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Transtornos: Males da mente

Desde que foram encarados como problema de saúde pública, esses diagnósticos tornaram-se mais frequentes, correspondendo a 12% das doenças mundiais, a maioria originada no estilo de vida atual

TEXTO Marcelo Robalinho

01 de Outubro de 2013

'Nighthawks', Edward Hopper

'Nighthawks', Edward Hopper

Imagem Reprodução

Depressão, ansiedade, estresse, fobias, bipolaridade, autismo, esquizofrenia, transtorno obsessivo-compulsivo, hiperatividade... Desde 1996, quando passaram a ser reconhecidos como um sério problema de saúde pública, os transtornos mentais vêm se tornando cada vez mais comuns na vida das pessoas. Hoje, eles respondem por 12% da carga mundial de doenças e 1% da mortalidade no planeta, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Associados cientificamente a algum comprometimento funcional do sujeito, que resulta de disfunção biológica, social, psicológica, genética, física ou química, esses tipos de distúrbios são geralmente atribuídos ao estilo de vida, à cultura e à sociedade em que o indivíduo vive. Elementos que revelam o impacto da dimensão sociocultural na produção de adoecimentos.

Dentre os transtornos mentais, a depressão é, sem dúvida, o principal na atualidade, atingindo 20% da população, o que representa algo em torno de 1,4 bilhão de pessoas. Caracterizada popularmente como uma tristeza que parece não acabar mais, ela varia de intensidade e duração, conforme a história de vida do paciente. Grande parte dos que sofrem, muitas vezes, nem se percebe como doente, especialmente na fase inicial do problema. Foi o caso do administrador de empresas Antônio Costa (nome fictício), 48 anos. Nele, a depressão foi desencadeada após um somatório de três fatores: a promoção a um cargo de muita responsabilidade na empresa em que trabalhava, uma crise conjugal que resultou depois em separação e uma dieta rigorosa sem o devido acompanhamento médico, na qual emagreceu 30 quilos.

“Vinha sofrendo de insônia e instabilidade no sono há, pelo menos, oito meses sem saber o porquê. Num dia, chegando em casa da musculação, eu literalmente me joguei de costas na cama e fiquei prostrado durante quatro horas. Tive a sensação de que era o fim da linha de várias semanas intercaladas com falta de ar e preocupação em ter alguma doença pulmonar, como uma pneumonia, hipótese que foi descartada quando procurei ajuda médica”, conta. Devido à piora do quadro, Antônio chegou a se afastar do trabalho durante 10 dias, a fim de descobrir o que tinha. “Consultei vários especialistas, sem sucesso. Só decidi procurar um psicanalista depois de uma crise de choro muito forte, na qual me senti aliviado da falta de ar. Tomei coragem para entrar na internet e descobri a depressão, a partir da descrição dos sintomas”, explica.

O tratamento com antidepressivos durou três meses. “Diagnosticar a depressão trouxe o meu problema para o nível da racionalidade, pois pude, enfim, descobrir o que estava acontecendo comigo. Para mim, a doença simbolizou a internalização de um sofrimento e uma angústia que estava contida durante muito tempo, e a cura, a libertação disso”, afirma o administrador carioca. Para preservar a sua imagem no trabalho, Antônio solicitou à Continente não revelar sua verdadeira identidade.

Para a advogada Rosânia Cerqueira, 55, a primeira crise depressiva ocorreu há 10 anos, durante o processo de separação. “De uma hora para outra, perdi praticamente todos os bens e precisei assumir o comando da casa, tendo de vender tudo que eu e meu marido tínhamos construído juntos. Isso mexeu muito com o meu estado físico e emocional. Tinha crises de vômito, diarreia e falta de sono constante e nada era diagnosticado. Quando meu neurologista me viu, só de olhar para mim ele detectou que eu estava com uma forte depressão. Passei a tomar remédio durante um tempo para levantar o humor e aí comecei a sofrer um processo violento de depressão, a ponto de me darem comida na boca no período de maior crise, pois tinha perdido todas as forças. Também desenvolvi, na época, algumas síndromes, como a de pânico. Felizmente, consegui me reestabelecer em função de minha filha, que era adolescente. Precisava cuidar dela, e isso me deu forças. Voltei a estudar e acabei passando num concurso, o que me fez readquirir autoestima e ficar boa”, relata.

