Partindo desse contraponto, a narrativa de Tatuagem, situada no ano de 1978, oferece uma interessante reflexão sobre os caminhos e descaminhos do amor, tendo como pano de fundo o Brasil dos governos militares. Clécio, líder do grupo teatral, e Arlindo, um recruta do exército – chamado pelos colegas de Fininha –, vivem um romance em que esses dois universos aparentemente excludentes se cruzam.
O artista é um homem culto, que assume sua sexualidade de forma aberta e livre, o soldado é um menino do interior com 18 anos de idade, descobrindo o mundo e tomando consciência do seu corpo e de seus desejos. Juntos, eles conhecerão as nuances e contradições de suas próprias escolhas. Também perceberão como os conflitos internos dos nichos sociais em que estão inseridos e a tensão política que os coloca em trincheiras diferentes são indissociáveis na definição do rumo de suas vidas.
Para contar essa história, que teve como uma das fontes de inspiração o Grupo Vivencial de Olinda, Hilton Lacerda optou por uma narrativa estruturada num ritmo suave, flagrando os percursos de Clécio e seu grupo, e de Fininha, nos seus atos cotidianos. Inicialmente, as ações correm como se fossem histórias paralelas para, em seguida, se intercambiarem. A direção orquestra o diálogo entre essas diversas situações com maestria.
Aquilo que, num primeiro momento, parecem esquetes isolados, aos poucos, torna-se unidade densa e orgânica, entrelaçada por outro nível de articulação não mais guiado apenas pelos atos em si, mas pelos sentimentos que os norteiam e as consequências deles nos protagonistas. O recurso é extremamente feliz, pois faz emergirem, sem ser de forma panfletária ou como marcação temporal da trama, questões subjacentes ao contexto da época – perseguição política, censura, repressão militar, discriminação sexual – das quais era impossível escapar. Elas são sentidas como uma ameaça invisível e estão ali presentes da primeira à última cena, interferindo nos mínimos gestos de todos os personagens. Quem viveu os anos de chumbo do regime militar lembrará essa sensação permanente de falta de liberdade pairando no ar.
SUPER-8
Apesar de falar de anos tão difíceis, Tatuagem não perde de vista a alegria. O desbunde, a irreverência, o humor rasgado e crítico dos espetáculos do Chão de Estrelas saúdam todos os atores, cineastas, poetas, músicos que, nos anos da ditadura, se colocaram em risco e se valeram de seus versos e atitudes para criarem ilhas de tolerância diante do fascismo e do conservadorismo reinante.
O barracão transformado em cabaré pelo Vivencial, no Bairro de Salgadinho, foi um desses lugares onde objetos recolhidos no lixo foram reciclados e misturados a plumas e paetês para adornar os atores que contestavam, madrugada afora, a caretice moral e a violência política do período. O filme de Hilton capta com precisão o clima dessas noites debochadas e irreverentes, e a direção de arte de Renata Pinheiro redesenha com originalidade os elementos dessas encenações sem necessariamente copiá-las.
O enredo do filme gira em torno da relação amorosa entre o líder de um grupo teatral e um jovem soldado do exército. Foto: Flávio Gusmão/Divulgação
O uso de filmes super-8 é outro elemento fundamental na reconstrução dessa atmosfera. Mas esses filmes não estão restritos à condição de imagens projetadas no palco das apresentações dos esquetes do grupo teatral. Estão presentes como recurso narrativo, pontuando aspectos culturais e ideológicos sugeridos pela trama, indo além da condição de pretexto para evocar uma memória desbotada pelo tempo.
O mesmo pode ser dito da excelente trilha sonora de Helder Aragão, ou DJ Dolores, que dialoga constantemente com o contemporâneo. É como se Tatuagem nos dissesse ser possível olhar para o desbunde dos anos 1970 sem saudosismo. Ou seja, hoje, com os fantasmas da repressão disfarçados de moralismo religioso e outros ismos, o desbunde pode ser uma opção expressiva e estética tão importante quanto foi no passado, quando artistas como os do Vivencial promoviam a fraterna convivência entre pessoas de diversos gêneros e opções sexuais, dividindo o mesmo teto e a mesma cama com intelectuais progressistas e gente de subúrbio.
Toda a excelência narrativa, contudo, de nada valeria sem a entrega despojada do elenco. Tatuagem é um filme que se preocupa com o ator, desde a forma como ele é filmado até a montagem, que não sacrifica a presença física de seus corpos num momento de boa interpretação por conta de pequenas “irregularidades” técnicas. Está estampada em cada cena a alegria dos atores de comporem o projeto conduzido por Hilton, sobretudo nas ações que se desenrolam no casarão onde o Chão de Estrelas se instala.
