Voo do Recife a Londrina, aguardo embarque durante quatro horas no Aeroporto de Guarulhos. Releio as cartas de Rilke a um jovem poeta, sublinho com lápis que “se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão de janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa segurança”. Passeio aborrecido entre pessoas que também esperam aviões, ocupadas com aparelhos celulares de tecnologia infinita. Abandonei a leitura de O som e a fúria, porque já não suportava o relato de um débil mental. Porém o traçado das salas de espera por onde caminho, depois de ter revisado uma conferência pela décima vez, não é menos maluco. Um rapaz senta junto de mim, retira uma banana da mochila e come-a com sofreguidão. Gesto insólito, perfeito para um diálogo. Mas ele saca um headphone da bolsa, liga-o no celular, acompanha com os pés a música que eu não escuto, balbucia palavras em inglês.
Ninguém é mais saudável do que Benjy, o doidinho narrador de Faulkner, que chora por tudo. Também vou chorar, não prestam atenção a mim. Ninguém olha para ninguém, ninguém escuta ninguém, ninguém fala com ninguém, ninguém lê livros – o que seria pretexto para um início de conversa –, todos com seus fones, os ouvidos tapados para o mundo, os olhos recusando-se a ver o que não seja uma tela. E se eu disser ao rapaz comedor de bananas que “somente quem está preparado para tudo, quem não excluiu nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo, e ir até o fundo de sua própria existência”? Ele irá rir e trocar de cadeira.
Onde se escondem os leitores brasileiros? É o tema de minha conferência em Londrina e Curitiba. Nesse aeroporto, eu não enxergo nenhum deles. Mas preciso ter essa resposta na ponta da língua, uma conversa afiada que justifique o cansaço da viagem, os trocados que me pagam. Onde estão os leitores invisíveis? Eles são como as cidades de Calvino, chega-se a eles por caminhos indiretos, percursos enviesados, sem jamais alcançar o âmago. “A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali.” Ninguém entra na cidade dos livros. Eu continuo preso nela, como um Sísifo ou Prometeu fazendo a apologia da própria condenação.
Felizmente, a aeronave. Logo mais, o hotel, o quarto, a cama, depois de um voo de 45 minutos. Sentados atrás de mim, o jovem casal e a filhinha de meses. A menina gargalha precocemente, os pais cochilam. Por que a menina ri? Ainda ignora a existência de “uma lista” por onde passeará seus dias. Os pais certamente acreditam que “em redor de nós não há armadilhas e laços, nada que nos deva angustiar e atormentar”. Quarenta e cinco minutos passam ligeiro. O comissário de bordo anuncia que o avião iniciou descida, pede que elevem os recostos das poltronas, recolham as mesinhas, desliguem os aparelhos eletrônicos. A menina grita alucinada. Também sinto dores nos ouvidos, sou como as crianças que não desenvolveram completamente o sistema auditivo. Felizmente, pousamos, os avisos de atar cinto continuam acesos, os passageiros se apressam em ligar os smartphones, antes de abrirem as portas do avião. A meninazinha volta a rir alto. Quando me levanto, cumprimento o casal. Digo que sou médico, explico que os bebês choram nos pousos das aeronaves porque sentem dores nos ouvidos. O casal troca olhares. O pai explica que a filha costuma viajar e não sente nada. Ela gritava porque tiveram de desligar o filminho que assistia no tablet. Percebo a engenhoca religada. A criança ri, agita-se, bate na tela com as mãozinhas. Uma princesa feliz para sempre no seu castelo virtual, igualzinho aos contos de fadas.
RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.