Desde então, Rosânia já passou por mais dois períodos de depressão, um em 2009, com a saída da filha de casa para morar no exterior, e outro, atualmente, depois de ser diagnosticada com uma isquemia ocular. “Algumas pessoas não acham que sou depressiva, pois sou muito ativa. Essa doença só ocorre com pessoas fortes quando elas se deparam com situações bastante turbulentas. Nunca achei que isso fosse ocorrer comigo um dia, mas sempre lutei e consegui superar as crises.” Atualmente, ela está fazendo pilates e shiatsu como alternativa para liberar emoções e buscar equilíbrio físico e mental, além de aprofundar sua espiritualidade no kardecismo.


Saturday Afternoon, de Robert Anderson. Imagem: Reprodução

Os exemplos de Antônio e Rosânia apontam para a importância simbólica do diagnóstico. Por concretizar a doença, ele tem uma utilidade social. Diz o historiador da ciência norte-americano Charles Rosenberg, que, na nossa cultura, uma doença só existe como fenômeno social quando passa a ser convencionada e nomeada como tal. Nesse sentido, o diagnóstico representa o ponto-chave da experiência do homem com a doença, porque produz um significado social e desencadeia a necessidade de respostas específicas em uma dada sociedade. O tratamento seria uma delas.

CULTO À FELICIDADE
O caso da depressão, bem como de outras doenças mentais em voga, a exemplo dos transtornos de ansiedade, é emblemático para compreendermos a singularidade da cultura contemporânea, que valoriza a felicidade como um ideal individual quase inatingível, especialmente pela via do consumo de bens materiais e/ou simbólicos.

O aparecimento de doenças mentais seria, então, consequência de uma “falha” temporária ou duradoura do indivíduo (a depender do tipo e do grau de distúrbio vivenciado por ele) na sua trajetória de sucessos, riscos e insucessos. “A felicidade representa, de certa forma, o final do arco-íris. Na prática, é algo que se deseja, mas nunca se chega lá realmente. Estudos indicam que há um nível de felicidade para cada um. Ela se define pelo grau de satisfação que a pessoa tem com a vida dela, que pode variar conforme seus desejos. Por isso, o contexto cultural no qual o sujeito está inserido é importante para compreendermos como isso pode influir em determinadas doenças”, considera o psiquiatra paulista Sérgio Tamai.

Na opinião de Ednalva Maciel Neves, professora dos programas de pós-graduação em Antropologia e Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o diagnóstico crescente de sofrimentos mentais repercute sobre a vida dos indivíduos, na medida em que qualquer sentimento que não envolva o prazer e a felicidade é interpretado em termos de adoecimento. “Por consequência, o indivíduo fica cada vez mais à mercê ou refém das instituições que definem o que ele é e oferecem formas de tratamento, como os medicamentos antidepressivos. Trata-se de um processo de controle cada vez mais minucioso sobre o indivíduo, em todas as esferas da vida social”, constata.

Ao lado da ideia de obrigação da “felicidade”, Ednalva destaca as noções de “saúde perfeita” e de “velhice ativa” como modalidades sociais que ordenam e normatizam o sujeito, ou seja, criam normas de comportamento e de pensamento para controlar as individualidades e dar previsibilidade às situações, interações e processos vividos. Como conceito normativo, a ideia de “saúde perfeita” impõe um ideal que busca afastar o patológico da experiência humana.

