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Carneiro Vilela: As paredes em torno de um autor

Reedição de 'A emparedada da Rua Nova' e adaptações para o teatro, cinema e TV de obras de sua autoria recuperam nome do prolífico jornalista e escritor pernambucano, que conquistou o público

TEXTO Thiago Corrêa

01 de Outubro de 2013

Carneiro Vilela

Carneiro Vilela

Imagem Reprodução

Como toda cidade secular, o Recife é cheio de segredos, com contradições guardadas em suas ruas e escândalos abafados rumo ao esquecimento. Nos nomes de uma estreita rua de paralelepípedos, ainda contornada por casas, no Bairro dos Aflitos, e do casarão que serve de sede à Academia Pernambucana de Letras (APL), escondem-se pequenas homenagens a um dos mais polêmicos e frutíferos intelectuais que já habitaram a cidade. Ainda que os efeitos do tempo tenham desvinculado o nome de Joaquim Maria Carneiro Vilela da sua trajetória intelectual, recontextualizando-o na política de tapinhas nas costas que se instalou na Academia Pernambucana de Letras (APL), a força da sua obra tem suportado as mudanças históricas, tal qual a rua que leva o seu nome vem resistindo à verticalização do Recife. E é através dessa obra que as paredes que decretavam o isolamento de Carneiro Vilela começam a ser derrubadas.

Por ocasião do seu centenário de morte, completado em 1º de julho, parte do legado construído por Carneiro Vilela passou a emergir, com a publicação dos seus escritos. Primeiro, com Cartas sem arte (Editora Universitária UFPE, lançado no fim de 2012), volume organizado pela pesquisadora Fátima Maria Batista de Lima, que reúne crônicas publicadas pelo autor na revista A Cultura Acadêmica e nos jornais Diario de Pernambuco e A Província. E, agora, com a reedição de seu livro mais famoso, o romance A emparedada da Rua Nova, que chega à quinta edição pela Cepe Editora (em versão impressa e e-book). Embora representem apenas a ponta do iceberg, considerando-se a volumosa obra de Carneiro Vilela, esses dois livros já oferecem uma ideia de sua produção.

Nascido em 9 de abril de 1846, no Recife, Carneiro Vilela teve uma trajetória que custa caber nos seus 67 anos de vida. Formado pela Faculdade de Direito aos 20 anos, chegou a exercer a advocacia como juiz municipal em Natal (RN) e como juiz substituto em Niterói (RJ). Foi chefe de seção da Secretaria de Governo do Pará e, depois, assumiu a função de bibliotecário da Faculdade de Direito do Recife. Além disso, arranjou tempo para ser ilustrador, cenógrafo, pintor, paisagista e fabricante de gaiolas.

Foi no Recife que ele se estabeleceu como intelectual de grande influência, jornalista versátil e escritor de fôlego. Aos 18 anos, estreava na literatura publicando o poema Deus, no Diario de Pernambuco. Segundo o jornalista Mário Melo, no prefácio da segunda edição de A emparedada da Rua Nova, o autor era capaz de desenvolver, ao mesmo tempo, dois a três folhetins diários. Como jornalista, quase sempre era escolhido para preencher os espaços vazios do jornal A Província, segundo relata o médico e memorialista Rostand Paraíso.

E o acadêmico Sebastião Vasconcelos Galvão, que foi contemporâneo do autor na APL, dizia que “ele poderia encarregar-se, sozinho, da confecção de um jornal inteiro, desde o grave e sisudo artigo de fundo, até a sátira mordaz, em verso ou prosa, desde o inocente folhetim, que faz as delícias das respeitáveis matronas e românticas moçoilas, até o bisbilhoteiro noticiário, a atrair a atenção dos que andam à cata de sensacionais acontecimentos”.


Professor Anco Márcio Tenório tem-se dedicado ao estudo da obra de Carneiro Vilela.
Foto: Leo Caldas

Com todo esse gás, não é de espantar que Carneiro Vilela tenha contribuído com mais de 15 periódicos da época, e que do seu currículo constem 10 peças de teatro, cinco operetas, quatro traduções, 15 folhetins, o livro de poesia As margaridas (1872) e diversos artigos e crônicas. Apesar de tantas pistas deixadas, a língua ferina de Carneiro Vilela acabou sendo silenciada pouco a pouco. “Muito do que ele escreveu está perdido. Principalmente o que foi escrito para ser publicado em livro”, diz o professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE Anco Márcio Tenório Vieira.

