Para Dolores, o processo de composição de suas trilhas equivale ao trabalho de um ator. “É preciso entrar no filme, envolver-se no ambiente, entender o sentido narrativo que o diretor quer imprimir e sustentá-lo; ou, em alguns casos, contestá-lo. Costumo conversar bastante, fazer muitas perguntas e só então começo o trabalho. Tento manter a mente como uma página em branco, que será preenchida pelo fruto desse processo inicial.” Segundo ele, a técnica lhe permite uma liberdade que explica o fato de não ser um músico de formação tradicional, mas, antes de tudo, alguém mais ligado em narrativas literárias e cinematográficas.
Helder também compõe trilhas para o teatro e espetáculos de dança, material que ficou de fora da coletânea. Uma das peças teatrais de que participou, A máquina, de João Falcão, ganhou versão em película, cuja trilha também foi assinada pelo DJ, dessa vez em parceria com Robertinho do Recife e Chico Buarque. A música do filme escolhida para integrar a Banda sonora foi Azougue, remixada para uma sequência cômica num shopping center.
De Últimos cangaceiros, documentário de Wolney Oliveira, Dolores trouxe para a compilação a releitura da cantiga popular Mulher rendeira, que ganhou novos versos e uma ambiência western. Outra adaptação feita para o filme, que também está presente na Banda sonora foi Satie dub, inspirada num tema do compositor e pianista francês Erik Satie.
Uma das passagens históricas da coletânea é Subúrbio soul, composta por Dolores para o primeiro longa do qual fez parte, o pernambucano O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas, de Marcelo Luna e Paulo Caldas. “Um documentário dark e sinistro sobre dois jovens do mesmo bairro, um deles, matador. A música aparece no início do filme, melancolicamente incorporada aos sons do centro do Recife”, diz Helder. Gravada com Fabio Trummer e Jam da Silva, parceiros de Dolores na Orchestra Santa Massa, ao lado de Isaar e Maciel Salú, Subúrbio soul acabou entrando no primeiro disco do grupo, Contraditório?.
Também estão presentes na compilação O rosto no espelho, do filme homônimo de Renato Tapajós; Narradores, de Narradores de Javé, de Lili Caffé; O amor vai, do documentário Estradeiros, assinado pelo casal pernambucano Sergio Oliveira e Renata Pinheiro; e Amor, plástico e barulho, do longa de ficção da mesma diretora.”
O documentário O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas também tem trilha sonora produzida por Dolores. Foto: Divulgação.
“DJ Dolores é um monstro musical em notas, compassos, tempos e timbres. Ele interpreta o filme de uma maneira muito pessoal, que, a princípio, assusta seus criadores, mas, depois, quando vemos seu trabalho já integrado às imagens, logo entendemos que não poderia ser de outra forma”, diz Renata Pinheiro.
CONCEITO E ACABAMENTO
Veterano do Manguebeat, DJ Dolores sempre brincou com limites estéticos ao produzir música. Com um pé no regional e outro na diversidade da música brasileira, também absorveu as referências internacionais em suas andanças pelo mundo. É dessa experiência que se alimenta quando precisa se dedicar ao cinema. “De uma trilha brega, em Amor, plástico e barulho, ao experimentalismo do rock eletrônico em Periscópio, de Kiko Goifman, passando por doses de concretismo em Tatuagem, dá pra combinar autoria e entendimento de necessidade de cena”, diz o compositor.
O que importa, para Dolores, é que sua música esteja em harmonia com o diálogo e a imagem, estabelecendo o tom do filme. “Fazer uma trilha é como fazer um disco. Envolve conceito, acabamento, criatividade. Dá um trabalho danado. Mas o reconhecimento é mínimo. O cinema preza pela imagem e subestima o som, mesmo que pessoas cantem e se envolvam na cena por causa da música. É um trabalho muito ingrato, muito pior que o do roteirista. Por outro lado, possibilita produzir fora da chatíssima e medíocre indústria fonográfica. Como amo música e detesto ambiente competitivo, o saldo final é a mais pura felicidade.”
Bom mesmo seria se, no cinema, a música passasse a ocupar tanto espaço quanto a imagem, extrapolando as fronteiras do papel coadjuvante que a trilha costuma ter na maioria das vezes, como defendeu Glauber Rocha nos anos 1970. “O Brasil é um país musical e eu penso no cinema como uma montagem de pausas e momentos de música.” Não é por acaso que o australiano Graham Bruce, ao estudar o papel da música na obra do cinemanovista, concluiu que, mais do que servir de acompanhamento às imagens, a música organiza a narrativa, expande o sentido das imagens, passa a dividir com elas a incumbência da história.
Se, para Glauber Rocha, os precedentes do fazer cinematográfico são “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, para Dolores, basta uma aparelhagem na mão que surgirão mil ideias na cabeça.
MARINA SUASSUNA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.