Se tu vens ferido
chega pra dentro
sangue do meu peito jorrando
serve de alimento.
De nada vale o rogo para que a porta se abra; ela continua fechada. Sucedem-se loas, rezas, cantigas épicas, sortilégios, tudo em vão. Apelam aos Mateus, os palhaços da brincadeira, tratados com desprezo por “meus negos”. De rostos encarvoados, roupas grosseiras, rosários extravagantes cruzando o corpo e cafuringas nas cabeças, os dois correm de um lado para outro, entre os brincantes e a plateia. O mestre ordena que os Mateus rezem. Eles não se fazem esperar e declamam uma enfieira de versos sem pé nem cabeça, baboseiras de duplo sentido, cheias de palavrões e apelos eróticos. A cena pode durar uma hora. O mestre busca trazer os Mateus para a ordem do sagrado, porém os safados apelam ao burlesco e ao profano. As pessoas já assistiram à representação uma centena de vezes, conhecem o desfecho da farsa, e mesmo assim riem e participam. Sabem que as rezas do mestre jamais abrirão a porta. São os dois sujeitinhos sem valor, os Mateus, com suas orações atravessadas, contrapondo o profano ao sagrado, invertendo a ordem do mundo celestial e terreno, que alcançam o milagre de abrir a porta da casa para o ato seguinte da celebração: o divino.
O sortilégio miraculoso, que faz a porta se abrir, é quase sempre um trava-língua de duplo sentido:
Eu vi o velho Felix
com um fole velho nas costas.
Quando mais fede o fole velho,
mais fede o velho Felix.
O resto vocês imaginam, misturando às pressas fede, fole, Felix... Também podem imaginar a transgressão da rígida hierarquia social, política e religiosa, alcançada pela linguagem do teatro popular de rua, com seus valores comuns, terreais, erotizados. A subversão dos Mateus abre a porta. De nada valem as lamúrias do rei:
Olha a porta e até se atreve
A ver que já se trancou
Para além de toda verve
Do seu sangue lutador
Velha reza ainda lhe ferve
Sangue de velho fervor*.
Uma representação da quarta sequência do auto de reisados – a chamada das figuras – é especialmente curiosa: a morte e ressurreição do Boi. Torna-se fácil descobrir nesse entremez os vários motivos, egípcios, gregos, mesopotâmios e de outras culturas, tomados de empréstimo pela mitologia cristã.
Num primeiro ato, o Boi se apresenta dançando, supostamente na companhia de pastoras. Por algum motivo, ele adoece. Em alguns reisados, o Boi é sacrificado: o mestre representa enfiar um punhal no seu peito e um brincante recolhe o sangue que jorra da ferida (outro brincante, que se esconde debaixo da armação do boi, carrega um botijão de vinho) e o distribui entre os que assistem à peça. Vemos aí o mesmo tema da missa católica: esse é o meu sangue, tomai e bebei-o... Que por sua vez remete ao sacrifício de Ampelo, o amado do deus grego Dioniso, morto pela chifrada de um touro, e cujo sangue transformou-se no vinho que o deus orgiástico distribuía entre as suas bacantes.
Chega a hora de repartir a carne do boi: esse é o meu corpo, tomai e comei-o. Só que é feito verbalmente, distribuindo as partes do animal sacrificado com o público assistente. Um dos Mateus da brincadeira assume a divisão do corpo, e o caráter sagrado da morte sacrifical do Boi cede lugar ao tom jocoso, debochado e profano de uma farsa.
E do Boi a tripa? Pro doutor Futrica.
E do Boi a mão? Pro padre João.
Pra quem vai o rim? Vai pra seu Toim.
E a tripa gaiteira? Pra moça solteira.
A tripa mais fina? Para a Carolina.
E do boi a Língua? Vai pra Catarina.
E o cupim de fora? Vai pra Teodora.
Todos são agraciados, conforme o ponto fraco de cada um. Até você, leitor, receberia uma parte desse Boi sacrificado, se estivesse na farra.
*Assis Lima
RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.