MEDIDA DO HOMEM
A leitura das crônicas reunidas em Cartas sem arte, porém, fornece material para contextualizar a figura de Carneiro Vilela na sociedade pernambucana do fim do século 19 e início do 20, localizando sua produção nas estantes da literatura brasileira. “Carneiro Vilela se inscreve numa tradição de grandes moralistas que escreveram na nossa língua e, particularmente, no Brasil. O primeiro deles foi Gregório de Mattos e o último Nelson Rodrigues. É verdade que cada um deles tinha princípios morais distintos, no entanto, o que há em comum entre eles é um certo modelo ideal de sociedade, ao mesmo tempo que tinham uma profunda compreensão da medida do homem”, analisa o professor.

No prefácio produzido para Cartas sem arte, Anco Márcio observa que o cronista era um tipo de intelectual que não se omitia da função de provocar engasgos na sociedade. Membro da geração conhecida como Escola do Recife, Carneiro Vilela escreveu crônicas que revelam que ele foi um homem do seu tempo, influenciado pelas ideias de Tobias Barreto e pelo ceticismo religioso. Essa postura tinha a ver com a época e passava tanto pela liberdade de imprensa conferida pelo império de Dom Pedro II como pelos ideais iluministas do individualismo ético, que conferiam o poder do exercício à crítica contra as normas sociais. O autor usava suas crônicas para atacar tudo e todos, com uma escrita corrosiva, permeada por ironias que iam da galhofa à jocosidade, da paródia à sátira.

Um impulso apresentado por ele já na sua crônica de estreia no Diario de Pernambuco, quando diz só ter aceito o convite para escrever no jornal “depois que daquela parte do velho e conceituado Diario foram varridos o enxame de mosquitos e a magna quantidade de teias de aranha, que o tornavam inabitável para quem adquiriu o hábito da boa sociedade”.

Ao narrar sua experiência como pintor no Rio de Janeiro, ele diz que seus quadros foram expostos por seis dias numa galeria da Rua do Ouvidor e, embora as telas recebessem elogios por parte dos entendedores, não houve um comprador sequer. Ele então resolve adotar o nome inglês William Brotherood, volta a expor os mesmos quadros com a nova assinatura e, em apenas cinco dias, todos os quadros são vendidos. Ao que ele conclui, num chiste: “O público não queria quadros, o que queria era... inglês”.


Pesquisador Rostand Paraíso situa seus estudos no período histórico
em que viveu o escritor. Foto: Leo Caldas

O mesmo espírito aguerrido que empregava nas crônicas, Carneiro Vilela aplicava nos assuntos pessoais. Em 1890, ao ser convidado para fundar a Academia Pernambucana de Letras, ele recusa, alegando que “o elogio mútuo é mais do que prejudicial, é ridículo, além de ineficaz em seus intuitos” e que “para pertencer a uma associação qualquer, é preciso, antes de tudo, que essa associação nos inspire confiança, já pelo seu objeto, já pelo seu sujeito, isto é, pelos seus promotores”.

Curiosamente, por algum motivo hoje desconhecido, ele volta atrás e se torna não apenas um dos fundadores, mas o primeiro presidente da APL, exaltando a importância de “uma agremiação forte, consciente e compacta, solidária e compenetrada da utilidade e da nobreza do seu ideal”, no seu pronunciamento de instalação da academia. Carneiro Vilela ficou apenas 11 dias à frente da APL, sendo citado como presidente provisório pelo Almanaque de Pernambuco.

Mas os efeitos da sua recusa inicial já haviam sido registrados pela história, impedindo que a APL se tornasse a primeira academia a ser fundada no país. A espera por ele, no entanto, parece se justificar pela sua importância no meio literário da época. “Ele era muito conceituado, com vários livros, era um intelectual de renome, por isso passou a ser um dos principais organizadores da Academia e foi nomeado como presidente enquanto se constituía a sociedade”, conta Rostand Paraíso.

Um prestígio que contrasta com o esquecimento da sua obra, mas que se estendeu à sua morte, sendo nomeado patrono da cadeira 21 da APL e batizando a sede da instituição como Casa de Carneiro Vilela.

ROMANCE DE PRESTÍGIO
Ao que tudo indica, muito desse prestígio se deve ao romance A emparedada da Rua Nova, publicado inicialmente em livro no ano de 1886, embora sua fama ficasse restrita aos limites de Pernambuco. “Não temos nenhum registro de sua repercussão fora do Estado. Aliás, Vilela é um autor quase que ignorado pelos seus contemporâneos das hoje regiões Sudeste e Sul. O crítico José Veríssimo não o cita, e Sílvio Romero o cita sempre de modo vago, como representante desta ou daquela linha do romance oitocentista”, observa Anco Márcio.