No âmbito do trabalho, exemplifica a professora, as novas formas de organização vêm provocando pressões de produtividade sobre o trabalhador, que resultam em sofrimento, como fadiga laboral e absenteísmo. “No campo da medicina, esse processo significa um escrutínio crescente sobre o paciente e consequentemente a identificação de novas formas de sofrimento, dos quais o mental parece ser um dos domínios mais atingidos”, acredita.


Imagem: Lucian Freud/Reprodução

Para o professor Cleiton Branco, 33, a pressão se converteu em estresse há três anos. “Inicialmente, peguei uma turma pequena e boa de lecionar na escola. Mas, depois, tive uma experiência com uma turma maior, de 40 alunos, que acabou comigo. Era cheia de problemas, com alunos especiais e outros que só arrumavam confusão. Comecei a sentir uma angústia dentro de mim por não conseguir fazer com que as coisas saíssem como eu queria. Fui ficando mal, pesado. Tentei fazer de tudo para variar a aula, mas não deu certo. Ano passado, quando decidi trabalhar dois turnos para ganhar mais, o meu problema só piorou. Então, resolvi procurar ajuda psiquiátrica. Estou tomando remédio há três meses, o que vem me ajudando. Não faço mais hora extra. Também estou estudando para prestar novo concurso e pensando em fazer mestrado. Quero me sentir bem”, afirma.

Na escola em que trabalha, no município de Teresópolis (RJ), Cleiton diz ter um aluno com diagnóstico de hiperatividade e outros 10 que ele suspeita sofrer do mesmo mal, bem como transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e apatia. “Por enquanto, é só achismo de minha parte. Tento inserir esses estudantes no grupo, mas não tenho como fazer um planejamento pedagógico para cada um. Preciso lidar de forma geral e isso é difícil, devido às diferenças”, atesta.

A professora cearense Gizelle Sousa, 30, também foi acometida pelo estresse provocado pela vida corrida, o que lhe desencadeou uma enxaqueca permanente. “No colégio em que trabalho, sou professora polivalente. Trabalho com duas turmas. Acho que isso se agravou. De 15 em 15 dias, eu tinha crises. Como não gosto de remédios, só tomava comprimido para a dor à tardezinha, no final do meu expediente. Luz e conversas perto de mim me incomodavam. Hoje, consegui controlar um pouco mais isso”, diz.

Apesar de estar melhor da enxaqueca, Gizelle reconhece a ansiedade como característica atual de sua personalidade. “Sou ansiosa. Isso me inquieta. Costumo fazer as coisas por impulso. Às vezes, gasto mais do que posso. Antes, eu me achava a pessoa mais controlada do mundo. Hoje, me sinto a mais descontrolada. Tenho medo de me apertar financeiramente. Quero investigar isso. Tanto que já consegui autorização do meu plano de saúde para atendimento psicológico”, adianta. Atualmente, Gizelle se tornou adepta da prática de atividade física para reduzir os níveis de ansiedade.

TRANSTORNOS COMUNS
Segundo Sérgio Tamai, o autismo e a hiperatividade são hoje os principais transtornos observados em crianças. Já na fase adulta, a depressão, os transtornos bipolares de humor e os transtornos de ansiedade (incluindo os estresses) são mais comuns. “Na prática clínica, os diagnósticos dos transtornos são lastreados em sinais e sintomas. Apesar dos avanços tecnológicos, ainda não contamos com marcadores biológicos para evidenciar a ocorrência de distúrbios dessa natureza. Por isso, a gente se baseia no exame do estado mental do paciente, na história clínica dele e nas informações que conseguimos com os familiares”, observa Tamai, que também é membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Na contemporaneidade, as doenças mentais sofreram uma mudança simbólica importante, não estando mais ligadas a um desvio de comportamento, como era no passado, e, sim, pelo estado mental. “Quando se define a normalidade de um transtorno pelo estado mental do indivíduo, como ele pode saber se seu estado é suficientemente normal? Não temos acesso à mente do outro, assim, não temos como comparar a qualidade do meu sofrimento com a qualidade do sofrimento do outro. Tendo a desenvolver, então, um jogo social de provocar efetivamente a inquietação dos indivíduos sobre a qualidade dos seus estados mentais, fazendo com que a sociedade se indague se é normal ou não”, analisa Paulo Vaz, filósofo e professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Self Portrait, de Francis Bacon. Imagem: Reprodução