Para alcançar a integração da trupe, os atores, antes do início das filmagens, viveram a experiência da moradia coletiva e, sem dúvida, isso contribuiu para o efeito obtido na tela, potencializado pela interpretação de Irandhir Santos, como Clécio, e Jesuíta Barbosa, no papel do soldado Arlindo. As sequências em que os dois atuam lado a lado são comoventes. Ambos expressam suas emoções com uma segurança admirável, e a cena da primeira noite de amor entre eles é fascinante, pela maneira como a tensão erótica e a doçura de seus gestos são flagradas pela câmera.
Com esse filme, Hilton Lacerda dá uma contribuição formidável ao cinema brasileiro, no sentido de superar certas abordagens cristalizadas e superficiais envolvendo questões de sexo e política vistas em obras que se debruçaram sobre esses temas. Reforça também o caráter autoral das produções pernambucanas recentes, um caminho que tem seus riscos, mas, quando bem trilhado, resulta em obras fortes e contundentes.
Tatuagem é também fruto da crença da Rec Produtores no cinema de autor. Completando 15 anos de existência, a produtora é uma das responsáveis pelo momento entusiástico do cinema em Pernambuco. São de seu portfólio obras premiadas e reconhecidas internacionalmente, como Cinema, aspirinas e urubus e Era uma vez, eu Verônica, de Marcelo Gomes; Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karin Ainouz e Marcelo Gomes. Ao assinar a produção do longa de Hilton Lacerda, a Rec fortalece um eixo da produção cinematográfica cuja motivação maior está centrada na valorização da linguagem, da experimentação estética e da realização cinematográfica como exercício do prazer.
VIVENCIAL, UMA FONTE DE INSPIRAÇÃO
O Vivencial foi o grupo teatral mais transgressor da cena pernambucana até os dias de hoje. Surgido em 1974, dentro da Igreja do Amparo, em Olinda, integrava as atividades realizadas pela Pastoral da Juventude na Associação dos Rapazes e Moças do Amparo. A primeira peça, intitulada Vivencial, foi uma montagem feita a partir da colagem de textos diversos com o objetivo de comemorar os 10 anos da associação e estreou no auditório do Colégio São Bento.
Foto: Ana Farache/Divulgação
O espetáculo abordava assuntos polêmicos para o contexto no qual o grupo estava inserido: homossexualismo, drogas, política e violência. A repercussão foi tanta, que inviabilizou o vínculo do grupo com os beneditinos, e a trupe, comandada por Guilherme Coelho, Américo Barreto, Miguel Ângelo e Alfredo Neto, teve de migrar para outros espaços cênicos. Em 1978, o Vivencial agregava um número bem maior de atores e protagonizou uma iniciativa original ao instalar sua sede e abrir um café-concerto no Complexo de Salgadinho, em Olinda, à beira do mangue e dentro de uma das comunidades mais pobres da região.
O Vivencial Diversiones era frequentado tanto pela classe média artística e intelectual quanto por moradores da comunidade que, inclusive, forneceu colaboradores e integrantes ao grupo. As montagens do Vivencial também subiam os palcos dos teatros do Recife e a postura anárquica de seus espetáculos provocava o regime militar.
Os integrantes do grupo buscaram estabelecer relações com as vanguardas artísticas nas artes cênicas, na literatura, na música e nas artes plásticas. Ecos do Cinema Novo, do Teatro Oficina, do Teatro Jornal de Augusto Boal, da Antropofagia de Oswald de Andrade e do Tropicalismo surgem nas suas montagens, graças ao convívio com escritores e encenadores, a exemplo de Jomard Muniz de Brito e Antonio Cadengue, que não compactuavam com a conservadora cultura oficial pernambucana, marcada fortemente pelo regionalismo.
Ao assumir sua condição à margem, o Vivencial abordava de maneira ousada e irreverente questões que inquietavam seus integrantes, sobretudo as relativas à liberdade sexual, ao uso do corpo e ao homoerotismo. O grupo levou a transgressão além do palco, transformando-se numa instância libertadora das pulsões do imaginário coletivo e apontando saídas de como lidarmos com nossas contradições e desejos. Algo que Tatuagem recupera com brilhantismo.
ALEXANDRE FIGUEIRÔA, jornalista, crítico de cinema, autor de A onda do jovem cinema e sua recepção na França e coautor de Transgressão em três atos, nos abismos do Vivencial.