Capa do novo volume do famoso romance. Imagem: Reprodução

Mas, como o próprio Carneiro Vilela apontava: “o juiz que processa e julga os literatos é o público e, em recurso de revista, o supremo tribunal que lhes dá a sentença definitiva, sem apelação nem agravo, é o futuro, é a posteridade, é a História”. Ele estava certo, tanto que, anos mais tarde, seu romance voltava a ser publicado, dessa vez como folhetim, no Jornal Pequeno, entre 1909 e 1912. “Quando uma obra não agradava, acontecia de ela ser retirada pelo editor e substituída por outra. A emparedada da Rua Nova ficou em ‘cartaz’ durante quase três anos. O que, para a época, era um tempo muito longo”, afirma Anco Márcio.

A explicação para isso, e para a sua contínua reedição até hoje, está em cada uma de suas mais de 500 páginas. No plano estético, percebemos a capacidade do autor em envolver os leitores na narrativa, seja pelo uso de um narrador onisciente que muda de perspectiva a toda hora, promove avanços e retornos cronológicos para embaralhar os fatos e renovar as expectativas dos leitores, ou pela estrutura de romance policial, com a esperança de resolução do mistério de um assassinato motivando o avanço da leitura. A isso, some-se a complexidade com que Carneiro Vilela constrói os personagens, criando pontos de interseção com o moralismo de suas crônicas, ao revelar lados sombrios nos arquétipos do herói e da mocinha.

Lucilo Varejão Filho observa, no prefácio da terceira edição, que a história insere uma trama de crimes no seio de uma família abastada: “O clima é outro: o de um lar burguês onde se respirava até então a tranquilidade de uma vida abastada e, ao que tudo indica, feliz”.

Para tanto, não por acaso, Carneiro Vilela ambienta a história na Rua Nova. “O grande centro do comércio de Pernambuco, ali ficavam as melhores lojas, casas de lanche, cinemas e o sistema de bondes confluía para lá. Era famosa, ali moravam muitos comerciantes portugueses. Toda tarde, às 16h, a Rua Nova via um desfile de mulheres que iam às compras e andavam por ali para se exibir”, explica Paraíso, que é autor do livro A velha Rua Nova e outras histórias.

Nesse cenário, Carneiro Vilela insere a família do comendador Jaime Favais, um imigrante português que adquiriu fortuna como comerciante no Recife. Casado com a prima Josefina, ele é pai de Clotilde e vivia tranquilo, até o jovem Leandro Dantas surgir em seu caminho. Galanteador, o rapaz moreno chama a atenção das damas da sociedade com sua elegância e põe em xeque a honra de famílias importantes. De acordo com a pesquisadora Helena Maria Ramos de Mendonça, em sua dissertação de mestrado, a trama é uma releitura do mito do Don Juan, incrementando o enredo com intrigas, ciúmes e traições.


Capa da coletânea de crônicas de Carneiro Vilela. Imagem: Reprodução

Mas o que parece ter contribuído mais para a fama de A emparedada foi a mistura de realidade e ficção promovida pelo autor, que se utiliza de fatos (a exemplo do corpo encontrado no Engenho Suaçuna, logo no início do romance) para desenvolver sua trama. Por integrar a Escola do Recife, Carneiro Vilela foi influenciado pelos ideais do Realismo e do Naturalismo, o que torna sua ficção um documento da época, registrando detalhes sobre a vida política, econômica e social do Recife.

Segundo Anco Márcio, isso se traduz no romance com “a crença no determinismo, no evolucionismo social, na História como dotada de um sentido, no anticlericalismo panfletário, na defesa da república como mortalmente superior à monarquia, e, por fim, em uma certa crença de que entre a palavra e a coisa a ser narrada existe uma certa naturalização, isto é, a palavra não está no lugar da coisa em si, mas é como se ela fosse a própria coisa”.

Resultado: com a mistura entre situações reais e imaginadas, até hoje a dúvida sobre o crime do romance ainda paira sobre a Rua Nova, cenário que guarda outras tragédias, como o assassinato de João Pessoa, então presidente da Paraíba, e o desabamento das lojas 4$400 e Maison Chic.

“Muitos acham que foi um caso de ficção, mas o próprio Carneiro Vilela diz que a história foi baseada nos relatos de uma escrava. Outros dizem que o caso foi real, aconteceu num primeiro andar de uma casa entre a descida da ponte e a Rua da Palma.

É possível que tenha sido, mas não há comprovação”, diz Paraíso. “Ela entrou no imaginário da população, como se os fatos ali narrados tivessem mesmo ocorrido”, diz Anco Márcio, que também assina o prefácio desta nova edição pela Cepe. E isso tem se comprovado com as sucessivas produções que tomam A emparedada da Rua Nova como inspiração, a exemplo do curta de mesmo nome de Marlom Meirelles e de adaptações teatrais recentes como O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, encenada pela Trupe Ensaia Aqui e Acolá. Agora, está em fase de produção a minissérie da Globo Amores roubados, uma adaptação livre do romance de Carneiro Vilela, com estreia prevista para 2014. 

THIAGO CORRÊA, jornalista, mestre em Teoria Literária.

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