Essa mudança no padrão, diz ele, faz com que o indivíduo seja convidado a se descrever como doente a partir de uma comparação, não mais com o anormal, mas à distância de uma normalidade que se torna idealizada. “É uma transformação fundamental na nossa cultura. O normal, que antes era considerado o regular e a média da sociedade, hoje é o raro a ser conquistado, até porque é idealizado na forma. Acaba gerando um normal extremamente raro, no qual o indivíduo se vê como doente, e cuja possibilidade de superação da doença é o consumo de medicamentos, ou seja, cria-se a ideia de o indivíduo se conceber na distância do normal raro”, avalia Vaz.

SOMATIZAÇÃO
No tocante às doenças mentais, a transformação do sofrimento em dor é um ponto importante para compreensão delas na contemporaneidade. Em vez de experienciarmos o sofrimento como algo a ser elaborado de modo simbólico, na interseção entre um espaço subjetivo e coletivo, que demandam do homem tempo e autoconhecimento, nossa sociedade tem privatizado essas experiências, transformando-as em dor, aponta Jonatas Ferreira, professor dos programas de pós-graduação em Sociologia e Inovação Terapêutica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pânicos e depressões passam a ser percebidos como algo biológico, e as terapêuticas requeridas, longe de provocarem uma discussão acerca dos aspectos intersubjetivos e sociais do sofrimento, levam necessariamente à medicalização a fim de aplacar a “dor” imediata.

“Para a teoria psicanalítica, o sofrimento é uma parte inerente à existência humana e condição para o seu desenvolvimento. Na sociedade do consumo, dos vínculos efêmeros e da busca incessante pelo prazer, entretanto, o sofrimento e sua elaboração existencial são percebidos como obstáculos à plena circulação das mercadorias, pois requerem tempo reflexivo para o sujeito elaborar os seus problemas. Temos pouca disponibilidade para esse tipo de reflexão, em grande parte decorrente da aceleração da vida, condição para o sofrimento. Assim, parece mais fácil tratar como dor e buscar medicamentos eficazes para algo que tradicionalmente seria entendido como sofrimento”, argumenta Jonatas.

Jonatas é atualmente responsável pela realização de duas pesquisas simultâneas junto a 45 profissionais de saúde mental das cidades do Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). Através da análise do discurso desses especialistas, ele e uma equipe de pesquisadores da universidade buscam entender o estatuto do sofrimento na contemporaneidade e a popularização do consumo de psicofármacos. “Queremos identificar o discurso que psicanalistas, psiquiatras e terapeutas cognitivo-comportamentais estão construindo acerca desse sofrimento, da perspectiva de seu tratamento pela fala e através do recurso a esses medicamentos que atuam sobre uma gama de padecimentos que vão da ansiedade à depressão, examinando a forma como o saber científico legitima um novo lugar para o sofrimento”, explica.

Embora ainda não tenha resultados, o professor vem percebendo, através das entrevistas, alguns aspectos interessantes. Um deles é o relato dos especialistas da transformação do sofrimento em dor por parte dos pacientes e a medicalização como forma mais prática e ágil para tratar todos os tipos de mal-estar.

“A outra linha de argumentação que vem aparecendo nos discursos é uma preocupação maior dos terapeutas em relação aos chamados pacientes borderline, que se caracterizam por apresentar uma alteração na fronteira entre a neurose e a psicose, e costumam ser emocionalmente instáveis, com dificuldade de simbolizar seu sofrimento”, complementa Jonatas. Os resultados dos dois estudos devem ser divulgados no final deste ano, em revistas especializadas do Brasil e de Portugal, e transformados em livro, em 2014. 

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