrasco. Donos de sítios que colhiam 70 sacos de café, hoje, mal tiram para o consumo próprio. E os grandes proprietários com seus extensos secadores e armazéns, onde guardavam centenas de sacos, também estão abandonando a cafeicultura. O negócio tornou-se improdutivo. Os pés de cafés morreram aos milhares, não adianta replantá-los porque eles não prosperam, desapareceram as condições climáticas que favoreciam a lavoura. As ingazeiras, cajueiros e bananeiras, que forneciam a sombra, também morreram. Alguns teimosos compram o pouco que é produzido, beneficiam, exportam ou torram e vendem. A mão de obra migrou para as cidades, casas foram abandonadas. A nova geração de rapazes e moças não viu futuro na terra. De agricultores, transformaram-se da noite para o dia em produtores de moda, fabricantes de sulanca.

Cunharam a expressão “fogo morto” para os engenhos de açúcar que paravam de moer a cana. O melhor romance de José Lins do Rego possui esse nome. Como vamos chamar os sítios vendidos aos novos ricos de Toritama e Santa Cruz do Capibaribe? “Café morto”, “arábica calcinada”, “sonho cafeeiro moribundo”? Falta-me talento para definir esse transtorno. Os sulanqueiros proprietários de terra arrancam os pés de café pela raiz, constroem casas extravagantes como as roupas que fabricam, levantam muros altos, cavam piscinas, trazem o barulho da civilização.

Há quem teime em se deslocar em cavalos. Bem poucos. A maioria prefere escanchar-se numa moto própria ou de aluguel. A produção de roupas circula pelas casas das costureiras na garupa dos motobóis. Igualzinho às cidades grandes. Até afirmei no romance Galileia que não existe mais o Sertão, apenas periferia de cidades. Posso garantir que o Agreste também se transformou numa vasta e complexa periferia, de onde estão expulsando o silêncio.

Não sei por que as pessoas odeiam o silêncio. Talvez não suportem escutar a própria voz. Ainda existem noites escuras em Taquaritinga, de neblina espessa, que nos envolvem como um útero aconchegante. Mas é comum, em meio a essa atmosfera primitiva, ser abalado pelo ronco de uma moto. 
Os moradores de rua, no Recife, sentem-se seguros dormindo nos lugares públicos iluminados, barulhentos, com buzinas de carro e sons de escape. Evitam os becos silenciosos e reservados, pois representam um risco de sofrerem violência. Será que o avanço da criminalidade e das drogas no Agreste fez as pessoas do campo temerem os lugares ermos? Ou o silêncio tornou-se uma ameaça, uma quase violência? Talvez nossa sociedade tenha evoluído para um estágio de sobrevivência em meio ao ruído e à claridade. Estou fora. Embarco na primeira nave com destino a Marte. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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